Um feliz 2012 a todos os meus amigos, com muita alegria, coragem, confiança e ânimo de luta. Sanaúd!
sexta-feira, 30 de dezembro de 2011
quinta-feira, 29 de dezembro de 2011
BAIANOS NA LUTA: ECONOMIA E REALIDADE CUBANA
Médicos brasileiros que estagiaram em Cuba publicam documento relatando a qualidade da saúde, educação e segurança pública no país. Eles integram o movimento "baianos na luta". Veja o texto a seguir, na íntegra:
O sistema organizacional da sociedade cubana garante com excelente qualidade 3 serviços públicos essenciais: saúde, educação e segurança pública. A saúde é acessível a todos, desde os consultórios médicos de família bem próximos até os serviços de excelência do nível terciário. É possível estudar gratuitamente desde os níveis mais básicos até a universidade, mestrados e doutorados com muita qualidade. E mesclando atividades preventivas e um bom policiamento - além da cultura de zelo pelo bem público - quase não se vê sinais de violência, mesmo durante a noite.
Cuba possui uma economia baseada sobretudo na agricultura, herança do período colonial espanhol e americano, com produção importante de açúcar e fumo (matéria-prima dos charutos para exportação). Há ainda a exploração de níquel na parte montanhosa do país. No entanto, 80% dos cubanos vivem na zona urbana das grandes cidades como Havana, Santa Clara e Santiago de Cuba e não há grandes indústrias nestas localidades - com excessão das fábricas de medicamentos e de processamento de minérios.
A ocupação da mão-de-obra urbana gira, sobretudo, em torno dos serviços públicos (muitos médicos, muitos professores, muitos policiais, muitos trabalhadores da construção civil, etc.) e dos conta-propistas (motoristas de táxi, cozinheiras, músicos, etc.). Não existem impostos sobre circulação de mercadorias, renda ou imóveis(ISS, IPTU, imposto de renda...). A principal dificuldade é que, tendo uma área produtiva muito pequena e restrita a uma ilha, quase tudo tem que ser importado. Neste cenário se aplicam vários tipos de alimento (feijão, carne, sementes), roupas, combustíveis e equipamentos eletrônicos. Existe uma situação de iniquidade muito grande pois, apesar de outros países desejarem manter comércio com Cuba, o bloqueio econômico americano impede que outras economias que desembarquem seus navios em Cuba possam realizar comércio por um longo período com os EUA. Desta forma ocorre grande esvaziamento de alimentos e produtos industrializados no país.
Sem dispor de um parque industrial nacional, a maioria dos carros em circulação permanecem os mesmos do período de 1950-1960, com poucos ônibus e elevados preços para os produtos eletrônicos como televisores e geladeiras. A principal matriz energética do país é o petróleo, que move as termelétricas cubanas, mas que é muito escasso e é importado principalmente da Venezuela - que o fornece a baixos custos dentro da política de solidariedade da Alternativa Bolivariana para as Américas (ALBA), conquistando sua "independência energética" a partir de 2006. A saída econômica do país no período de grande recessão entre 1990-1994, conhecido como "período especial", foi a abertura de partes de seu território ao turismo, com permissão de exploração por cadeias hoteleiras internacionais para construção de grandes resorts. O turismo passou a ser a maior atividade econômica do país, que recebe anualmente mais turistas do que o Brasil, e que possibilitou a geração de divisas sem depender dos EUA. Além disso, os convênios com as brigadas de médicos internacionalistas tem permitido à Cuba trocar serviços de saúde por divisas, petróleo e produtos industrializados a baixo custo. Para manter a economia sem a dependência do Dólar americano, criou-se um sistema de 2 moedas - uma moeda nacional, o Peso Cubano, e uma moeda para o exterior, o Peso Convertido - CUC (que custa 25 pesos cubanos), evitando a saída de capitais do país e facilitando o comércio com o Euro.
