quarta-feira, 13 de maio de 2015

CONFISSÕES INCONFESSÁVEIS (V)


Um autor é sempre o pior crítico literário de sua obra. Sua opinião, contaminada pela subjetividade, pode conduzir a dois grandes equívocos: o da excessiva indulgência, motivada pelo narcisismo, ou o da autodepreciação, ditada por têmpera masoquista ou simulada modéstia. Em ambos os casos, será difícil separar o seu parecer de uma intenção de propaganda, não sendo raros os casos em que o autor faz a exposição pública de seus ressentimentos: não ter merecido o elogio de seus pares, nem ao menos uma única resenha de seu livro (obviamente) genial. Alguns bradarão a injustiça dos prêmios e concursos, outros acusarão o colega mais conhecido de ter se apropriado de sua ideia (obviamente) genial para um grande romance ou peça de teatro. Poucos se atreverão a analisar a própria escrita como um pintor descreve o seu método de pintar, ou como um compositor expõe o seu processo criativo: a escrita tem (ainda) uma “aura” romantizada, apesar da conhecida anedota de Baudelaire, retomada por Walter Benjamin. Correndo todos os riscos expostos acima, atrevo-me a fazer um breve comentário sobre as fases de minha atividade poética, por um único motivo: é um balanço crítico que faço para mim mesmo, e para aqueles interessados em minha escrita. Em meus três primeiros livros – Sutra (1992), Yumê (1999) e A sombra do leopardo (2001), é visível a influência da Poesia Concreta – especialmente de Haroldo de Campos –, do Neobarroco, da poesia e filosofia chinesa e japonesa e (no caso do último título) de alguns poetas expressionistas de língua alemã, especialmente Georg Trakl e Gottfried Benn. Acredito que este repertório me acompanha até hoje, apesar das mudanças temáticas que aconteceram no livro seguinte, Figuras metálicas (2004), que inicia uma segunda fase de minha escrita, à qual pertencem ainda Fera bifronte (2008), Cores para cegos (2012) e Esqueletos do nunca (2015, este último uma série de aforismos e pequenos poemas em prosa de caráter autobiográfico). Nestas quatro obras, a presença barroca é mais explícita, pelo emprego de recursos e formas poéticas como o anagrama, o enigma, a alegoria, o labirinto de versos e o labirinto de palavras, mas há um elemento novo aqui: o afastamento da ilusão de uma “poesia pura”, abstratizante, e a tentativa de representação do mundo, por exemplo no bestiário incluído em Figuras metálicas, em que baratas, piolhos, pulgas e formigas representam personagens contemporâneos como a atriz de novela, o executivo, o gerente de markerting e o operário fabril. Nos primeiros poemas do volume, também está presente o tema da guerra, e em especial as intervenções imperialistas no Iraque e no Afeganistão (por exemplo, no poema Os budas de Bamyan). Esta mudança temática, embrionária, irá amadurecer na terceira fase de meu trabalho, que inclui, até agora, os Cadernos bestiais, organizados em três volumes, sendo que o primeiro foi publicado em 2015, e o Livro dos orikis, inédito. No primeiro volume dos Cadernos, reuni os dez poemas Antimídia; no segundo, que sairá em 2016, estão os Hinos -- ao Homem de Bem, ao Juiz, ao Médico, ao Fabricante de Cerveja, à Polícia, ao Predicante, ao Humorista, ao Congresso Nacional etc. -- e no terceiro haverá uma série de Retratos -- do Banqueiro, do Filósofo, do Sonegador, do Endividado, do Famoso Romancista, do Poeta Burguês etc. Retrato é um gênero da poesia barroca em que as qualidades (ou defeitos) do retratado são simbolizadas por animais, pedras, flores, frutos, minérios. Posteriormente, reunirei os três cadernos em um único volume, que terá como fio condutor a representação crítica, alegórica, do tempo presente, com o emprego da ironia e da sátira (elementos ausentes, até então, em minha poesia, embora visíveis na prosa do Romanceiro de Dona Virgo). A influência de Brecht e de Maiakovski, nesta terceira fase, é evidente. O livro dos orikis será uma reunião de 18 poemas dedicados aos principais orixás do candomblé, das tradições ketu, jejê e bantu, com uma visada contemporânea. A espiritualidade, aqui, não se divorcia do enfoque crítico das injustiças sociais, ao contrário: as entidades são evocadas – ou invocadas – dentro de uma voluntária parcialidade e posicionamento político. Este é, talvez – e aqui é impossível evitar a subjetividade – o meu livro melhor realizado, em termos poéticos, pela fusão de fundo e forma e por uma espontaneidade musical que surpreendeu o autor. Acrescentar qualquer outra declaração seria condenável prolixidade; creio ter dito o suficiente para delimitar o terreno e expor-me à crítica roedora do tempo e das traças.

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