quarta-feira, 12 de outubro de 2022

ESPELHOS D’ÁGUA EM NOITES SEM LUA

 






Poesia é um lugar que não se revela, do poeta Sidnei Olívio, publicado pela editora Penalux, é um livro singular, em que o autor revela raro manejo das artes do verso, sensibilidade musical acurada, criação sutil de cenas e atmosferas e um certo abstracionismo verbal, notável sobretudo nesta composição sem título, uma das mais densas e bem elaboradas do volume: “os olhos atrás do espelho: / pálpebras / que não se abrem por inteiro / (alguma coisa de encanto um canto / que atravessa o silêncio / e não se diz”, peça de extrema delicadeza que convida o leitor para uma viagem interpretativa, sem planos prévios ou roteiros. Na segunda parte do poema, o autor prossegue: “pele nua escassa melanina / que recusa o sol / a luz que reflete / o nome apenas / invólucro tênue / como a pena modulando / a palavra / é voo”. Temos aqui um jogo engenhoso entre o visível e o invisível, o audível e o inaudível, o pensável e o impensável, enfim, um jogo nas fronteiras, nos interstícios do pensamento e da percepção sensorial. Neste sentido, é um poema logopaico, palavra que se refere à “dança do intelecto entre as palavras”, segundo o poeta e crítico norte-americano Ezra Pound. Se é possível relacionarmos esta poesia com a discussão sobre o conhecimento e a reflexão existencial, ela é, antes de tudo, metalinguística: antes de dizer algo sobre o mundo e as coisas, e até mesmo sobre o íntimo, ela diz algo sobre si mesma, como lemos em outra peça: “toda imagem multiplicada / reluz a nudez/  :/  pele / tinta / pincel / o papel ainda que longevo / é palco de desejos / e gestos”, poema de extrema concisão que recorda a arquitetura poética japonesa, inclusive pela disposição geométrica das linhas na página, quase à maneira da caligrafia oriental. O debate sobre o estar no mundo está presente, porém de um modo tão sutil e misterioso que ultrapassa qualquer viés confessional, como lemos nestas linhas: “tudo o que contorce dentro do corpo / suspensos como nuvens / voltam sempre a desaguar / invento pois dois longos olhos / à frente do abismo”. Estamos diante de um livro de enigmas, um livro-oráculo, voltado ao leitor capaz de decifrar “o reflexo impossível dos espelhos d´água em noite sem lua”. Seria tarefa muito difícil descobrir a vertente poética em que se situa o autor, pela extrema singularidade de seus versos, mas poderíamos incluí-lo entre poetas portugueses como Fiama Hasse Pais Brandão, Antônio Ramos Rosa, Luiza Neto Jorge, um certo Herberto Helder, ou talvez junto a poetas brasileiros insólitos, como Roberto Piva ou Hilda Hilst. É uma poesia inclassificável, que nos surpreende a todo momento por sua beleza e alto lirismo.   

Sidnei Olívio é um poeta raro entre os raros.

 

Claudio Daniel 

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