segunda-feira, 18 de abril de 2011

IMAGENS DO JAPÃO NA POESIA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA (IV)


Manuel Bandeira, que traduziu quatro haicais de Bashô a partir de versões para línguas ocidentais, também dialogou com a forma do haicai, como nesta conhecida composição:

HAICAI TIRADO DE UMA FALSA LÍRICA DE GONZAGA

Quis escrever “Amor”
No tronco de um velho freixo:
“Marília” escrevi.

O poema de Bandeira não tem o rigor métrico e formal das peças de Guilherme de Almeida, mas apresenta o signo da estação do ano, ou kigo (“No tronco de um velho freixo”), deslocado do primeiro para o segundo verso, e faz um interessante jogo entre o concreto e o abstrato, a natureza e o mundo subjetivo, que remetem à tradição poética japonesa, além da curiosa aproximação intertextual com Tomás Antônio Gonzaga, autor de Marília de Dirceu. Em outra composição de Bandeira, intitulada Vozes da noite, o poeta pernambucano se aproxima ainda mais da dicção de Bashô:

Cloc cloc cloc...
Saparia no brejo?
Não, são os quatro cãezinhos policiais bebendo água.

O humor, a irreverência, a aparente ingenuidade do poema, que recorda jogos verbais infantis, o uso da onomatopeia para reproduzir o som dos sapos na água (referência direta ao poema de Bashô) e o recorte quase fotográfico dos quatro cães policiais bebendo água indicam a nítida presença da arte poética japonesa, que Bandeira conheceu nas traduções disponíveis na época para o espanhol, o inglês e o francês. É possível verificarmos a presença do haicai em outros autores de nosso Modernismo, como Oswald de Andrade, cuja poesia-pílula materializa o ideal de síntese e concisão, além da forte presença de imagens, da fala coloquial, de paisagens do cotidiano e do humor. Como exemplo dessa lírica miniaturizada, citamos aqui o poema Noturno:

Lá fora o luar continua
E o trem divide o brasil
Como um meridiano

Paulo Prado, no prefácio que escreveu para o livro Pau-Brasil (1924), de Oswald de Andrade, faz inclusive uma referência à “concisão lapidar” do haicai, e transcreve uma composição de três versos em francês, sem mencionar a autoria: “Lê poete japonais / Essuie son couteau: / Cette fois l’éloquence est morte”. A citação de Paulo Prado não é casual, já que os poetas e intelectuais brasileiros tinham como principal fonte de informação literária os jornais e revistas franceses, por onde devem ter entrado em contato, pela primeira vez, com a poesia japonesa, em traduções literais (além da aproximação que se pode estabelecer entre a extrema concisão vocabular do haicai e os experimentos estéticos da vanguarda europeia, em especial as “palavras em liberdade” do futurismo italiano). Guimarães Rosa, em seu único livro de pomas, Magma, datado de 1937 (mas publicado postumamente, 60 anos depois) também apresenta interessantes criações que dialogam com o haicai, como na peça intitulada Pudor estóico:


Acuado entre brasas,
um escorpião volve o dardo
e faz o hara-kiri...

Neste poema, além da brevidade, temos a imagem como força propulsora da ação poética e o diálogo semântico com a língua e a cultura japonesas, pela incorporação da palavra hara-kiri (o suicídio ritual dos samurais, também conhecido como seppuku), que torna mais evidente a intertextualidade. A incorporação de elementos japoneses, chineses, indianos, escandinavos e de outros repertórios é uma constante na criação literária de Rosa, culminando no romance Grande Sertão: Veredas (1945), onde podemos encontrar ressonâncias da saga islandesa, do romance de cavalaria anglo-saxão e da delicada construção de paisagens que remete à lírica tradicional japonesa.

Um comentário:

  1. Cláudio,

    a apropriação das imagens japonesas em nossa literatura resultou em muitos bons momentos de alta poeticidade. Acho verdadeiramente revigorante toda aquela contenção (requintada) de signos, que exige do leitor quase que uma suspensão respiratória, como se o texto não fosse lido, mas introvertido, como se a pele o absorvesse e ele passasse a viver lado a lado com a alma. Para mim, o melhor fruto do haicai é aquele colhido, captado no cotidiano mais despretensioso, como o poema Noturno do Oswald, ou Romance II, do livro Magma de Guimarães Rosa: "Bem na frente/ de um retrato empoeirado/uma aliança esquecida..."

    Forte abraço!

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