terça-feira, 24 de março de 2015

TOPOGRAFIAS NÔMADES EM HERBERTO HELDER
















Claudio Daniel

A palavra lugar, segundo o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, deriva do latim locale e significa, entre outras acepções: “1. Espaço ocupado; sítio. 2. Espaço. 3. Sítio ou ponto referido a um fato. 4. Espaço próprio para determinado fim. 5. Ponto de observação, posição, posto. 6. Esfera, roda, ambiente.” (HOLLANDA, 1986: 1051). O poema Lugar, de Herberto Helder, incluído no livro de mesmo título publicado em 1962, anula qualquer delimitação de território, numa aparente rarefação do sentido referencial: não existe aqui nenhuma indicação geográfica ou temporal, próprias da representação mimética. O espaço do poema é o próprio poema, seu tempo é o da recitação ou leitura silenciosa e as ações desencadeadas nesta longa composição, dividida em sete partes, são os constantes deslocamentos de sentido das palavras, que se aproximam de uma voluntária abstração semântica: o poema é arquitetado como se fosse uma obra plástica, em que importam mais a escolha das cores, linhas, volumes e planos do que a descrição figurativa. O principal recurso usado por Helder para atingir esse grau de indeterminação na escritura é o esvaziamento semântico, que o próprio autor assim descreve na prosa narrativa curta intitulada O Estilo, que integra o volume Os passos em volta:

Às vezes, uso o processo de esvaziar as palavras. Sabe como é? Pego numa palavra fundamental. Palavras fundamentais, curioso... Pego numa palavra fundamental: Amor, Doença, Medo, Morte, Metamorfose. Digo-a baixo vinte vezes. Já não significa. É um modo de alcançar o estilo. (HELDER, 2005: 13).

A primeira parte do poema, que começa com o verso “Uma noite encontrei uma pedra”, já apresenta algumas das palavras fundamentais inseridas pelo autor ao longo da composição e que funcionam como os motivos condutores numa obra musical: noite, pedra, sino, árvore, sono, sangue, entre outras. Estas palavras, comuns ao repertório da poesia simbolista e mesmo romântica, são dispostas em diferentes combinações e permutações ao longo do texto: elas não têm sentido fixo, mas sugerem uma pluralidade de possíveis interpretações, numa espécie de mandala caleidoscópica que o poeta propõe a seus leitores. A palavra cidade, por exemplo, que aparece na seção IV do poema, em cada estrofe é acompanhada de outras unidades semânticas que contaminam, ampliam e alteram o seu significado, numa aparente livre associação de imagens e camadas referenciais que se aproximam de um deliberado caos: cidades cor de pérola, cidades absolutas, cidades esquecidas, cidades femininas, cidades doces, cidade voltada para dentro e outras variações que atravessam o poema, em “movimentos de repetição e deslocamento (que) delimitam uma zona ou fronteira simbólica que nos permite restabelecer, ainda que provisoriamente, uma nova ordem do mundo”, nas palavras de Lilian Jacoto, em ensaio publicado sobre A máquina lírica no livro Soldado ao laço das constelações: Herberto Helder (JACOTO, 2011: 62). Ou seja: as palavras fundamentais, na poesia de Helder, criam um novo lugar semântico, “rebatizando seus elementos e atribuindo-lhes novas e sempre outras funções.” (idem).

A combinação e permutação de elementos, assim como a criação de novos conteúdos ou imagens do mundo, são operações de uma lógica distinta daquela da invenção mimética tradicional, em que o discurso poético desenha cenários perceptíveis pelos cinco sentidos: na poesia de Helder vigora uma lei da metamorfose, que o próprio poeta cita em Teoria das cores, fábula breve que também integra o volume Os passos em volta. A história é bem conhecida: um pintor se propõe a retratar um peixe vermelho, mas, numa súbita violação das leis naturais, este se transforma num peixe negro, acontecimento que motiva o artista a refletir sobre o caráter mágico e mutável das coisas: “existia apenas uma lei abrangendo tanto o mundo das coisas como o da imaginação. Era a lei da metamorfose” (HELDER, 2005: 21-22). Esta palavra é um talismã e uma das chaves de leitura essenciais para a compreensão de sua obra, oferecendo a possibilidade de aproximações com Camilo Pessanha, Mário de Sá-Carneiro, Fernando Pessoa (Ele Mesmo) e o Surrealismo, além das evidentes relações com o pensamento hermético. No caso específico de Helder, metamorfose é sinônimo de hibridismo, conforme diz Maria Estela Guedes: “É a transmutação do corpo em espelho, em metal ou em vegetal; é a transmutação da noite em matéria orgânica; é a transmutação do poema em animal” (GUEDES, 2011: 19). A palavra híbrido, recorda a autora, deriva do grego hybris, que significa “excesso, paixão, orgulho, transgressão dos limites, violação das leis naturais, prole resultante do cruzamento de indivíduos que pertencem a espécies diferentes” (idem, 15), e é exatamente o seu significado na biologia que nos parece mais pertinente para a discussão da poética helderiana, onde os “seres de linguagem (...) são criados por cruzamento de imagens oriundas de diversas espécies de real” (idem). A criação de monstros verbais, similares ao Minotauro, às sereias ou à Medusa, é inevitável nesta insólita engenharia genética, em que não há limites de ordem racional: o poeta trabalha com a “impossibilidade natural absoluta: nem a cobra é raiz nem a rosa tem guelras. Em termos de estética, estamos completamente fora do vínculo ao real próprio dos realismos” (idem, 17).

