Claudio Daniel
A composição poética do português
Herberto Helder baseia-se numa lógica da metamorfose: as imagens poéticas são
alinhadas não como simples metáforas, ou como descrições objetivas das coisas,
mas como sucessão instável de figuras, que perturbam a normalidade da
representação e da leitura. A realidade aparece aqui não como um fato a ser descrito
ou narrado, mas como matéria plástica, construída por analogias, signos que se
movimentam em constante mutação. Essa filosofia compositiva utiliza o discurso
para perturbar o discurso, valendo-se inclusive de recursos como a elipse e o
fragmento, seguindo a estratégia de criar uma realidade própria na escritura: o
poema não representa uma coisa, ele é esta coisa. As linhas funcionam como
notações musicais, definidas pela intenção melódica e rítmica que organiza as
palavras na página-partitura. Assim, por exemplo, no poema Joelhos, salsa, lábios, mapa (que
evidencia, já no título, o recurso de aproximação das palavras sem um nexo
lógico ou sintático aparente): “Abrindo no escuro, durante toda a neve, / os
copos, os vestidos, os mapas. / E dentro de mim, rompendo peixes, / uma noite
sensível cor de martelos. / Esse grito, essa vírgula, esse amor, esse / martelo
louco / nas borboletas. Então o meu cabelo / respirava — cabelo quente, telha /
molhada. / Neve, borboleta, vírgula, estátua”. Esta organização semântica, em
aparente desordem, sem dúvida nos faz lembrar a escrita automática dos
surrealistas, em seu fascínio pelo imprevisto e pelo inverossímil; remete
também a Dadá, a Lautréamont e aos simbolistas franceses, inclusive o último
Mallarmé, que no prefácio do Lance de Dados reivindica
uma estrutura poética similar à da música ouvida em concerto. Helder
pertence à confraria dos autores excêntricos; assim como seus irmãos
espirituais, ele se insurgiu contra o verso clássico, a retórica, a hegemonia
da clareza e da objetividade, optando por uma imprecisão (ou abstração)
voluntária. A preferência pelo obscuro, hermético ou paradoxal aproxima o poeta
português do romeno de língua alemã Paul Celan, autor de versos como estes:
“Verde-bolor é a casa do esquecimento. / Diante de cada portão flutuante
azuleia o teu músico decapitado. / Bate o tambor feito de musgo e amargo pêlo
púbico; / Com o dedo do pé ulcerado desenha a tua sobrancelha na areia. /
Desenha-a, maior do que era, e o vermelho dos teus lábios. / Tu enches aqui as
urnas e alimentas o teu coração.” (Tradução: João Barrento.) A princípio, uma
leitura comparada dos dois poetas pode causar espécie: enquanto o romeno é
dramático, por vezes trágico, orientado por um demiurgo tanático, o português é
epifânico, celebratório, animado pelo princípio de Eros (embora um Eros
travesso, que não exclui a deformação e a crueldade). Celan está embebido de
história, geografia e da saga do povo judeu; Helder movimenta-se fora de planos
reconhecíveis de espaço e tempo, erguendo fronteiras imaginárias (fazendo
lembrar o Rimbaud de Uma Estação no Inferno: “Jamais pertenci a este povo;
jamais fui cristão; sou da raça que cantava no suplício”, na tradução de Ledo
Ivo). Se há uma religiosidade ou mitologia em Helder, ela está mais próxima do
orfismo, da jornada simbólica ao Hades em busca de Eurídice (“Beberei sua boca,
para depois cantar a morte / e a alegria da morte”). No campo semântico, porém,
é possível traçarmos um paralelo entre os dois poetas, começando pela
similaridade de temas ou palavras-chave, extraídas da tradição romântica:
noite, cegueira, loucura, sangue, morte. O uso da analogia e das imagens
poéticas (compreendidas aqui conforme o conceito de Réverdy) também é nítido,
especialmente, na primeira fase de ambos (Papoula e Memória, de Celan, e O Amor em Visita, de Helder). Objetos retirados do
cotidiano, elementos da natureza, instrumentos musicais, estados de espírito,
partes do corpo humano ou substâncias orgânicas são combinados de maneira
inusitada com outros materiais, concretos ou abstratos, em versos de deliberada
alquimia: “crê no escaravelho dentro do feto”; “amamo-nos como papoila e
memória” (Celan, em tradução de João Barrento); “a morte sobe pelos
dedos, navega o sangue”; “a paisagem regressa ao ventre, o tempo / se desfibra”
(Helder). Apesar dessa convergência, é preciso traçar uma distinção fundamental
entre as duas poéticas: em Celan, a imagem é um dos elementos constitutivos do
discurso, que tem uma respiração meditativa, um andamento quase litúrgico (ecoando,
não raro, o hino bíblico); em Helder, ela é a base estrutural; todo o poema se
desencasula a partir de entrecruzamentos de símbolos. A evolução posterior de
ambos irá evidenciar outras diferenças essenciais: enquanto no português há um
crescente desregramento, um fluxo incessante de figuras e percepções, no romeno
revela-se maior equilíbrio, síntese e concentração; essa disciplina severa é
responsável por linhas lacunares, de teor quase oracular, pela concisão e
obscuridade.