O salário médio de um trabalhador cubano gira em torno de 300 pesos por mês. Podemos usar como exemplo de boas remunerações o salário de um Médico de Família com especialização em Medicina General y Integral (Medicina de Família e Comunidade), que corresponde a 570 pesos, e o de um Agente de Combate às Endemias que ganha cerca de 530 pesos mensais. Existe uma política de subsídio nacional, originado no período da Guerra Fria, chamada de Libreta que fornece a baixo custo uma espécie de "cesta básica" com alguns alimentos ao preço de 6 pesos por mês - comprados nas Bodegas que existem a cada 4 quadras. Na época em que foi concebida, Cuba gozava de grande financiamento soviético e podia fornecer uma Libreta completa, com carne, frango, ovos, macarrão, dentre outros, e que tinha como meta abastecer todo cidadão cubano durante 1 mês.
Em 2011, com o fim do bloco soviético e com uma crise econômica arrastada de longas datas, a Libreta foi sendo enxugada ao ponto de hoje fornecer apenas 2kg de arroz, 1kg de açúcar, 250mL de óleo, 1 pacote pequeno de feijão, 1 pacote de café e 10 pães, que na prática sustentam o cubano durante 7 dias de forma incompleta. Com muito menor frequência, fornecem-se ovos, 500g de frango e raramente um pouco de carne. São constantes os desvios de quantidades desses produtos (eram pra vir 2Kg de arroz, acaba vindo 1,5Kg...) e roubos de produtos(nesse mês não vieram ovos e só vieram 7 pães...). Os roubos de Libretas e assaltos aos portos tem viabilizado um mercado negro que permite a venda de mercadorias em algumas ruas a preços abaixo dos encontrados nos mercados centrais e Bodegas. Fora dos 6 pesos da Libreta básica, qualquer outro produto é comprado em preço normal em qualquer mercado. No entanto, alimentos essenciais são muito caros, 1Kg de arroz custa 20 pesos, 500g de café custam quase 30 pesos e 500g de feijão custam 15 pesos. A soma desses produtos no espaço de 1 mês esgota qualquer salário. É como se meio quilo de feijão custasse 150 reais no Brasil, junto com 200 reais por um quilo de arroz. Para evitar essas distorções, o governo fornece um pouco mais de carne para a Libreta das gestantes e leite para as crianças recém-nascidas, mas que também não duram muitos dias.
Produtos industrializados são os mais caros. Uma camisa custa 12CUC (300 pesos), uma gravata custa 23CUC (650 pesos) e os materiais de limpeza, sabonetes, shampoo, são todos importados e comprados em CUC. Uma televisão custa em média 150CUC. Ou seja, partindo do salário de um Médico de Família, pouco se sobra ao fim do mês para lazer, cuidados pessoais e para sua própria alimentação. Segundo um trabalhador de Habana Vieja, não existe fome-fome-fome, mas existem falta de nutrientes mais elaborados como proteínas e vitaminas, o que tem levado a uma série de carências nutricionais patológicas. Como compensar um diabético se só há açúcar em sua Libreta? Como controlar o peso de uma gestante se ela não tem dinheiro pra comprar carne? Muitos adultos começam a adoecer por causa dessas carências.
A questão habitacional tem se tornado outro importante questionamento. Não existem corretoras de imóveis, vendas de grandes propriedades e o direito à moradia é uma premissa constitucional. A construção de blocos habitacionais de 5 andares se tornou importante estratégia durante o período de crescimento econômico cubano, realizando um grande processo de inclusão social. No entanto, desde 1990 a estagnação econômica do país impediu a expansão da política resultando em grande aglomeração de pessoas em um mesmo ambiente de morada. Na prática, convivem em média 3 gerações em cada casa - filhos, pais e avós - o que tem gerado grandes choques de gerações, com importantes conflitos familiares. Não existem recursos para reparo, conserto ou manutenção das casas - o próprio morador não tem recursos para bancar sua reforma por conta própria, pondo em risco milhares de imóveis. Existem algumas mudanças recentes sobre a política de venda e aluguel de imóveis, o que tem permitido troca de casas e um pequeno comércio entre vizinhos. Para piorar o quadro, Cuba se situa em uma rota geográfica de furacões, como o de 2008 que quase devastou o país, o que exige muitos e constantes recursos para reconstrução de suas estruturas.
