INVOCAÇÃO À MÚMIA
Estas ravinas de osso e de
pele
por onde começam as trevas
do absoluto, e a pintura
desta boca
que fechas como uma
cortina
E o ouro que te desliza em
sonho
a vida que te despoja de
ossos,
e as flores deste olhar
falso
por onde reencontras a luz
Múmia, e estas mãos de
fusos
para remexer nas tuas
entranhas,
estas mãos onde a sombra
espantosa
toma o aspecto de um
pássaro
Tudo isso de que a morte
se orna
como de um rito aleatório,
esta conversa de sombras,
e o ouro
onde bóiam as negras
entranhas
Por aí é que eu te
alcanço,
ardida senda das veias, e
o ouro
é como a minha dor
o testemunho certo e pior
A ÁRVORE
Esta árvore e o seu
frémito
sombria floresta de
apelos,
de gritos,
devora
o obscuro coração da
noite.
Vinagre e leite, o céu, o
mar,
a massa espessa do
firmamento,
tudo conspira no
estremecimento
que habita o denso coração
da sombra.
Um coração aberto, um
astro duro
que em dois se divide e no
céu se difunde,
o límpido céu fendido
no instante do sol
nascente
- fazem todos o mesmo
ruído
que a noite e a árvore no
centro do vento.
GRITO
O pequeno poeta celeste
Abre ao peito as gelosias.
Entrechocam-se os céus. O olvido
Desenraíza a sinfonia.
Abre ao peito as gelosias.
Entrechocam-se os céus. O olvido
Desenraíza a sinfonia.
Palafreneiro a casa louca
Que te põe a guardar lobos
Não suspeita das cóleras
Geradas na grande alcova
Da abóbada sobre nós absorta.
Que te põe a guardar lobos
Não suspeita das cóleras
Geradas na grande alcova
Da abóbada sobre nós absorta.
Por consequência noite e
silêncio
Reprimi qualquer impureza
O céu a grandes passadas
Cruza os ruídos.
Reprimi qualquer impureza
O céu a grandes passadas
Cruza os ruídos.
A estrela devora. O céu
oblíquo
Rompe o voo para o alto
A noite varre os resíduos
Do deleitoso repasto.
Rompe o voo para o alto
A noite varre os resíduos
Do deleitoso repasto.
Na terra caminha uma lesma
Mil brancas mãos a aplaudem
Uma lesma sobe ao sítio
De onde se evolou a terra.
Mil brancas mãos a aplaudem
Uma lesma sobe ao sítio
De onde se evolou a terra.
Anjos, que nenhuma
obscenidade
Inspira, em paz regressavam
Quando se ergueu a voz da verdade
Do espírito que os chamava.
Inspira, em paz regressavam
Quando se ergueu a voz da verdade
Do espírito que os chamava.
O sol mais baixo que o dia
Evaporava o mar todo
Nasceu na terra confusa
Um estranho mas nítido sonho.
Evaporava o mar todo
Nasceu na terra confusa
Um estranho mas nítido sonho.
O pequeno poeta perdido
Deixa o lugar além-mundo
Com uma ideia celeste
Contra o coração cabeludo.
Deixa o lugar além-mundo
Com uma ideia celeste
Contra o coração cabeludo.
***
Duas tradições em
vigência.
Mas o pensamento fechado
Não dispõe de qualquer espaço.
Recomeçar a experiência.
Mas o pensamento fechado
Não dispõe de qualquer espaço.
Recomeçar a experiência.
Tradução: Herberto
Helder, In “Doze nós numa corda”. Assírio & Alvim, 1997
POST SCRIPTUM
Quem sou?
De onde venho?
Eu sou o Antonin Artaud
e basta dizê-lo
como sei dizê-lo,
imediatamente
vereis o meu corpo actual
voar em estilhaços
e em dois mil aspectos notórios
refazer
um novo corpo
onde nunca mais
podereis
esquecer-me.
Eu, Antonin Artaud, sou meu filho,
meu pai,
minha mãe,
e eu mesmo.
Eu represento Antonin Artaud!
Estou sempre morto.
Mas um vivo morto,
Um morto vivo.
Sou um morto
Sempre vivo.
A tragédia em cena já não me basta.
Quero transportá-la para minha vida.
Eu represento totalmente a minha vida.
Onde as pessoas procuram criar obras
de arte, eu pretendo mostrar o meu
espírito.
Não concebo uma obra de arte
dissociada da vida.
Eu, o senhor Antonin Artaud,
nascido em Marseille
no dia 4 de setembro de 1896,
eu sou Satã e eu sou Deus,
e pouco me importa a Virgem Maria.
De onde venho?
Eu sou o Antonin Artaud
e basta dizê-lo
como sei dizê-lo,
imediatamente
vereis o meu corpo actual
voar em estilhaços
e em dois mil aspectos notórios
refazer
um novo corpo
onde nunca mais
podereis
esquecer-me.
Eu, Antonin Artaud, sou meu filho,
meu pai,
minha mãe,
e eu mesmo.
Eu represento Antonin Artaud!
Estou sempre morto.
Mas um vivo morto,
Um morto vivo.
Sou um morto
Sempre vivo.
A tragédia em cena já não me basta.
Quero transportá-la para minha vida.
Eu represento totalmente a minha vida.
Onde as pessoas procuram criar obras
de arte, eu pretendo mostrar o meu
espírito.
Não concebo uma obra de arte
dissociada da vida.
Eu, o senhor Antonin Artaud,
nascido em Marseille
no dia 4 de setembro de 1896,
eu sou Satã e eu sou Deus,
e pouco me importa a Virgem Maria.
Tradução: Aníbal
Fernades, publicada em Eu, Antonin Artaud,
Hiena, 1988.
(NO TOPO DAS ESSÊNCIAS)
No topo das essências
fixadas, correspondente às
inumeravéis modalidades da matéria, existe aquilo que, na
subtileza das essências, na violência do fogo ígneo
corresponde aos princípios geradores das coisas, aquilo
que o espírito que pensa pode denominar princípios, os
quais porém correspondem, em relação à totalidade
fervente das coisas, a graus conscientes da Vontade na
Energia.
Não existem princípios da matéria subtil ou do
enxofre ou do sal, mas, para além do sal, do mercúrio ou
do enxofre, matérias ainda mais subtis que, no último
extremo da vibração orgânica, dão conta da diversidade
do espírito através das coisas; e a quem pede lhe sejam
apresentadas as coisas, só os números respondem dando
conta das suas existências separadas.
(...)
inumeravéis modalidades da matéria, existe aquilo que, na
subtileza das essências, na violência do fogo ígneo
corresponde aos princípios geradores das coisas, aquilo
que o espírito que pensa pode denominar princípios, os
quais porém correspondem, em relação à totalidade
fervente das coisas, a graus conscientes da Vontade na
Energia.
Não existem princípios da matéria subtil ou do
enxofre ou do sal, mas, para além do sal, do mercúrio ou
do enxofre, matérias ainda mais subtis que, no último
extremo da vibração orgânica, dão conta da diversidade
do espírito através das coisas; e a quem pede lhe sejam
apresentadas as coisas, só os números respondem dando
conta das suas existências separadas.
(...)
Tradução: Mário Cesariny de Vasconcelos, in “Heliogabalo ou o Anarquista Coroado”,
Amei
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