A fascinação pelo monstruoso, irregular ou disforme, evidente nas vanguardas históricas, e em especial o cubismo e o surrealismo, corresponde, segundo Izabela Leal, a “um projeto da modernidade que tem como objetivo tomar o corpo como possibilidade de desumanização” (LEAL, 2009). A estratégia de intervenção artística pela metamorfose e deformação teve certamente os seus antecessores na poesia do século XIX, e em especial nos autores que leram Charles Baudelaire, como o Cesário Verde de Num bairro moderno (“descobria uma cabeça numa melancia/ e nuns repolhos seios injetados”) e o Lautréamont de Cantos de Maldoror, obra inclassificável nos gêneros literários tradicionais que apresenta figuras híbridas meio humanas, meio animais, meio sobrenaturais, como o homem com cabeça de pelicano, “belo como os dois longos filamentos tentaculiformes de um inseto” (LAUTRÉAMONT: 1997, 28).

O processo da metamorfose, em Helder como em Lautréamont, está atrelado “a um desejo de levar às últimas consequências a compreensão da criação poética como uma operação de desestabilização do sentido”: ao desfigurar – ou refabular – palavra e mundo, o poeta cria novas realidades, realidades estéticas, usando como principal recurso criativo a inusitada associação de imagens. Conforme escreveu Pierre Reverdy, a imagem poética “não pode nascer de uma comparação, mas da aproximação de duas realidades mais ou menos afastadas. Quanto mais as relações das duas realidades forem distantes e justas, tanto mais a imagem será forte, mais força emotiva e realidade poética ela terá” (in PIVA, 2005: 150-51). Esta ideia, que é central no surrealismo e também no futurismo – Marinetti afirmou que “a analogia é nada mais do que o amor profundo que associa coisas distantes, aparentemente diversas e hostis” – (PERLOFF, 1993: 117) deriva do Maneirismo e do Barroco, como bem observou Gustav Hocke em seu livro Homo ludens. A lírica transtornada de Herberto Helder pertence a essa estranha família composta de artistas e poetas para quem “o que importa não é a representação da realidade, mas sim a criação de uma realidade nova que se produz através de uma transfiguração dos objetos, da perda de seu sentido usual”, (Leal, 2009). É a partir destes vetores conceituais que iremos agora comentar o poema Lugar, de Herberto Helder.

A primeira parte da composição, que inicia com o verso “Uma noite encontrei uma pedra”, simula a narrativa de um caminhante noturno, que descreve aquilo que experimenta ao longo de uma jornada solitária, num “grande silêncio para se habitar só em gestos”. Porém, ao contrário do narrador de O sentimento dum ocidental, de Cesário Verde, este sujeito, que nunca é nomeado, não observa edifícios, chaminés, a via férrea, carpinteiros, mas encontra objetos de contorno e substância imprecisos, submetidos a constantes metamorfoses, como esta pedra encontrada no meio do caminho, ora verde, ora azul: “Uma pedra / sem folhas, um sino / sem pensamento”, que irá percorrer todas as seções do poema, não raro em situações contrárias à lógica natural (“Às mulheres amadas darei as pedras voantes”). A abstração da paisagem é realçada pelo uso arbitrário de adjetivos, fora da qualquer acepção dicionarizada (“flor hipnotizada”, “abstrata violência”, “viola tenazmente taciturna”), e de pronomes indefinidos em construções como “Alguma coisa dessas coisas da imobilidade”, “Alguma coisa subida de raízes mais milagrosas” e “Algo não levantado inteiramente da obscuridade”.

