Priscila
Merizzio, autora jovem de Curitiba, publicou em 2014, pela editora Patuá, um
livro que se destaca na poesia brasileira recente: Minimoabismo, que reúne poemas divulgados inicialmente em blogues e
revistas de literatura na internet, como Germina,
Mallarmargens e Zunái. A escrita poética de Priscila Merizzio situa-se num campo diverso
daquele incensado por uma parcela da crítica literária, que valoriza a dicção
coloquial-ingênua e a temática cotidiana, derivadas de uma releitura redutora
do Modernismo. A autora curitibana joga os dados mais longe, ampliando o leque
de referências temáticas e semânticas: é possível observar, em sua poesia,
traços do expressionismo cruel de um Gottfried Benn (“debaixo das unhas / tenho
terra de cemitério’), imagens poéticas à maneira de Lautréamont (“Piazzola é triturado
por uma máquina irlandesa de chope”), a lógica da metamorfose de Herberto Helder e Roberto Piva, que
modifica ou amplia o sentido das palavras (“gárgula gelatinosa”,
“anca-amálgama”) e o recorte elíptico das narrativas, construídas pela
sobreposição de diferentes camadas textuais, numa estética assimétrica, dissonante,
excessiva. O lirismo de Priscila Merizzio é doloroso, melancólico, sem cair,
porém, no sentimentalismo: a autora faz o retrato alegórico de sua própria
subjetividade sem economia de recursos lúdicos e irônicos, recordando, por
vezes, a língua ferina da poeta romena Aglaja Veteranyi: “o pouco de amor ao
próximo que me resta / gira enlouquecido num liquidificador”; “sou feita de
ossos funerários”; “meu coração: cemitério de elefantes” e ainda “filhos que
não tive ou que doei ao circo”. Os personagens de seus poemas podem ser
mitológicos (“Perséfone analisa / a cor da urina dos convidados”, “Netuno puxa
a tampa do ralo”), históricos (“Rasputin degola o títere com um machado mongol”
e “sodomiza a duquesa”), literários (“agora pulsa em meu peito / o espectro de
Frankenstein”), extraídos dos contos de fadas (“Branca de Neve em nado
sicronizado”), do cinema (Jane Birkin, Hitchcock, Truffaut), das ciências
ocultas (Aleister Crowley) ou das artes (Paul Klee, Miles Daves), que
funcionam, muitas vezes, como máscaras dramáticas da própria autora. O pastiche
e a paródia são recursos frequentes nesta poesia que não faz distinção entre o
repertório “culto” – jazz, cinema europeu, pintura de vanguarda – e as
ressonâncias do universo pop – rock and roll, histórias em quadrinhos,
filmes de terror. As referências ao universo zoológico são constantes em Minimoabismo (“animais de rua seguem-me
como a uma andarilha”), em que encontramos moluscos, lobos, serpentes, porcos,
bois, cães, jabutis, sempre nas situações mais inusitadas, em que não faltam
humor, ironia e imagens monstruosas, quase surrealistas, como acontece na
composição intitulada Emergências:
“fêmeas de lagartos da família Teiidae
/ trepam com os próprios cromossomos”. O retrato crítico da realidade comparece
em Minimoabismo, especialmente nos
poemas que tratam da cena undergroud
de Curitiba (“michês queimam crack nas
araucárias”), mas nunca na forma de poemas-crônicas, que mimetizam a linguagem
jornalística: Priscila Merizzio cria pequenas alegorias em que os cenários,
personagens e objetos exteriores traduzem o seu desencanto com a história,
pesadelo do qual James Joyce desejava acordar. Um exemplo dessa lírica cética é
o poema Refúgio, em que lemos versos
como este: “na abóbada / longe das trincheiras da revolução francesa / homens
verdes urinam”. O timbre grotesco, teratológico, está presente inclusive nas
peças de temática erótica do volume, como no curioso poema Ondina emascula Heracles, que diz em seu dístico final: “alforria
rumo ao centro cirúrgico: Eva arrancando / com os próprios dentes os pomos de
Adão”. A poesia corrosiva de Priscila Merizzio é um saudável antídoto à
docilidade milkshake da cena
contemporânea.
(Artigo de Claudio Daniel publicado na edição de março/2015 da revista CULT, na coluna RETRATO DO ARTISTA.)
(Artigo de Claudio Daniel publicado na edição de março/2015 da revista CULT, na coluna RETRATO DO ARTISTA.)
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