Como traduzir essa vivência estética e filosófica para o universo cultural do Ocidente, em que predominam as distinções dualistas entre matéria e espírito, sentimento e inteligência, natureza e artifício, vida e linguagem? A história das relações entre o Japão e o Ocidente, e em especial com as nações de língua portuguesa, é uma história de fascinação, conflito e estranhamento que começa no século XVII, na chamada era dos ditadores, entre o final do período Ashikaga (1333-1582) e o início do período Edo (1616-1868). Os navegantes, missionários e comerciantes portugueses foram os primeiros ocidentais a entrar em contato com a sociedade japonesa (lembremos que o Japão é citado nos Lusíadas de Camões), e essa aproximação resultou em acordos comerciais, trocas culturais e práticas de evangelização.
A primeira referência ao haicai em Portugal, por exemplo, data de 1604, quando o padre João Rodrigues publicou a sua Arte da lingoa de Iapam, publicada antes da expulsão dos jesuítas do arquipélago japonês, que permaneceu fechado aos estrangeiros até a Restauração Meiji (1866-1912), quando o imperador japonês decide restabelecer as relações comerciais e culturais com a Europa. Somente a partir do final do século XIX a cultura japonesa volta a ser estudada em profundidade pelos portugueses, destacando-se a obra de Wenceslau de Moraes, que realizou várias viagens ao Extremo Oriente e publicou livros como Cartas do Japão (1904), O culto do chá (1905) e Relance da alma japonesa (1928). O escritor português, longe de assumir uma postura eurocêntrica, deixou-se contaminar pelo novo ambiente cultural, adotando inclusive o modo de vestir e os hábitos alimentares nipônicos, além de adotar o budismo zen como prática religiosa. O interesse despertado pelas artes tradicionais japonesas nesse período encantou também os poetas e pintores franceses, em especial aqueles ligados ao Simbolismo e do Impressionismo, o que contribuiu para a divulgação internacional de criações originais da cultura japonesa, como as gravuras coloridas chamadas de ukyo-ê, ou “imagens do mundo flutuante”, as peças de teatro nô, as cerâmicas tradicionais e, a partir de 1905, do haicai, com a publicação de uma antologia de poesia clássica japonesa traduzida para o francês por Julian Vacance.
Esta tradução, assim como muitas outras que se seguiram, nas décadas seguintes, valorizaram sobretudo a descrição de cenários, eventos, personagens, o clima temático e emocional dos poemas, com ênfase nos aspectos folclóricos ou míticos, interpretados à moda ocidental, deixando em segundo plano os elementos estético-formais, reduzidos à forma do terceto de cinco, sete e cinco sílabas. Ou seja, a poesia japonesa é traduzida, inicialmente, na forma de texto, excluindo-se as particularidades de sua escrita, em que a construção do sentido se dá por analogia, pela associação de diferentes ideogramas que reproduzem imagens, e não apenas sons e conceitos. Os ideogramas, dispostos em colunas verticais que devem ser lidos de baixo para cima, da direita para a esquerda, são desenhados com uma intenção estética, não apenas comunicativa. Conforme Kunio Komparu, “poderíamos comparar o enredo” (de uma peça nô) “a um poema do tipo haicai, caligrafado num cartão especial: não se lêem apenas as palavras, mas se apreciam o arranjo e a forma dos caracteres, a utilização das pinceladas de tinta e mesmo os espaços deixados em branco, assim como no teatro nô admiramos não apenas o entrecho, mas o modo de atuar, o canto e o ritmo”. No livro A arte no horizonte do provável, Haroldo de Campos afirma o seguinte: “O elemento visual na poesia japonesa é algo que lhe é intrínseco, que participa de sua própria natureza. Não se trata, apenas, da metáfora visual, daquilo que Ezra Pound denominava ‘fanopeia’ (...), mas de alguma coisa ainda mais essencial, que radica na própria estrutura do kanji, o ideograma chinês que os japoneses importaram para sua escrita na segunda metade do século III de nossa era. O kanji, que evoluiu de uma fase pictográfica (desenho do objeto) para uma notação extremamente sintética e estilizada, é em si mesmo uma verdadeira metáfora gráfica, tanto mais complexa quanto mais ‘abstratas’ as ideias a veicular, pois com este sistema de escrita se podem, como é óbvio, representar não apenas coisas do mundo real, como também emoções, sentimentos etc. (daí a pertinência do termo ideograma, ou representação gráfica de ideias).” Como assinala Haroldo de Campos, “o primeiro orientalista a chamar a atenção dos ocidentais para a importância do ideograma” foi Ernst Fenollosa, autor de Os caracteres da escrita chinesa como instrumento para a poesia, publicado postumamente, por Ezra Pound, em 1936. Neste trabalho, Fenollosa aponta o caráter analógico do princípio de composição do ideograma, afirmando que “nesse processo de compor, duas coisas que se somam não produzem uma terceira, mas sugerem uma relação fundamental entre ambas. Por exemplo, o ideograma para ‘convidado’ mostra um homem e uma fogueira.”