Uma de nossas colegas de curso resumiu certa vez que em Cuba, primeiro se buscam satisfazer as necessidades mais básicas para daí em seguida irem todos juntos aos poucos garantindo as necessidades acessórias. Ao contrário do Brasil, em que se estimulam e satisfazem as necessidades mais supérfuas para depois, muito lentamente, se garantirem os direitos básicos (ex. nas casas brasileiras não há direito o que comer, o morador é semi-analfabeto, mas tem no meio da sala uma enorme TV de LCD). E desta forma Cuba tem aplicado seus recursos em setores estratégicos, ainda que em prejuízo severo das outras áreas estruturais. As pessoas literalmente deixam de comer carne pra garantir a vacinação e o ensino completo de seus filhos e deixam de comer frango para ter um médico do lado de sua casa.
Em suma, Cuba é um país muito pobre economicamente, que importa boa parte dos alimentos que consome e do combustível que gera sua energia elétrica. Possui uma renda média muito baixa, que garante com muita dificuldade a manutenção de uma alimentação diversificada. Possui um sistema de transporte limitado, com poucos ônibus e carros dos anos 50, com grande de escassez de gasolina. Apresenta um déficit habitacional importante, obrigando muitas famílias a morarem aglomeradas em ambientes muito pequenos. E tudo isso possui uma raiz imperialista completamente desumana, ainda no século XXI, que é o Bloqueio Genocida americano: uma política de desestabilização econômica que impede o comércio de vários países com Cuba, restringindo a entrada dos recursos básicos ao seu sustento.
O grande mérito cubano tem sido enfrentar questões básicas, direitos essenciais, com o apoio mútuo de sua população, com planejamento e, sobretudo, com o socialismo. Todo esse processo com poucos recursos, com uma economia agrária em uma ilha e batalhando contra um gigante econômico que são os EUA. Na verdade, é o único país pobre do mundo que conseguiu oferecer a sua população todos esses benefícios. O futuro de Cuba depende da solidariedade internacional, ao exemplo do apoio venezuelano com a ALBA, do esvaziamento progressivo do Bloqueio americano e das pequenas flexibilizações financeiras no pequeno comércio, que tem permitido trocas básicas entre seus habitantes.
Como assegurar saúde, educação e segurança a todos sem indústrias e sem combustíveis? Precisamos de um formato que permita liberdades essenciais, com garantia de direitos humanos e aproveitando ao máximo as grandes riquezas de um país como o nosso.
Levemos a experiência ao Brasil!
Abraços cubanos!
Waldemir Albuquerque
USF de Coqueiros
Maragogipe-BA
Fonte: Portal Vermelho
segunda-feira, 26 de dezembro de 2011
A PALESTINA VAI DE NOVO À ONU. DESSA VEZ, CONTRA ISRAEL
Palestina denunciará na ONU violações sistemáticas de direitos humanos, expansão das colônias em terras palestinas – colônias já consideradas ilegais pela Corte Internacional de Justiça, em 2004 – e a violência de exército, polícia e colonos israelenses contra a população palestina, suas plantações, seus meios de vida e seus bens.
Por Baby Siqueira Abrão*
A Palestina se prepara para levar outro pleito às Nações Unidas. E agora o alvo é Israel. Os motivos já são bem conhecidos de todos os que acompanham o dia a dia na região: violações sistemáticas de direitos humanos, expansão das colônias sionistas em terras palestinas – colônias consideradas ilegais pela Corte Internacional de Justiça em documento elaborado em 2004 – e a violência de exército, polícia e colonos israelenses contra a população palestina, suas plantações, seus meios de vida e seus bens.
Segundo Riyad Al-Malki, ministro das Relações Exteriores da Autoridade Nacional Palestina (ANP), que anunciou a medida no domingo, 11 de dezembro, o objetivo é obter a condenação de Israel. Os diplomatas já estão trabalhando para obter o apoio de 140 países, a maioria dos quais reconheceu o Estado palestino dentro das fronteiras anteriores à Guerra dos Seis Dias, em junho de 1967, quando Israel invadiu e tomou Gaza, Cisjordânia e Jerusalém oriental. Ryad Mansour, embaixador palestino na ONU, já iniciou conversações com os governos árabes, visando à nova iniciativa. Não se sabe ainda, porém, se ela será levada à Assembleia Geral ou ao Conselho de Segurança.
