Neste momento, livro de André Dick (Kotter Editorial), é
uma surpreendente coleção de poemas que chamam a atenção do leitor pela imersão
no imaginário animal – ou zoografia, como diz o poeta --, pelo humor
sutil, inteligente, pelo uso recorrente do paradoxo e sobretudo pela construção
vocabular precisa, que deriva da tradição cabralina, mas já aponta para outras
direções. Em seus livros anteriores, como Grafias, Papeis de parede e
Calendário, o autor gaúcho já se revelou um hábil construtor de
arquiteturas minimalistas, que valorizam a
materialidade da palavra, a sonoridade, os efeitos plásticos e por vezes
se aproximam da fotografia ou da pintura hiperrealista de um Hopper. Nesta nova
seleção poética, André Dick mantém as conquistas anteriores, mas procura uma
renovação de águas, pela amplitude temática e adoção de novas técnicas, sem se
render ao discurso fácil do prosaísmo cotidiano, de humor duvidoso, que (ainda)
faz tanto sucesso midiático em nossas letras. O poeta gaúcho prefere buscar o
inusitado em imagens como o “esqueleto de pterodáctilo”, “o lobo é o carneiro”,
“as estrelas aos poucos se afastando de Saturno” e “um sol de falas múltiplas
dentro de uma só voz”. O aspecto lúdico é mais evidente nesse volume do que em
sua obra anterior publicada, como se o poeta apresentasse ao leitor uma caixa
de jogos e enigmas que não se afastam da realidade imediata, mas a apresentam
de maneira inóbvia: uma realidade composta de instantes fugidios, ruídos,
silêncios, imagens apressadas, fragmentadas ou mescladas, regidas pela grande
ampulheta do tempo. Em seu passeio lúdico por palavras e situações, o
olhar-câmera de André Dick registra “flores carnívoras”, “dentes-de-leão”, “o
louva-a-deus e os colibris chegando dos jacarandás”, “um pardal bebendo água no
nascedouro”. O eu lírico, quando aparece, em geral é de modo logopaico e
irônico, à maneira de Laforgue e Corbière: “Sou a favor de ser contrário”, “Sou
inimigo de ser inimigo”, “Hoje estive morto
/ Hoje senti que fui outro / Hoje vi o oco”, em que notamos a presença
da outridade de Sá de Miranda e Sá-Carneiro: o eu é (sempre) um outro, diria
Rimbaud. Um eu em metamorfose, uma poesia em metamorfose. A imagem da casa
aparece na poesia de André Dick com todo o viés polissêmico possível: é a casa
onde morou, a casa que abandonou, a casa dentro de outra pessoa, mas sempre
lugar, seja de memória do passado, de vivência no presente ou de encontro
amoroso – a casa é o outro. A mutação
das coisas, de sua representação e significados, é talvez uma das chaves de
leitura dessa obra, “espelho de cores vivas” que nos oferece toda a
possibilidade de combinações cromáticas.
O livro de André Dick, com certeza, é uma das melhores realizações da poesia brasileira dos últimos anos.
Claudio Daniel
Outubro de 2022
Nenhum comentário:
Postar um comentário