GENERAL MANDÍBULA ATACA GOTHAM CITY: A POESIA DE ADEMIR ASSUNÇÃO
Estas
referências são comuns a outros poetas de sua geração, como Maurício Arruda
Mendonça, Marcos Losnak e Rodrigo Garcia Lopes, que compartilham ainda o
interesse pela poesia e concepção de vida dos poetas beats norte-americanos,
como Gregory Corso, Lawrence Ferlinghetti e Allen Ginsberg. A poesia de Ademir
Assunção, no entanto, não se esgota em tais referências: sua temática é mais
ampla, incluindo o retrato alegórico da cidade, com ênfase nos que estão
situados à margem, como as prostitutas, traficantes, menores abandonados e
moradores de rua, a reinvenção de mitos indígenas, gregos e bíblicos (Ulisses na tormenta, Na cova dos leões),
a sensação de deslocamento e incomunicabilidade num mundo cada vez mais
dominado pelo mercado e pela mídia, a loucura belicista, a busca do amor como a
utopia possível, para citar alguns temas recorrentes.
Sua
técnica literária pouco tem a ver com a prosódia beat: basta compararmos um
poema de Allen Ginsberg, como o Uivo,
com seu jorro discursivo que se aproxima da prosa, com O pântano, um dos mais belos poemas de A voz do ventríloquo: “Há uma serpente enrodilhada nas ramagens /
do poema: / cauda verde-turquesa, escamas / mitológicas, cabeça / de névoa”. Este
poema se aproxima da estética neobarroca, não apenas pela riqueza imagética e
metafórica, mas sobretudo pela colagem de referências de diferentes repertórios
culturais, como “um cemitério de aviões de caça da Segunda Guerra” e “uma
rainha que trepa / com o próprio filho” (Jocasta?), “prostitutas chinesas” e
“um monstro de folhagens / e couro cru de crocodilo”. Claro: a montagem ou
justaposição de cenas é uma técnica narrativa do cinema, que está presente em
quase toda a obra de Ademir Assunção, em especial nos livros Cinemitologias e Zona branca, mas também aqui, na
Voz do ventríloquo, assim como o diálogo criativo com o jazz (Billie Holiday na porta dos fundos), a
pintura (O grito) e a televisão (A vida em tecnicolor). Não se trata de
mera exibição de citações cultas, fetichismo que muito afetou a poesia da
década de 1990, mas de releituras que o poeta faz das coisas que fazem sentido
para a sua sensibilidade e compreensão de si mesmo e do mundo, de seus medos,
vivências e obsessões.
Podemos
dizer que a poesia de Ademir Assunção tem um alto grau de sinceridade, mas que
não é confessional, como boa parte da literatura beat – os poemas amorosos de
Allen Ginsberg e os romances de Jack Kerouac, por exemplo, onde são nítidos os
traços autobiográficos. A sinceridade na escrita, é bom ressaltar, não significa
o registro imediato de sensações, o lirismo espontâneo, herdeiro da escrita
automática dos surrealistas (a frase zen-budista “Primeira ideia, melhor ideia”
era uma das favoritas de Ginsberg). Ademir Assunção visa justamente o
contrário, desautomatizar a escrita e o pensamento, para tornar mais afiadas as
palavras da tribo: “eu sou poeta e sigo em frente / em linhas tortas / eu não
lido com palavras mortas”, diz ele no poema Orfeu
nos quintos dos infernos.
A
imaginação poética – melhor dizendo, a máquina de fabricar mitologias – de
Ademir Assunção caminha de mãos dadas com a informalidade de Paulo Leminski,
Roberto Piva e Torquato Neto, três de seus ícones culturais – por isso mesmo já
chamei essa poesia, em outro artigo, valendo-me de um oxímoro, de “formalismo
informal” (Pensando a poesia brasileira
em cinco atos, texto publicado na Zunái,
Revista de Poesia e Debates, na página http://www.revistazunai.com/materias_especiais/claudio_daniel_pensando_a_poesia.htm).
A paródia é um dos recursos mais usados pelo poeta, seja a glosa satírica do
discurso quinhentista, em Máquina
peluda, seja a reapropriação crítica da linguagem e técnica narrativa das
histórias em quadrinhos, em Zona branca
e A voz do ventríloquo, onde aparecem
personagens como o General Mandíbula, O Anjo do Ácido Elétrico e Mister P.,
inventados pelo autor, ao lado de Orfeu, Ulisses, Heráclito, Iemanjá, o Coringa
e King Kong. A própria Poesia, e o seu
irmão Prosa, comparecem nas páginas do Diário
do Ventríloquo, inserções de prosa narrativa com fundo preto e as letras em
cor branca que aparecem em várias seções do livro, como se fosse uma narrativa
paralela, um canto dialogado. A organização dos poemas e textos em prosa
obedece a um princípio não-linear, mimetizando, no próprio corpo semântico, o
caos e a fragmentação do mundo a nossa volta. O fio condutor do livro talvez
esteja no próprio título do volume: é a voz invisível do ventríloquo, esse eu
lírico que percorre as ruas de Gotham City “enquanto o Coringa injeta no braço
esquálido / a última gota da ampola”.
beleza de comentário, Claudio.
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