A presença do
índio na literatura brasileira é registrada desde a Carta de
Pero Vaz de Caminha (“homees pardos todos nus sem nhuua cousa que lhes cobrisse
suas vergonhas”, “moças asy nuas que
nom pareçiam mal”), primeiro documento literário produzido nesta
Terra de Santa Cruz. No século XVI, está inclusa no vocabulário do poeta baiano
Gregório de Matos, em sua inventiva miscigenação de termos indígenas (caramuru,
paiaiá, cobepá, aricobé), africanos, latinos e lusitanos, e também na
temática de cartas e sermões do padre Antônio Vieira, como o Sermão da
Sexagésima ou o Sermão da Epifania, mas é a partir do
Romantismo que o índio será protagonista dos poemas de Gonçalves Dias,
como I Juca Pirama, e dos romances de José de Alencar,
como Iracema e O guarani, ainda que numa
feição europeizada, que Oswald de Andrade chamaria, no Manifesto
Pau-Brasil, de “índio de lata de biscoito”.
Apesar da retórica pomposa e
idealizante, esses autores incorporaram no léxico português palavras como maracá,
cauim, piaga e muçurana, bem como as referências a
armas, adereços, instrumentos musicais e outros objetos utilizados no cotidiano
pelos índios. O primeiro poeta a tratar do tema indígena com enfoque crítico
foi o maranhense Joaquim de Sousândrade, autor do poema épico O guesa
errante, que denuncia os males do colonialismo português, da exploração da
mão-de-obra escrava e da catequização jesuíta, responsáveis por um processo de
genocídio humano e cultural que persiste até os dias atuais. Sousândrade, o
mais moderno de nossos românticos, na seção do Guesa intitulada O
inferno de Wall Street, no Canto X, irá ainda além, observando a hegemonia
do capitalismo financeiro e suas consequências para os povos de países sob o
jugo do grande capital internacional (“Desde Christie, a Grande Bretanha / Se
mede co’o Império que herdei... / Rainha-Imperatriz...! / = Os Brasis / Vos
farão Imperador-Rei...”).
No episódio do Canto II intitulado Tatuturema,
palavra que designa um festim oferecido a Jurupari, na região do Alto Solimões,
na Amazônia, Sousândrade escreve: “Missionário barbado / que vens lá da missão
/ Tu não vais à taberna / que interna / tens em teu coração”. A denúncia da
hipocrisia religiosa e a exaltação da sensualidade indígena estará presente,
sobretudo, em outro poeta de nosso Romantismo, Bernardo Guimarães, autor de
peças de irreverente erotismo como O elixir do pajé, onde
lemos: “E ao som das inúbias, / ao som do boré /, na taba ou na brenha, /
deitado ou de pé, / no macho ou na fêmea / de noite ou de dia, fodendo se via /
o velho pajé!”. No poema de Guimarães, o índio é retratado não como um
Siegfried amazonense, ao estilo d’Os Timbiras, mas como o puro pagão,
sensual e feiticeiro, tão estranhamente outro, em contraste com o pundonor lusitano. Este
poema, assim como A origem do mênstruo, também de Guimarães, foi
recuperado na segunda metade do século XX pelo poeta mineiro Sebastião Nunes,
que resgatou do esquecimento essa lírica erótico-satírica, que ele editou em
álbum primoroso pelo selo Edições Dubolso.
Será a partir do
Modernismo, porém, em especial com Mário e Oswald de Andrade e Raul Bopp, que
nossa literatura irá não apenas resgatar o vocabulário, costumes, religião,
mitologia, folclore e manifestações artísticas dos povos indígenas, mas também
interagir com eles, de maneira criativa, em diálogo com as vanguardas
europeias, no Movimento Antropofágico, responsável por obras como Macunaíma,
de Mário de Andrade, Cobra Norato, de Raul Bopp, e, nas artes
visuais, por quadros como A cuca e o Abaporu, de
Tarsila do Amaral. Os modernistas buscaram nas culturas indígenas um antídoto
libertário à sociedade patriarcal, católica e aristocratizante de nossas elites
provincianas. O recurso utilizado pelos modernistas para dessacralizar os
valores e práticas discriminatórias daquela sociedade, nascida da monocultura,
da catequese e do escravismo foi o escracho, o deboche, o sarcasmo.
Assim,
Oswald de Andrade escreve em seu poema Erro de português: “Quando o português chegou / debaixo de uma bruta
chuva / vestiu o índio / que pena! fosse uma manhã de sol / o índio tinha
despido / o português”. Mário de Andrade, por sua vez, irá
recuperar os mitos indígenas, reinterpretados sob viés paródico – como o
Curupira, Ceiuci, Ci, a Mãe do Mato, as icamiabas –, em seu
romance-rapsódia Macunaíma, onde a demanda do Santo Graal é
substituída pela busca ao muiraquitã, amuleto amazônico roubado por Piaimã,
rico fazendeiro de São Paulo que gostava de comer carne humana.
