RITO DA FALA
AO ESPELHO: UMA LEITURA DE RICARDO CORONA
Curare, de Ricardo
Corona (São Paulo: Iluminuras, 2011) é um livro de poemas que faz um
interessante diálogo entre o imaginário indígena (em especial da etnia xetá) e
a herança das poéticas experimentais, investindo na espacialização do texto
para realçar a oralidade, as variações rítmicas e as mudanças de dicção. O
trabalho de Ricardo Corona com a dimensão sonora da palavra (e vale a pena
recordar que o poeta tem dois ótimos CDs de música e poesia, Ladrão de
fogo e Sonorizador) desconsidera as fronteiras entre prosa
e poesia e sintetiza canto, narração e intervenção pictórica, utilizando os
sinais de pontuação como se fossem inscrições rupestres. A variação tipológica
e gráfica dá movimento às sentenças no livro, pensadas como frases sonoras de
uma partitura; neste sentido, o autor potencializa o suporte livro, explorando
suas possibilidades comunicativas. Curare é – entre outras
coisas – uma reflexão sobre o livro, numa época em que as tecnologias
eletrônicas colocam esse tema na ordem do dia. Claro: não se trata de
reivindicar a morte do livro, mas sim de repensarmos o conceito e a estrutura
do objeto, levando em consideração as mudanças na sensibilidade do leitor
contemporâneo, operadas pela navegação no ciberespaço. Não lemos hoje do mesmo
modo como no século XVIII, sempre da esquerda para direita, numa sequência
linear do tipo início-meio-fim (que remete à lógica evolutiva do pensamento
ocidental, desde a Bíblia e Aristóteles): o hipertexto abre “janelas”, páginas
que se sobrepõem a páginas, e a leitura principal não tem mais um ponto de
partida fixo: na tela do computador, todas as direções são possíveis, muda a
concepção de espaço, e também a de tempo, que não mais é retilíneo, mas
circular). A etnopoesia dialoga com as vanguardas, como bem observou Jerome Rothenberg:
o ritual africano ou indígena é uma somatória de linguagens (musical, poética,
coreográfica, dramática, sem esquecermos das tatuagens, adereços e vestes
cerimoniais) que transcende as divisões estanques da arte ocidental e remete a
outras concepções de espaço, tempo e movimento, que derivam de concepções
mitopoéticas coletivas: a arte é uma dimensão do sagrado e ato de afirmação da
identidade cultural da comunidade. Poetas como Ricardo Aleixo, Marcelo
Sahea e Ricardo Corona realizam jornadas criativas que resgatam formas de
expressão “xamânicas”, via performances (e o próprio livro pode ser uma
performance), mas com outro sentido – ou sentidos: não partilhamos mitos
coletivos, somos órfãos das utopias, não temos deuses a descobrir em sonhos,
logo, o poeta não tem mais a função mágica e social que exercia nas comunidades
antigas. Ele é o xamã de uma era cética, o questionador, o dissidente
luciferino que não indica rotas ou saídas, mas executa sua dança-mandala no
centro do caos.
Curare é um
labirinto dividido em doze partes, que prescindem da leitura sequencial. A
primeira palavra do primeiro poema da primeira seção do livro, Entxeiwi,
significa “bom dia” no idioma xetá, com uma conotação próxima ao carpe
diem latino, e era empregada em um rito oral realizado por José
Luciano da Sila (ou Nhangoray, “Mão Pelada”) em frente ao espelho, conforme nos
explica Ricardo Corona, na introdução do livro. A palavra se relaciona, no
campo referencial, a outras dispostas no texto, como constelações,
arquipélagos, tempo, estrelas, mundo: a existência observada por Héta,
“fogo (que) vem com sua dança desviante”. O tema se desdobra nas peças
seguintes, em que osonho, a embriaguez, o reflexo no espelho e
a tela do cinema são outros planos ou retalhos de significação:
ver o mundo é nomeá-lo, criá-lo pela palavra poética. Este é o ponto de partida
de uma difusa narrativa, ou conjunto de narrativas que se entrecruzam: o livro
é uma esfinge que não traz respostas ao leitor, apenas sinais para possível
decodificação (outro elemento do labirinto, além da pluralidade de rotas: a
escrita cifrada, simbólica, que surge no caminho da iniciação, e as armadilhas
que representam perigo aos que não decifraram corretamente os sinais). O
elemento lúdico é o fio condutor que permeia todo o poema (se pensarmos
em Curare como um poema longo, expandido em doze cintilações):
o poeta joga com as palavras, ocultando, modificando, ludibriando ou ampliando
suas significações, inserindo-as em diferentes estruturas, desafiando o leitor
a completar ou desfazer o quebra-cabeças, e remontá-lo assumindo todos os
riscos, incluindo o da incomunicabilidade, que é talvez a única chance de
comunicabilidade (na resenha de Cinemaginário, livro de estreia de
Ricardo Corona, publicado em 1998, escrevi: “O cinema é a construção de uma
realidade imaginada, como o sonho, que não é menos real (ou ilusório) do que a
existência cotidiana, como na parábola de Chuang Tzu. O cinema é menos um
espelho, um eco do real do que uma metáfora, ou conceito do mundo. Olhar uma cena
ou paisagem, de certo modo, é inventá-la; é dar nome às coisas, como Adão, numa
dialética entre o fora e o dentro, a parte e o todo. O sujeito cria o mundo e é
criado por ele. Viver é navegar entre paradoxos, e saber quem olha, quem é
visto não é o menor de todos.”).
(Publicado em fevereiro na revista Mallarmargens)
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