Na Palestina, a situação é cada dia mais tensa. Apenas na primeira semana de dezembro, de acordo com dados do Centro Palestino de Direitos Humanos, uma pessoa morreu e outras três ficaram feridas em consequência de um bombardeio em Gaza. Também em Gaza, a marinha israelense continua ameaçando os pescadores e atirando contra seus barcos, impedindo-os de trabalhar. A pressão também existe em outros pontos da faixa costeira: agricultores e pastores são alvos de atiradores do exército israelense, que não lhes permitem circular nas próprias terras, cuidar de seus animais e de suas plantações. Além disso, o bloqueio a postos de passagem de produtos comerciais levou ao fechamento de armazéns, causando desemprego, desabastecimento e crise no setor de gás.
Na Cisjordânia, 61 incursões militares em vilas e cidades e ataques às manifestações não violentas contra o muro e as colônias, realizadas às sextas-feiras, levaram à prisão 53 palestinos (8 crianças), 2 jornalistas e 3 ativistas de direitos humanos estrangeiros, além de provocar ferimentos em 4 pessoas e asfixia em dezenas delas. Em 10 de dezembro, dia em que se comemora a Declaração dos Direitos Humanos, adotada pela ONU em 1948, morria Mustafá Tamimi, um dos líderes da resistência popular da vila de Nabi Saleh, vítima de uma granada atirada contra seu rosto um dia antes por um soldado israelense.
Ainda na Cisjordânia, Ahmed Attoun, membro do Conselho Legislativo Palestino, foi deportado de Jerusalém para Ramala. O governo israelense demoliu uma fábrica e seis casas de famílias palestinas, obrigando outras duas a destruir as próprias moradias. Novos checkpoints foram colocados dentro de Jerusalém e ao redor da cidade, tornando ainda mais difícil a vida dos palestinos que moram lá.
Além disso, em 13 de dezembro, um grupo de 20 das mais importantes organizações humanitárias e de direitos humanos condenou, em documento conjunto, as violações cometidas pelo governo israelense. Às vésperas de mais uma reunião do Quarteto (Rússia, União Europeia, ONU e EUA) em Jerusalém, para tentar negociar um acordo entre Israel e Palestina, essas entidades revelaram dados preocupantes, computados pela ONU e pelo Peace Now: mil palestinos tiveram de abandonar suas moradias em 2011, o dobro de pessoas que passaram pelo mesmo drama em 2010. Metade são crianças.
Mais de 500 casas, poços de água e outras estruturas foram destruídas este ano, acompanhadas da expansão das colônias judaicas ilegais na Palestina (4 mil unidades só em Jerusalém oriental, o maior número desde 2006) e do aumento da violência dos colonos contra a população palestina. Mais de 10 mil oliveiras e outras árvores foram destruídas este ano. Como cada oliveira rende cerca de U$ 100 quando seus frutos são transformados em azeite, a economia das famílias dos vilarejos sofreu uma perda estimada em U$ 1 milhão.
“O aumento da expansão das colônias e da demolição de casas está levando a Palestina ao limite, destruindo seus meios de vida e as perspectivas de paz justa e duradoura”, afirmou Jeremy Hobbs, diretor executivo da Oxfam International, à agência de notícias Ma’an. “Há uma crescente desconexão entre o discurso do Quarteto e a situação real. O Quarteto precisa revisar de maneira radical sua abordagem e mostrar que pode mesmo mudar a vida de palestinos e israelenses”, acrescentou ele.
Apesar de todos esses graves problemas, a Assembleia Geral da ONU aprovou, no começo de dezembro, seis resoluções condenando apenas a expansão das colônias, que são somente parte – embora importante – da questão. O fato é que a ONU já condenou Israel centenas de vezes, por meio de resoluções, e os governos sionistas nunca se abalaram com isso. Continuam firmes no plano de expandir seus domínios para toda a Palestina histórica, criando um “Estado judeu” em toda ela, o que implica, forçosamente, a limpeza étnica e religiosa da região. Para impedir que esse plano se concretize são necessárias medidas muito mais convincentes do que discursos retóricos. Mas até agora nenhum governo se atreveu a propor e a aprovar sanções econômicas e políticas contra os governos de Israel.
