1)
A vitória de Lula, no contexto internacional, significa o fortalecimento do
campo democrático-progressista de esquerda ou centro-esquerda na América Latina, que inclui hoje Cuba, México,
Honduras, Nicarágua, Venezuela, Colômbia, Chile, Bolívia, Peru, Argentina e
Brasil, restando ainda enclaves de direita no Equador, Uruguai, Paraguai e em
vários países da América Central. Com o retorno do Brasil ao polo progressista,
organismos de cooperação regional como o Mercosul, a Unasul e a Alalc, que não
têm a participação dos Estados Unidos, ficarão mais fortes, e a Organização dos
Estados Americanos (OEA), ou o “ministério
das colônias ianques”, segundo Che Guevara, cairá na irrelevância.
2)
O Brasil terá uma presença mais destacada nos Brics, ao lado da Rússia, Índia,
China e África do Sul, e talvez o bloco se amplie com o ingresso da Argentina e
do Irã. Com isso, o Banco dos Brics poderá substituir as organizações
financeiras controladas pelos EUA, financiando projetos de desenvolvimento com
juros mais baixos, e em algum futuro os Brics poderão adotar uma moeda própria,
em substituição ao dólar. Com o Brasil na vanguarda da América Latina, os
acordos comerciais entre os Brics e o Mercosul também poderão crescer, o que
contribuirá para o enfraquecimento da hegemonia norte-americana e para a
construção de uma nova ordem multipolar.
3)
A derrota de Bolsonaro é uma derrota para o fascismo internacional, que até
então tinha o Brasil como país-líder, sobretudo em organizações para o combate
ao aborto e à assim chamada “ideologia de gênero”. Após a derrota de Trump nas
eleições norte-americanas, Bolsonaro passou a ser o líder de referência dos
movimentos fascistas, que hoje estão no poder na Hungria, Polônia, Itália,
Suécia e outros países europeus.
4)
No plano nacional, a primeira observação importante a ser realizada é que as
eleições mostraram um Brasil dividido: enquanto o Sul, Sudeste e Centro-Oeste
deram a vitória a Bolsonaro, o Norte e o Nordeste deram a vitória final a Lula.
Um país dividido é sempre mais difícil de ser governado e Lula terá que adotar
uma política de curto prazo para ampliar a sua popularidade e conquistar
corações e mentes até agora contrários ao petista.
5)
Esta divisão acontece também nos governos estaduais, que igualmente estão
polarizados, 11 governadores estão alinhados com Lula e 14 contra. Como os
estados e municípios dependem de verbas federais, porém, talvez Lula consiga
costurar, com prefeitos e governadores de oposição, uma política de convivência
mutuamente satisfatória, que evite uma ruptura e conflito entre o Executivo
Federal e os governos estaduais e municipais.
6)
No Congresso Nacional, essa polarização adquire outro contorno, pois mais da
metade do Congresso Nacional é controlado pela direita e pela extrema-direita.
Os partidos da coligação de Lula somam pouco mais de cem deputados, o que
significa a necessidade de se obter apoio de outras legendas e parlamentares
para a aprovação dos projetos do Executivo. Geraldo Alckmin foi escolhido para
ser o vice de Lula exatamente para desempenhar esse papel: o de conversar com deputados
e senadores do MDB, PSDB, União Brasil e outros do Centrão que eventualmente
possam somar forças à bancada governista. Não será uma tarefa fácil e, caso
fracasse, nada impede que o Congresso Nacional tente votar o impeachment de
Lula. Aguardemos.
7)
A Lei de Diretrizes e Bases Orçamentárias, ou LDO, para 2023 já foi aprovada,
com cortes significativos para as áreas de saúde, educação, ciência e
tecnologia etc. Lula terá de dialogar com o Congresso para mudar a LDO, caso
queira, em seu primeiro ano de governo, retomar programas sociais como o Minha
Casa Minha Vida, o Ciência sem Fronteiras etc.
8)
Além das articulações políticas em Brasília, os movimentos sociais terão
importância fundamental para pressionar o Congresso Nacional a votar a favor
das pautas sociais; resta saber se os partidos de esquerda, centrais sindicais,
entidades de negros, mulheres, estudantes etc. serão protagonistas ou se, como
aconteceu na época dos governos de Lula e Dilma, guardarão suas bandeiras em
casa.