Todo esse breve
histórico da presença indígena na literatura brasileira foi necessário para
situarmos o novo livro de Edir Pina de Barros, Lâminas da
barbárie (Kotter Editorial), poeta e antropóloga que desenvolve o
tema de maneira original e consistente. A obra é dividida em três partes, Conquista,
Barbárie e Bakairi, em que a autora desenvolve, em seu
percurso criativo, temas como a tomada das terras indígenas, o genocídio, a
perda da identidade cultural, a transformação do meio ambiente pelos interesses
econômicos, o ocultamento da história das nações indígenas, usando para isso as
mais diversa estruturas formais, como o soneto camoniano, o poema em prosa e
o pantum –composição poética oriunda da Malásia, com os versos
divididos em quartetos e as rimas cruzadas. Nesse gênero pouco praticado em
nossa literatura, Edir Pina Barros escreve:
MUTAÇÕES
(Pantum)
Um mar de soja é tudo o que se vê
agora ali, nos campos do cerrado,
não resta mais sequer um pé de ipê
nem olhos d’água, tudo foi arado;
agora ali, nos campos do cerrado,
não correm mais riachos transparentes,
nem olhos d’água, tudo foi arado
de soja e sorgo, viçam as sementes;
não correm mais riachos transparentes,
nem lambaris pequenos, mas ladinos,
de sorgo e soja, viçam as sementes;
por conta da ganância, desatinos;
nem lambaris pequenos, mas ladinos,
porque foram as matas derrubadas,
por conta da ganância, desatinos,
secaram os riachos, as aguadas;
porque foram as matas derrubadas,
não mais existem bichos pequeninos,
secaram os riachos, as aguadas
onde pescavam homens e meninos;
não mais existem bichos pequeninos,
nem peixes não existem mais nos rios
onde pescavam homens e meninos,
(os leitos estão secos, tão sombrios);
nem peixes não existem mais nos rios
- piquiras, lambaris ou matrinxãs –
os leitos estão secos, tão sombrios,
nas beiras não se têm panapanãs;
piquiras, lambaris ou matrinxãs,
não buscam, rio acima, seus berçários,
nas beiras não se têm panapanãs
nem cantam juritis, japus, canários;
não buscam, rio acima, seus berçários,
os peixes que passavam reluzentes,
nem cantam juritis, japus, canários.
que, outrora, ali viviam tão contentes;
os peixes que passavam reluzentes,
nos rios desses povos milenares,
que, outrora, ali viviam tão contentes,
no seu sagrado chão, antigos lares;
nos rios desses povos milenares,
(quem olha não entende ou mesmo crê)
no seu sagrado chão, antigos lares,
um mar de soja é tudo o que se vê!
Em versos impecáveis, com
métrica de dez sílabas e ritmo binário, a poeta registra, com clareza
cabralina, a mutação geográfica imposta na região do cerrado pelos reis da
soja, onde “ não resta mais sequer um pé de ipê / nem olhos d’água, tudo
foi arado”. Mutação geográfica que traz consequências para todo o ecossistema,
pois agora não há “nem lambaris pequenos, mas ladinos, / porque
foram as matas derrubadas, / por conta da ganância, desatinos, / secaram
os riachos, as aguadas; / porque foram as matas derrubadas, / não mais existem bichos pequeninos, / secaram os riachos, as aguadas / onde
pescavam homens e meninos”.
O impacto humano e cultural dessa cruel metamorfose
é sintetizada com sutileza na última estrofe: “nos rios desses povos milenares,
/ (quem olha não entende ou mesmo crê) / no seu sagrado chão, antigos lares, /
um mar de soja é tudo o que se vê!”. A vocação colonial e semicolonial do
Brasil para a monocultura destinada à exportação, tema abordado por Gilberto
Freyre em seu clássico Casa grande & senzala, é aqui
sintetizado de modo lapidar pela poeta, que na segunda seção do livro, Barbárie,
faz o relato do assassínio das comunidades indígenas, iniciado em 1500 e
continuado até os dias atuais. Um morticínio humano e cultural, como a autora
registra no primeiro poema da série (sem título):
I
Quantas balas
em cinco séculos
para exterminar
mais de mil povos?
Bugreiros, capangas,
batedores de mato,
correrias e chacinas,
“guerras justas”, álcool.
