À beira da palavra, livro de estreia de Paola Schroeder, reúne uma série de
composições líricas em que se destacam a temática erótica, o mergulho
existencial, a reflexão sobre o tempo, o amor, a beleza, a poesia, a morte e as
relações interpessoais, por vezes com tinturas de melancolia: “Tudo na alma é assombro, tudo desencontro”, escreve a autora paranaense,
nascida na cidade de Toledo. Esta é uma escrita ácida, que nos faz lembrar
da concisão cortante de um Paul Celan – “Forca virada para o inferno. / À boca
uma fenda, um abismo”. A sintaxe é reduzida ao mínimo necessário para a
expressão poética e no campo semântico vigora o princípio da economia
construtiva, para que não haja desperdício – nesse sentido, ela se afasta do
barroquismo de um Herberto Helder, com o qual tem outras afinidades, como a
celebração do corpo. Há também uma abstração metafórica que solicita a
participação imaginativa do leitor, que pode traçar diferentes rotas
interpretativas, e sobretudo imagens de alto impacto, em que não estão ausentes
a ironia, o sarcasmo e o humor negro. Paola Schroeder apresenta uma escrita
poética densa, enigmática, de alguém que costuma “habitar labirintos”. O seu
cadinho utópico – não no sentido
coletivo, talvez presente de modo indireto em certos poemas que tratam da
exclusão social urbana – “A ideia de pátria se dissolve / na carne cortada pelo
frio” –, mas no sentido de uma utopia individual, sensorial e estética, é a busca
da beleza como antípoda da mesquinharia, da miséria material e de espírito,
enfim, da barbárie contemporânea, que no lugar da divindade ou da arte presta
serviço devocional ao lucro capitalista, à violência, à ignorância e à completa
ausência do espírito de compaixão e solidariedade. Ao eleger a experiência
sensorial e o cultivo do belo, a autora não se isola numa torre de marfim ou de
ametista, mas exibe para nós, em um espelho imaginário, a feiura do mundo em
que vivemos. Encontramos, nessa poesia inquieta, a influência das artes
visuais, sobretudo do desenho anatômico, com descrições imagéticas minuciosas –
“Pescoço traçado por finas ondas. / Colo brilhante de linhas e sombras. / Pele
fluída revela veias, ossos e movimentos”, e ainda figuras de linguagem como o
paradoxo e o oxímoro – “Minha infância envelhecida”, “Amarelo que te quero azul”;
“Me alimento do tempo que em mim não há” – e imagens poéticas quase
surrealistas: “Meus olhos nas tuas mãos / Tuas mãos dentadas / Meus
olhos sem asas”. O universo feminino, noturno, aquático, lunar, regido por
Lilith, dá o tom em diversas composições do volume, numa releitura menos
romântica do que sensual, quase mística e órfica, em paralelo possível com Herberto
Helder e Hilda Hilst: “Antes
da fala, / a mulher. / Antes da palavra, / a imagem. / No início do verbo, / Seu
corpo. / No fim da boca, / sua boca. / Mulheres de água / em dissolução”. O
diálogo consigo mesma, com o seu “duplo” (Doppelgänger), seguindo uma tradição alemã medieval que teve ilustres
desdobramentos em autores como Gerard de Nerval e Jorge Luis Borges, também
está presente na poesia de Paola Schroeder, como nesta peça notável, da qual
citamos alguns versos: “Estou indo / de forma brutal / ao meu encontro. (...) Quem
sou eu nessa imagem invertida, / brincando de mimetismo / em busca de dor. / Me
farei existência / quando um dia flor”. Estes são apenas alguns dos múltiplos
aspectos que poderíamos abordar na imersão nessa poesia de águas profundas, mas
talvez sejam pistas suficientes para despertar o interesse do leitor, que em
sua jornada nessa insólita e fascinante escrita descobrirá outras camadas de
sentido. Paola Schroeder é, sem favor, uma das poetas que mais se destacam no
panorama da nova poesia brasileira, aquela que circula na contramão do lobby
conformista hegemônico, e sua estrela tende a brilhar cada vez mais, com a
bênção de todas as deusas.
Claudio
Daniel, 2022, ano regido por Iemanjá
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