O cineasta russo Sergei Eisenstein, em seu ensaio O principio cinematográfico e o ideograma (1929), também aborda o caráter analógico da escrita ideográfica, afirmando o seguinte: “A questão é que a cópula (talvez fosse melhor dizer a combinação) de dois hieróglifos da série mais simples não deve ser considerada como uma soma deles e sim como seu produto, isto é, como um valor de outra dimensão, de outro grau; cada um deles, separadamente, corresponde a um objeto, a um fato, mas sua combinação corresponde a um conceito. Do amálgama de hieróglifos isolados saiu o ideograma. A combinação de dois elementos suscetíveis de serem ‘pintados’ permite a representação de algo que não pode ser graficamente retratado. Por exemplo, o desenho da água e o desenho de um olho significam ‘chorar’; o desenho de uma orelha perto do desenho de uma porta = ‘ouvir’. Mas, isto é... montagem! Sim, é exatamente isto que fazemos no cinema, combinando tomadas que pintam, de significado singelo e conteúdo neutro – para formar contextos e séries intelectuais”. A montagem, inerente ao princípio da escrita ideográfica, também comparece, no plano semântico, num recurso peculiar da poesia japonesa chamado kakekotoba, ou “palavra pendurada”, que Haroldo de Campos define como “um recurso de compressão semântica e ambiguidade poética, algo como a ‘palavra-valise’ de Lewis Carrol e Joyce. Assim, matsubara significa ‘pinheiral’ (matsu, pinheiro; bara, campo), mas, ao mesmo tempo, matsu é um verbo, com a acepção de esperar.” E Donald Keene, citado por Leminski em Matsuo Bashô, A Lágrima do Peixe, faz o seguinte comentário: “A palavra shiranámi, que significa ‘ondas brancas’, poderia sugerir a um japonês a palavra shiráni, que quer dizer ‘desconhecido’, ou ‘námida’, que quer dizer ‘lágrima’ ”. A função do kakekotoba, conclui Keene, “consiste em ligar duas idéias diferentes mediante um giro ou desvio do seu significado próprio”. Fazendo um paralelo com as sagas escandinavas, estudadas por Jorge Luis Borges em Antigas Literaturas Germânicas, poderíamos citar o kenning, tipo bizarro de metáfora em que o sangue é chamado de “água da espada” e o escudo de “lua dos piratas”; porém, a comparação seria imprecisa, pelo alto grau de síntese e ambiguidade da construção poética nipônica. Todos estes aspectos formais, inerentes à língua e à literatura da Terra do Sol Nascente, foram desconsiderados nas primeiras traduções de poesia clássica japonesa, como a de Julian Vacance, e também nas tentativas iniciais de se escrever ou interpretar o haicai em línguas ocidentais, como o português. No livro Trovas populares brasileiras, publicado em 1919, Afrânio Coutinho diz: “Os japoneses possuem uma forma elementar de arte, mais simples ainda que a nossa trova popular: é o haicai, palavra que nós ocidentais não sabemos traduzir senão como epigrama lírico”. A palavra epigrama, conforme diz Massaud Moisés, em seu Dicionário de termos literários, designava, entre os gregos, “toda sorte de inscrição, em túmulos, monumentos, estátuas, medalhas, moedas etc. em verso ou prosa”. A dimensão híbrida do epigrama permite a aproximação com o haicai, que, conforme já vimos, era desenhado num quadro ou inserido num diário de viagem, dialogando assim com as artes visuais e a prosa narrativa. Já a trova, que segundo Moises era sinônimo de cantiga, na Idade Média, e que após o século XVI era equivalente ao que chamamos de quadrinha, também permite um paralelo com o haicai, que se tornou um tipo de poesia bastante popular, sendo praticado tanto nas cortes aristocráticas quanto nos bairros populares e burgueses. No entanto, nem o epigrama nem a trova traduzem, com eficácia, todos os aspectos formais e conceituais do haicai, que é um gênero poético autônomo, sem equivalentes na tradição literária ocidental. No Brasil, houve uma tentativa de recriação do haicai por Guilherme de Almeida, que em 1937 publicou um artigo intitulado Os meus haicais, no jornal O Estado de S. Paulo e dez anos depois o livro Poesia vária, que inclui várias composições em forma de terceto que dialogam com a forma japonesa. O haicai de Guilherme de Almeida tem estrutura métrica rigorosa (e podemos recordar aqui a semelhança entre as medidas japonesas e a redondilha da poesia de língua portuguesa), além de título e rimas, que são inexistentes na poesia nipônica. Podemos observar também artifícios rítmicos e sintáticos que destoam da espontaneidade e naturalidade do haicai, mais próximo da fala coloquial do que da erudita. Vamos comparar um poema de Guilherme de Almeida, intitulado Cigarra, com outro de Bashô, traduzido por Leminski:
Diamante. Vidraça.
Arisca, áspera asa risca o ar. E brilha. E passa.
(Guilherme de Almesda)
Pulgas piolhos
Um cavalo mija do lado do meu travesseiro
(Matsuo Bashô)
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