quinta-feira, 3 de novembro de 2022

OS DESAFIOS DE LULA


 






1) A vitória de Lula, no contexto internacional, significa o fortalecimento do campo democrático-progressista de esquerda ou centro-esquerda na América  Latina, que inclui hoje Cuba, México, Honduras, Nicarágua, Venezuela, Colômbia, Chile, Bolívia, Peru, Argentina e Brasil, restando ainda enclaves de direita no Equador, Uruguai, Paraguai e em vários países da América Central. Com o retorno do Brasil ao polo progressista, organismos de cooperação regional como o Mercosul, a Unasul e a Alalc, que não têm a participação dos Estados Unidos, ficarão mais fortes, e a Organização dos Estados Americanos  (OEA), ou o “ministério das colônias ianques”, segundo Che Guevara, cairá na irrelevância.  

2) O Brasil terá uma presença mais destacada nos Brics, ao lado da Rússia, Índia, China e África do Sul, e talvez o bloco se amplie com o ingresso da Argentina e do Irã. Com isso, o Banco dos Brics poderá substituir as organizações financeiras controladas pelos EUA, financiando projetos de desenvolvimento com juros mais baixos, e em algum futuro os Brics poderão adotar uma moeda própria, em substituição ao dólar. Com o Brasil na vanguarda da América Latina, os acordos comerciais entre os Brics e o Mercosul também poderão crescer, o que contribuirá para o enfraquecimento da hegemonia norte-americana e para a construção de uma nova ordem multipolar.

3) A derrota de Bolsonaro é uma derrota para o fascismo internacional, que até então tinha o Brasil como país-líder, sobretudo em organizações para o combate ao aborto e à assim chamada “ideologia de gênero”. Após a derrota de Trump nas eleições norte-americanas, Bolsonaro passou a ser o líder de referência dos movimentos fascistas, que hoje estão no poder na Hungria, Polônia, Itália, Suécia e outros países europeus.

4) No plano nacional, a primeira observação importante a ser realizada é que as eleições mostraram um Brasil dividido: enquanto o Sul, Sudeste e Centro-Oeste deram a vitória a Bolsonaro, o Norte e o Nordeste deram a vitória final a Lula. Um país dividido é sempre mais difícil de ser governado e Lula terá que adotar uma política de curto prazo para ampliar a sua popularidade e conquistar corações e mentes até agora contrários ao petista.

5) Esta divisão acontece também nos governos estaduais, que igualmente estão polarizados, 11 governadores estão alinhados com Lula e 14 contra. Como os estados e municípios dependem de verbas federais, porém, talvez Lula consiga costurar, com prefeitos e governadores de oposição, uma política de convivência mutuamente satisfatória, que evite uma ruptura e conflito entre o Executivo Federal e os governos estaduais e municipais.

6) No Congresso Nacional, essa polarização adquire outro contorno, pois mais da metade do Congresso Nacional é controlado pela direita e pela extrema-direita. Os partidos da coligação de Lula somam pouco mais de cem deputados, o que significa a necessidade de se obter apoio de outras legendas e parlamentares para a aprovação dos projetos do Executivo. Geraldo Alckmin foi escolhido para ser o vice de Lula exatamente para desempenhar esse papel: o de conversar com deputados e senadores do MDB, PSDB, União Brasil e outros do Centrão que eventualmente possam somar forças à bancada governista. Não será uma tarefa fácil e, caso fracasse, nada impede que o Congresso Nacional tente votar o impeachment de Lula. Aguardemos.

7) A Lei de Diretrizes e Bases Orçamentárias, ou LDO, para 2023 já foi aprovada, com cortes significativos para as áreas de saúde, educação, ciência e tecnologia etc. Lula terá de dialogar com o Congresso para mudar a LDO, caso queira, em seu primeiro ano de governo, retomar programas sociais como o Minha Casa Minha Vida, o Ciência sem Fronteiras etc.

8) Além das articulações políticas em Brasília, os movimentos sociais terão importância fundamental para pressionar o Congresso Nacional a votar a favor das pautas sociais; resta saber se os partidos de esquerda, centrais sindicais, entidades de negros, mulheres, estudantes etc. serão protagonistas ou se, como aconteceu na época dos governos de Lula e Dilma, guardarão suas bandeiras em casa.