Se a nova iniciativa palestina nas Nações Unidas conseguirá interromper a sanha sionista, é difícil avaliar. Como fato político, a atitude é bem-vinda: criará mais espaço para que a indignação do mundo se volte contra a política dos governantes de Israel e exija o fim de ocupação. Na prática, entretanto, é quase certo que as coisas continuem como estão. A menos que a comunidade internacional decida tomar medidas realmente definitivas para deter o monstro que ela mesma criou ao ceder às pressões dos lobbies sionistas e aprovar a recomendação da partilha da Palestina, em 1947, os palestinos continuarão a sofrer as consequências dessa decisão.
Mas, a julgar pela saída diplomática do Conselho de Segurança, ao reconhecer-se incapaz de um consenso sobre a admissão da Palestina como Estado-membro da ONU, muitos anos ainda se passarão antes que a população palestina consiga ter seus direitos mais elementares assegurados e respeitados. Até lá, ela, assim como a maioria dos povos da Ásia e da África, continuará vivendo a condição de pária num mundo cada vez mais à mercê dos senhores da guerra e do dinheiro.
(*) Baby Siqueira Abrão, correspondente do jornal Brasil de Fato no Oriente Médio, veio ao Brasil sob os auspícios da Embaixada Palestina, para uma série de palestras com Abdallah Abu Rahmah, líder do comitê popular de Bil’in, e para participar do I Encontro Brasileiro em Solidariedade ao Povo Palestino, realizado na Escola Florestan Fernandes, em Guararema, SP.
Fonte: Carta Maior
Por Baby Siqueira Abrão*
A Palestina se prepara para levar outro pleito às Nações Unidas. E agora o alvo é Israel. Os motivos já são bem conhecidos de todos os que acompanham o dia a dia na região: violações sistemáticas de direitos humanos, expansão das colônias sionistas em terras palestinas – colônias consideradas ilegais pela Corte Internacional de Justiça em documento elaborado em 2004 – e a violência de exército, polícia e colonos israelenses contra a população palestina, suas plantações, seus meios de vida e seus bens.
Segundo Riyad Al-Malki, ministro das Relações Exteriores da Autoridade Nacional Palestina (ANP), que anunciou a medida no domingo, 11 de dezembro, o objetivo é obter a condenação de Israel. Os diplomatas já estão trabalhando para obter o apoio de 140 países, a maioria dos quais reconheceu o Estado palestino dentro das fronteiras anteriores à Guerra dos Seis Dias, em junho de 1967, quando Israel invadiu e tomou Gaza, Cisjordânia e Jerusalém oriental. Ryad Mansour, embaixador palestino na ONU, já iniciou conversações com os governos árabes, visando à nova iniciativa. Não se sabe ainda, porém, se ela será levada à Assembleia Geral ou ao Conselho de Segurança.
Na Palestina, a situação é cada dia mais tensa. Apenas na primeira semana de dezembro, de acordo com dados do Centro Palestino de Direitos Humanos, uma pessoa morreu e outras três ficaram feridas em consequência de um bombardeio em Gaza. Também em Gaza, a marinha israelense continua ameaçando os pescadores e atirando contra seus barcos, impedindo-os de trabalhar. A pressão também existe em outros pontos da faixa costeira: agricultores e pastores são alvos de atiradores do exército israelense, que não lhes permitem circular nas próprias terras, cuidar de seus animais e de suas plantações. Além disso, o bloqueio a postos de passagem de produtos comerciais levou ao fechamento de armazéns, causando desemprego, desabastecimento e crise no setor de gás.
Na Cisjordânia, 61 incursões militares em vilas e cidades e ataques às manifestações não violentas contra o muro e as colônias, realizadas às sextas-feiras, levaram à prisão 53 palestinos (8 crianças), 2 jornalistas e 3 ativistas de direitos humanos estrangeiros, além de provocar ferimentos em 4 pessoas e asfixia em dezenas delas. Em 10 de dezembro, dia em que se comemora a Declaração dos Direitos Humanos, adotada pela ONU em 1948, morria Mustafá Tamimi, um dos líderes da resistência popular da vila de Nabi Saleh, vítima de uma granada atirada contra seu rosto um dia antes por um soldado israelense.