O enigma, o paradoxo, a ambiguidade, são os gênios tutelares dessa escritura, onde, de modo similar ao princípio mallarmeano, não importa pintar a coisa, mas o efeito que ela produz – que será eficiente na medida de sua fluidez, imprecisão e pluralidade de rotas de leitura. Helder é um parente espiritual de Camilo Pessanha, sobretudo do Pessanha mais obscuro do que melódico, como no soneto de Clepsidra que começa com o verso “Ó cores virtuais que jazeis subterrâneas”, cuja atmosfera onírica, com imagens de alto impacto estético (“Fulgurações azuis, vermelhas, de hemoptise”, “Abortos que pendeis as frontes de cidra”), antecipam as insólitas arquiteturas helderianas (bem como as de Mário de Sá-Carneiro, em versos como “Idade acorde de Inter-sonho e Lua, / Onde as horas corriam sempre jade”, do poema Distante Melodia, do livro Indícios de Ouro).

A imprecisão voluntária do enunciado, na primeira parte do poema de Helder, é obtida também pela alteridade, em versos como “Som ou degrau que eu beijaria”, “Ou então era alta, ou esmagada, ou degolada, / no meio de um silêncio global”. A conjunção ou, que oferece ao mesmo tempo alternativa e exclusão, cria uma instabilidade no discurso: pode ser isto, pode ser aquilo, não temos um solo firme, uma delimitação de contornos, mas uma abertura para várias possíveis maneiras de imaginarmos o sentido, num desejado caos sensorial da escrita. A transgressão da lógica rotineira manifesta-se ainda pelo uso contínuo de partículas negativas, que simulam a afirmação de algo por sucessivas recusas de caráter enigmático: “Encontrei uma pedra pedra / que não era uma colina com o mês de março em volta / Nem era a boca materna aberta / debaixo dos rios lisos. (...) / Encontrei algo que não andava / pelos montes nem seria atravessado / por uma flecha. E não sangrava. / Que não se ouvia se cantava”. As estranhas afirmações pela negação, de ritmo anafórico e estrutura próxima à da enumeração caótica, combinam-se ao uso de advérbios para aprofundar ainda mais o grau de incerteza e instabilidade do discurso: “Talvez fosse fria / ou vivesse abrasada sobre a ilusão”, “aldeias inteiras cantando sua pureza quase louca”. A palavra-chave que se repete nesta seção do poema, estruturando o ritmo e corporificando a alucinação, é o verbo encontrar, conjugado na primeira pessoa (“Encontrei em mim essa clareira”, “Encontrei um animal desconhecido”, “Encontrei ondas e ondas contra mim”), que conduz as estrofes, num crescendo, até o final de aparente referencialidade, onde nos deparamos com o amor, a morte, o silêncio (“palavras fundamentais”, logo, esvaziadas de sentido) e enfim este verso ambíguo, quase chave de ouro: “ — Se era uma pedra, um sino. Uma vida verdadeira”, que retoma duas imagens recorrentes no texto, a pedra e o sino, em associação com a palavra vida, num jogo entre concreto e abstrato, pessoal e impessoal, vida e linguagem.

O verso, de sintaxe fragmentada, pode ser lido de várias maneiras, por exemplo, a partir da hipótese de ocultamento da conjunção ou: “ — Se era uma pedra, ou um sino. / Ou uma vida verdadeira”, que numa leitura superficial indicaria uma relação antitética entre existência e representação, natureza e artifício. Sem dúvida, toda construção estética é artificial, seja pelos materiais utilizados em sua consecução, seja pela aplicação de técnicas específicas no processo criativo ou pelo artefato artístico em si, mas o trabalho do poeta ou artista não exclui a participação do universo sensorial, como aliás qualquer trabalho humano. O verso poderia ser lido também pelas lentes do fingidor de Fernando Pessoa: esta “vida verdadeira”, com toda a força retórica trazida pelo adjetivo, seria uma ficção semântica, exatamente por se apresentar como algo tão diverso da construção metafórica, que é o recurso formal dominante em todo o poema; negar a metáfora, fazer uma oposição entre ela e a vida, seria uma negação do próprio texto poético. A ambiguidade do verso de Helder, que não se resume a estas duas interpretações, é justamente a sua riqueza, por não constituir um “final” grandiloquente, no espaço onde o leitor aguarda uma conclusão, uma “mensagem”, que o alivie da dura tarefa do entendimento. Sem apresentar nenhuma verdade universal que nos tranquilize e deixando o poema aberto à múltiplas decodificações, este verso pode nos levar a outra discussão, ainda que breve, sobre os diálogos entre subjetividade e artifício na poética helderiana.