II
Quantas balas
no tekoha sagrado
dos Guarani-Kaiowá?
Nem Ñanderu sabe.
Milícias encapuzadas
fecham o cerco,
acuam, matam
como se matam bichos.
Nesta composição, como em
outras do volume, Edir Pina de Barros utiliza de forma expressiva, quase
mântrica, palavras como tekoha ou tekoa, termo
que significa o “lugar onde os Kaiowa realizam o seu modo de
ser, espaço geográfico em que se realiza a vida econômica, social,
política e religiosa”, conforme nota da própria autora. Em outra composição,
agora escrita em prosa, a autora nos remete à quase invisibilidade do massacre
dos Akroá-Gamella, em timbre seco de crônica jornalística, como em algumas
peças de Manuel Bandeira:
Luta
desumana, desigual. Duas centenas de homens com armas
de fogo, facões, pedaços de pau, contra trinta homens, mulheres,
crianças, correndo e caindo no pasto: vinte e dois feridos. Um
foi baleado no tórax, na perna, golpeado na testa e viu serem
decepadas as suas duas mãos. Outro, ferido à bala, depois de muitas
pauladas teve sua mão direta arrancada por golpe certeiro de
facão. Seus joelhos foram cortados nas articulações para que não
pudessem correr, como se faz com búfalos e bois que invadem roça
dos outros na baixada maranhense. O agressor relatou que
precisou “pisar em suas pernas para retirar o facão que ficou cravado no
osso, como quem retira um machado cravado no tronco de uma árvore”. Ribamar
não dança mais, a sua mão reimplantada não lhe pertence mais: não
bate tambores rituais, não caça-pesca-planta, não tem forças para
nada, nada suporta, apenas dói.
Na
terceira seção do livro, por fim, Edir Pina de Barros poetiza a saga dos
bakairi, grupo indígena que habita o centro de Mato Grosso, em particular
as terras indígenas de Santana (Iemârire) e
Bakairi. Numa sequência de poemas numerados, sem título, a poeta nos apresenta
a uma insólita paisagem onde “Nenhuma fruta é a mesma / que mãos estranhas
colhem. / Nenhuma pedra é a mesma / que outros olhos veem. / Tudo, tudo é
diverso. / Vê-se a Serra Azul outro mundo, outro universo. Não só se vê o
diverso / escuta-se o diverso / porque as falas são outras.
Os mapas são outros, / outras são as águas / outra língua e pensar. / As
correlações são outras, / as traduções são outras, / e o tempo é circular”.
Nessa terra de radical estranheza, devastada pela sanha do saque, a magia e o
mito insistem em existir, apesar da cruz e da espada, como lemos nesse
belíssimo poema em prosa de Edir Pina de Barros:
HOMEM-JAGUAR
Em nada lembrava o homem da noite
anterior. Era outro quando evocou seu poder xamânico na kâti pouco
iluminada. Com assovio agudo invocava seus piajes. Dialogava com
senhores de vários domínios e de poderes diversos. Entre nuvens de fumaça se
debruçava sobre a rede de algodão. Lutava para curar a criança em febre.
Atravessara os reinos sombrios dos rios subterrâneos. Cortara os ventos e
campos à procura de uma de suas almas perdidas. Em transe, falara a língua das
onças e dos mortos para salvar sua vida. Amanhecera. Agora estava
ali, sentado no banco zoomorfo. O olhar perdia-se no chão do taséra.
Daquele homem-jaguar, poderoso e altivo, nada restara. O dia trouxe
consigo a realidade do jugo colonial.
Numa leitura intertextual, comparativa, poderíamos
comparar este poema, por sua perfeição formal e riqueza de imaginário, a certas
composições de Josely Vianna Baptista – outra estudiosa de mitos brasileiros e
ameríndios – em livros como Roça barroca, e ainda
aos orikis iorubás traduzidos por Antônio Risério, em seu
livro essencial Oriki Orixá, dois marcos da etnopoesia no Brasil,
porém, há aqui um elemento diferenciador: ao lado da recuperação da fala do
outro, em toda a sua beleza e singularidade, da recuperação de sua língua, de
seus deuses, cantos e danças, temos o olhar contemporâneo de quem registra,
para a posteridade, o brutal assassinato de centenas de povos da floresta, os
motivos econômicos por trás do morticínio e o silêncio ruidoso daqueles que têm
olhos para ver, e não veem. O livro de Edir Pina de Barros não é apenas uma
bela reunião de poemas, mas uma mensagem dentro de uma garrafa jogada ao
oceano, para ser descoberta, quem sabe, em algum futuro mais feliz para a nossa
nação.
Claudio Daniel