A experiência imagética é mais
evidente na lírica erótico-amorosa destes poetas, onde a mulher assume dimensão
sobrenatural, ela é a origem da Criação, o Universo e cada uma de suas
manifestações: “As coisas nascem de ti / como as luas nascem dos campos
fecundos, / os instantes começam da tua oferenda / como as guitarras tiram seu
início da música nocturna” (Helder); “Projecta a sua luz ao longe sobre o
mar, / desperta as luas no estreito e ergue-as sobre mesas de espuma” (Celan,
traduzido por João Barrento). Sem dúvida, essa hipérbole permite diferentes
interpretações, de cunho teológico, metafísico ou psicanalítico; ficando apenas
no campo poético, podemos dizer que essa idealização do feminino motiva o
romeno e o português a uma visualidade radical, a uma estética do excessivo, da
saturação simbólica, de um Eros que fecunda e multiplica os vocábulos, até a
abstração (assim como ocorre nas passagens mais densas do Paraíso de
Dante). Na seara tanática, outra obsessão de ambos, há um corte radical:
em Helder, a morte é um acontecimento simbólico; em Celan, um espectro que
ronda sua carne, que ameaça seu povo de extinção (um registro exemplar é o
conhecido poema Fuga da Morte: “… a morte é um mestre que veio da
Alemanha / arranquem tons mais escuros dos violinos depois feitos fumo subireis
aos céus”, na versão de Barrento). Para evocar o genocídio, promovido pela mãe
de seu idioma, Celan assume um tom mais sombrio, incorporando à sua voz outras
vozes, de poetas que também passaram pelo flagelo da guerra, como Georg Trakl.
Não por acaso, há nesse poema um diálogo intertextual com o poeta austríaco,
vítima de consumo excessivo de entorpecentes, após presenciar os horrores de
Grodek: “Na casa vive um homem que brinca com serpentes” (Celan); “Na sua cova
o mago branco brinca com suas cobras” (Trakl, no poema Salmo, aqui traduzido por Paulo Quintela). Nesta peça, Madame La Mort é uma visitante da
história, que traz consigo a cultura que produziu Goethe e Auschwitz. Celan,
embora estrangeiro (sendo romeno, judeu e exilado em Paris), é um herdeiro
desse território simbólico e cultural, não apenas pelo idioma como pelo diálogo
com a tradição da literatura alemã. Helder, que também é um estrangeiro
em seu isolamento voluntário, cria para si uma tradição, escolhe a sua origem,
incorporando à língua materna referências de outros âmbitos culturais. Sob essa
mirada, Helder encontra-se mais próximo de Sá-Carneiro (outro étranger espiritual)
do que de Fernando Pessoa, que em Mensagem intentou
uma fabulação mítico-poética de Portugal, com a utopia visionária de um Quinto
Império, que sucederia os anteriores (“Grécia, Roma,
Europa, Cristandade…”). Em Celan, há o desespero da história; em Helder, a
refundação da história, por meio da escritura.
BIBLIOGRAFIA
CELAN,
Paul. Sete Rosas Mais Tarde (trad.
João Barrento). Lisboa: Ed. Cotovia, 1993.
CELAN, Paul. A Morte é uma Flor (trad. João Barrento). Lisboa: Ed. Cotovia,1997.
HELDER, Herberto. O Corpo O Luxo A Obra. São Paulo: Ed. Iluminuras, 2000.
LAUTRÉAMONT. Obras Completas (trad. Claudio Willer). São Paulo: Ed. Iluminuras, 2ª. ed., 2005.
RIMBAUD, Arthur. Uma Temporada no Inferno e Iluminações (trad. Ledo Ivo). Rio de Janeiro: Ed. Francisco Alves, 1982.
TRAKL, Georg. Poemas (trad. Paulo Quintela). Porto: Ed. O Oiro do Dia, 1981.
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