9)
A ameaça golpista não está descartada, porém, não tem a força que os
bolsominions acreditavam, por várias razões: a) os Estados Unidos já declararam
não apoiar qualquer aventura golpista e Biden já telefonou a Lula para lhe dar
os parabéns; b) no mesmo dia da apuração, além dos EUA, China, União Europeia,
México, Argentina e outros países reconheceram a vitória de Lula; c) os
presidentes da Câmara Federal e do Senado também reconheceram o novo governo e
até o Inominável, que telefonou para Alexandre de Moraes aceitando o resultado
das eleições; d) a Fiesp, a Febraban e até entidades do agronegócio já se
manifestaram no ano passado, no 7 de setembro, contra qualquer aventura
golpista e pelo respeito ao estado de direito e à democracia; e) a Igreja
Católica e parte da mídia hegemônica assumiram idêntica postura; f) as Forças
Armadas nunca deram um golpe de estado sozinhas. Mesmo em 2016, quando Dilma
foi derrubada, houve um amplo leque de forças, sobretudo civis, que
“legitimaram” o golpe de estado. Em 1964, aliás, também foi assim, apesar do
protagonismo assumido pelas Forças Armadas. Hoje, concretamente, o golpismo se
resume ao movimento dos caminhoneiros, que pode ser facilmente desarticulado
pela Polícia Federal ou pela Polícia Rodoviária Federal, por pressão do
Judiciário, e às loucuras de Roberto Jefferson e da pistoleira espanhola Carla Zambelli, que podem ter agido do modo
como agiram para incentivar uma ação das milícias paramilitares, o que não
aconteceu. Sem uma articulação de
forças que envolve planejamento, logística e sobretudo o apoio do Exército, da
Polícia Militar, do STF, da classe média e sobretudo dos EUA, não se faz golpe
de estado. Ações isoladas são demonstrações psiquiátricas, patéticas, nada
mais. Claro que haverá tentativas golpistas contra Lula, sobretudo com um
Congresso Nacional dominado pela direita, mas o que vemos hoje é algo tão
bizarro e tosco quanto o desfile de tanques velhos da Marinha soltando fumaça
preta no 7 de setembro.
A
existência dessas milícias e de arsenais privados de armas, porém, ameaçam a
democracia e Lula precisa, em seu primeiro ano de mandato, adotar uma política
de desarmamento, que inclua o fim dos clubes de tiro e de caçadores de animais.
Não será uma tarefa fácil desarmar os fascistas e para isso o Congresso deve
votar novas leis específicas e a Polícia Federal ser chamada, sempre que for
necessário.
10) O bolsonarismo, enquanto ideologia, prática
política, conjunto de preconceitos, discurso de ódio e ações de violência
continuará a existir por anos ou décadas. Assim como a Alemanha, após a derrota
na II Guerra Mundial, iniciou um processo de desnazificação, com o julgamento e
prisão dos criminosos nazistas e a interdição de qualquer tipo de propaganda
inspirada nas ideias de Hitler, precisamos desbolsonarizar o país, em uma ação
que envolva a educação, a imprensa, o judiciário, campanhas públicas para a
reeducação da sociedade e a dissolução das Polícias Militares e outras
organizações terroristas. É necessário desarmar e prender os milicianos, os
agropecuaristas envolvidos em atos de violência no campo e a adoção de leis
duras que punam qualquer ação de racismo, homofobia ou misoginia. As
instituições religiosas precisam pagar impostos e serem orientadas a não
realizarem discursos de ódio, sob pena de responder a ações legais. As Forças
Armadas devem cumprir apenas a função de defender a soberania do território
nacional contra agressões externas, sendo necessário para isso alterar a
Constituição. Por fim, todos os responsáveis por atos de corrupção, violência ou
propaganda de ódio durante o período bolsonarista precisam ser presos, julgados
e condenados. Tudo isso parece utopia e com certeza não será feito em curto
período de tempo, mas, se não houver uma política eficaz de combate ao
fascismo, seremos novamente vítimas dele em futuro próximo.
11)
Por fim, a economia. O governo Lula não será um governo petista, nem de
esquerda, no máximo de centro-esquerda, em aliança com setores democráticos da
burguesia. O PAPEL HISTÓRICO DE
LULA não é o de liderar a revolução socialista no Brasil, mas sim o de
fortalecer a democracia, o estado de direito, o desenvolvimento econômico com
distribuição de renda e inclusão social, com soberania e defesa dos interesses
estratégicos nacionais. Com Lula será possível fazer com que o Brasil
finalmente ingresse na idade contemporânea, superando o atraso secular do país
em relação às nações desenvolvidas. Cabe a ele a tarefa de impulsionar o
desenvolvimento industrial, científico e tecnológico do país, investir na
educação, na saúde, na cultura, na erradicação da fome e da miséria. Nessa
reinvenção ou refundação do Brasil é preciso defender a visão do país como um
estado laico, que respeite os direitos dos trabalhadores, das mulheres, negros,
índios, homoafetivos e outros grupos sociais discriminados. Hoje, não há
condições objetivas ou subjetivas para que aconteça uma revolução. Fazer com
que o Brasil se torne um país próspero, independente, moderno, que supere a
monocultura para exportação e implemente a reforma agrária, fortaleça a
agricultura familiar e a produção de alimentos orgânicos, sem destruir o meio
ambiente, já será um imenso avanço civilizacional. O principal desafio
econômico de Lula será o de conciliar um programa de reindustrialização do país
com algum controle do teto de gastos e a adoção de uma Nova Legislação
Trabalhista, construída conjuntamente pelo governo federal, as centrais
sindicais e as entidades empresariais. Como isso acontecerá, não tenho a menor
ideia, e com certeza será o maior desafio histórico de toda a carreira política
de um operário metalúrgico pernambucano chamado Luís Inácio Lula da Silva, que
se tornou pela terceira vez presidente do Brasil.
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