9) A ameaça golpista não está descartada, porém, não tem a força que os bolsominions acreditavam, por várias razões: a) os Estados Unidos já declararam não apoiar qualquer aventura golpista e Biden já telefonou a Lula para lhe dar os parabéns; b) no mesmo dia da apuração, além dos EUA, China, União Europeia, México, Argentina e outros países reconheceram a vitória de Lula; c) os presidentes da Câmara Federal e do Senado também reconheceram o novo governo e até o Inominável, que telefonou para Alexandre de Moraes aceitando o resultado das eleições; d) a Fiesp, a Febraban e até entidades do agronegócio já se manifestaram no ano passado, no 7 de setembro, contra qualquer aventura golpista e pelo respeito ao estado de direito e à democracia; e) a Igreja Católica e parte da mídia hegemônica assumiram idêntica postura; f) as Forças Armadas nunca deram um golpe de estado sozinhas. Mesmo em 2016, quando Dilma foi derrubada, houve um amplo leque de forças, sobretudo civis, que “legitimaram” o golpe de estado. Em 1964, aliás, também foi assim, apesar do protagonismo assumido pelas Forças Armadas. Hoje, concretamente, o golpismo se resume ao movimento dos caminhoneiros, que pode ser facilmente desarticulado pela Polícia Federal ou pela Polícia Rodoviária Federal, por pressão do Judiciário, e às loucuras de Roberto Jefferson e da pistoleira espanhola  Carla Zambelli, que podem ter agido do modo como agiram para incentivar uma ação das milícias paramilitares, o que não aconteceu. Sem uma articulação de forças que envolve planejamento, logística e sobretudo o apoio do Exército, da Polícia Militar, do STF, da classe média e sobretudo dos EUA, não se faz golpe de estado. Ações isoladas são demonstrações psiquiátricas, patéticas, nada mais. Claro que haverá tentativas golpistas contra Lula, sobretudo com um Congresso Nacional dominado pela direita, mas o que vemos hoje é algo tão bizarro e tosco quanto o desfile de tanques velhos da Marinha soltando fumaça preta no 7 de setembro.

A existência dessas milícias e de arsenais privados de armas, porém, ameaçam a democracia e Lula precisa, em seu primeiro ano de mandato, adotar uma política de desarmamento, que inclua o fim dos clubes de tiro e de caçadores de animais. Não será uma tarefa fácil desarmar os fascistas e para isso o Congresso deve votar novas leis específicas e a Polícia Federal ser chamada, sempre que for necessário.

10) O bolsonarismo, enquanto ideologia, prática política, conjunto de preconceitos, discurso de ódio e ações de violência continuará a existir por anos ou décadas. Assim como a Alemanha, após a derrota na II Guerra Mundial, iniciou um processo de desnazificação, com o julgamento e prisão dos criminosos nazistas e a interdição de qualquer tipo de propaganda inspirada nas ideias de Hitler, precisamos desbolsonarizar o país, em uma ação que envolva a educação, a imprensa, o judiciário, campanhas públicas para a reeducação da sociedade e a dissolução das Polícias Militares e outras organizações terroristas. É necessário desarmar e prender os milicianos, os agropecuaristas envolvidos em atos de violência no campo e a adoção de leis duras que punam qualquer ação de racismo, homofobia ou misoginia. As instituições religiosas precisam pagar impostos e serem orientadas a não realizarem discursos de ódio, sob pena de responder a ações legais. As Forças Armadas devem cumprir apenas a função de defender a soberania do território nacional contra agressões externas, sendo necessário para isso alterar a Constituição. Por fim, todos os responsáveis por atos de corrupção, violência ou propaganda de ódio durante o período bolsonarista precisam ser presos, julgados e condenados. Tudo isso parece utopia e com certeza não será feito em curto período de tempo, mas, se não houver uma política eficaz de combate ao fascismo, seremos novamente vítimas dele em futuro próximo.        

11) Por fim, a economia. O governo Lula não será um governo petista, nem de esquerda, no máximo de centro-esquerda, em aliança com setores democráticos da burguesia. O PAPEL HISTÓRICO DE LULA não é o de liderar a revolução socialista no Brasil, mas sim o de fortalecer a democracia, o estado de direito, o desenvolvimento econômico com distribuição de renda e inclusão social, com soberania e defesa dos interesses estratégicos nacionais. Com Lula será possível fazer com que o Brasil finalmente ingresse na idade contemporânea, superando o atraso secular do país em relação às nações desenvolvidas. Cabe a ele a tarefa de impulsionar o desenvolvimento industrial, científico e tecnológico do país, investir na educação, na saúde, na cultura, na erradicação da fome e da miséria. Nessa reinvenção ou refundação do Brasil é preciso defender a visão do país como um estado laico, que respeite os direitos dos trabalhadores, das mulheres, negros, índios, homoafetivos e outros grupos sociais discriminados. Hoje, não há condições objetivas ou subjetivas para que aconteça uma revolução. Fazer com que o Brasil se torne um país próspero, independente, moderno, que supere a monocultura para exportação e implemente a reforma agrária, fortaleça a agricultura familiar e a produção de alimentos orgânicos, sem destruir o meio ambiente, já será um imenso avanço civilizacional. O principal desafio econômico de Lula será o de conciliar um programa de reindustrialização do país com algum controle do teto de gastos e a adoção de uma Nova Legislação Trabalhista, construída conjuntamente pelo governo federal, as centrais sindicais e as entidades empresariais. Como isso acontecerá, não tenho a menor ideia, e com certeza será o maior desafio histórico de toda a carreira política de um operário metalúrgico pernambucano chamado Luís Inácio Lula da Silva, que se tornou pela terceira vez presidente do Brasil.

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