Fernando Pessoa, nos Apontamentos para uma estética não-aristotélica, diz: “Toda arte parte da sensibilidade, e nela realmente se baseia” (PESSOA, 1976: 92). Porém, enquanto o artista aristotélico “subordina a sua sensibilidade à sua inteligência, para poder tornar essa sensibilidade humana e universal, ou seja, para a poder tornar sensível e agradável, e assim poder captar os outros”, o artista não-aristotélico (e podemos pensar aqui em Camilo Pessanha, no próprio Pessoa, em Sá-Carneiro e, claro, em Helder) “subordina tudo à sua sensibilidade”, tornando-a “abstrata como a inteligência (sem deixar de ser sensibilidade)” (idem). O texto, datado de 1907 e assinado por Álvaro de Campos, aponta ainda outra importante ruptura com a estética aristotélica: enquanto nesta há uma exigência de que “o indivíduo generalize ou humanize a sua sensibilidade, necessariamente particular e pessoal”, na teoria proposta por Pessoa / Álvaro de Campos “o percurso indicado é inverso: é o geral que deve ser particularizado, o humano que se deve pessoalizar, o ‘exterior’ que se deve tornar ‘interior’ ” (idem, 90). A invenção dos heterônimos por Pessoa é uma leitura pessoal do mundo e da tradição literária, ao mesmo tempo que constitui uma intervenção crítica, mas o autor de Mensagem ainda se viu comprometido com a ideia aristotélica da verossimilhança, e assim cria, para as suas muitas vozes, nomes, biografias, datas e dicções particulares; Ricardo Reis, Álvaro de Campos, Alberto Caeiro, são personagens dramáticos, querem nos convencer de sua existência. Herberto Helder, ao contrário, embora escreva em primeira pessoa, em tom conversacional, não nomeia a si mesmo, não apresenta uma cronologia, não descreve ações reconhecíveis, não conta uma história, de si ou do mundo; ele expressa a sua subjetividade na construção da linguagem, ela própria um corpo feito de palavras. “Se o poema emerge do corpo e é o próprio corpo, seremos levados a considerar que a criação é algo da ordem de uma experiência sensível, que se produz a partir da transformação daquilo ou daquele que lhe dá origem” (LEAL, 2009). Herberto Helder é um poeta fingidor, mas o seu teatro é interno, abstrato, e ele não deseja convencer o leitor da existência de uma realidade linear da qual ele próprio duvida. O eu lírico que aparece em seus poemas é um narrador cético, que faz do próprio poema a sua biografia, artesanato e lugar imaginativo.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

DAL FARRA, Maria Lúcia. A alquimia da linguagem: leitura da cosmogonia poética de Herberto Helder. Lisboa: Imprensa Nacional, 1986.

GUEDES, Maria Estela. A obra em rubro. São Paulo: Escrituras, 2011.

HELDER, Herberto. O Corpo O Luxo A Obra. São Paulo: Ed. Iluminuras, 2000.

HELDER, Herberto. Ou o poema contínuo. São Paulo: Perspectiva, 2006.

HELDER, Herberto. Os passos em volta. Rio de Janeiro: Azougue Edirorial, 2004.

HOLLANDA, Aurélio Buarque de. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

JACOTO, Lilian, e MAFFEI, Luís. Soldado aos laços das constelações: Herberto Helder. Bauru: Lumme Editor, 2011.

JÚDICE, Nuno. As máscaras do poema. Lisboa: Arion, 1998.

LAUTRÉAMONT. Obras Completas (trad. Claudio Willer). São Paulo: Ed. Iluminuras, 2ª. ed., 2005.

MARINHO, Maria de Fátima: Herberto Helder, a obra e o homem. Lisboa: Arcádia, 1982.

PERLOFF, Marjorie. O momento futurista. São Paulo: Edusp, 1993.

PIVA, Roberto. Um estrangeiro na legião. São Paulo: Globo, 2005.

Na internet:

BORGES, Contador. Herberto Helder: a razão da loucura. http://www.revistazunai.com/ensaios/contador_borges_herberto_helder.htm

DANIEL, Claudio. Apontamentos de leitura: Helder e Celan, artigo publicado na revista eletrônica Zunái, http://www.revistazunai.com/ensaios/claudio_daniel_apontamentos.htm

LEAL, Izabela. Corpo, sangue e violência na poesia de Herberto Helder. http://www.revistazunai.com/ensaios/izabela_leal_herberto_helder.htm


WILLER, Claudio. Herberto Helder e a grande poesia portuguesa contemporânea, artigo publicado na revista eletrônica Agulha em 2000, http://www.jornaldepoesia.jor.br/ag9helder.htm

WILLER, Claudio. Conversa sobre Herberto Helder, depoimento publicado no site Triplo V em 2009, http://www.triplov.com/willer/2009/HH.html.

WILLER, Claudio. A obra em aberto: Herberto Helder por Maria Estela Guedes, artigo publicado no site Cronópios em 18/02/2011,
http://www.cronopios.com.br/site/ensaios.asp?id=4907

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