Ainda na Cisjordânia, Ahmed Attoun, membro do Conselho Legislativo Palestino, foi deportado de Jerusalém para Ramala. O governo israelense demoliu uma fábrica e seis casas de famílias palestinas, obrigando outras duas a destruir as próprias moradias. Novos checkpoints foram colocados dentro de Jerusalém e ao redor da cidade, tornando ainda mais difícil a vida dos palestinos que moram lá.
Além disso, em 13 de dezembro, um grupo de 20 das mais importantes organizações humanitárias e de direitos humanos condenou, em documento conjunto, as violações cometidas pelo governo israelense. Às vésperas de mais uma reunião do Quarteto (Rússia, União Europeia, ONU e EUA) em Jerusalém, para tentar negociar um acordo entre Israel e Palestina, essas entidades revelaram dados preocupantes, computados pela ONU e pelo Peace Now: mil palestinos tiveram de abandonar suas moradias em 2011, o dobro de pessoas que passaram pelo mesmo drama em 2010. Metade são crianças.
Mais de 500 casas, poços de água e outras estruturas foram destruídas este ano, acompanhadas da expansão das colônias judaicas ilegais na Palestina (4 mil unidades só em Jerusalém oriental, o maior número desde 2006) e do aumento da violência dos colonos contra a população palestina. Mais de 10 mil oliveiras e outras árvores foram destruídas este ano. Como cada oliveira rende cerca de U$ 100 quando seus frutos são transformados em azeite, a economia das famílias dos vilarejos sofreu uma perda estimada em U$ 1 milhão.
“O aumento da expansão das colônias e da demolição de casas está levando a Palestina ao limite, destruindo seus meios de vida e as perspectivas de paz justa e duradoura”, afirmou Jeremy Hobbs, diretor executivo da Oxfam International, à agência de notícias Ma’an. “Há uma crescente desconexão entre o discurso do Quarteto e a situação real. O Quarteto precisa revisar de maneira radical sua abordagem e mostrar que pode mesmo mudar a vida de palestinos e israelenses”, acrescentou ele.
Apesar de todos esses graves problemas, a Assembleia Geral da ONU aprovou, no começo de dezembro, seis resoluções condenando apenas a expansão das colônias, que são somente parte – embora importante – da questão. O fato é que a ONU já condenou Israel centenas de vezes, por meio de resoluções, e os governos sionistas nunca se abalaram com isso. Continuam firmes no plano de expandir seus domínios para toda a Palestina histórica, criando um “Estado judeu” em toda ela, o que implica, forçosamente, a limpeza étnica e religiosa da região. Para impedir que esse plano se concretize são necessárias medidas muito mais convincentes do que discursos retóricos. Mas até agora nenhum governo se atreveu a propor e a aprovar sanções econômicas e políticas contra os governos de Israel.
Se a nova iniciativa palestina nas Nações Unidas conseguirá interromper a sanha sionista, é difícil avaliar. Como fato político, a atitude é bem-vinda: criará mais espaço para que a indignação do mundo se volte contra a política dos governantes de Israel e exija o fim de ocupação. Na prática, entretanto, é quase certo que as coisas continuem como estão. A menos que a comunidade internacional decida tomar medidas realmente definitivas para deter o monstro que ela mesma criou ao ceder às pressões dos lobbies sionistas e aprovar a recomendação da partilha da Palestina, em 1947, os palestinos continuarão a sofrer as consequências dessa decisão.
Mas, a julgar pela saída diplomática do Conselho de Segurança, ao reconhecer-se incapaz de um consenso sobre a admissão da Palestina como Estado-membro da ONU, muitos anos ainda se passarão antes que a população palestina consiga ter seus direitos mais elementares assegurados e respeitados. Até lá, ela, assim como a maioria dos povos da Ásia e da África, continuará vivendo a condição de pária num mundo cada vez mais à mercê dos senhores da guerra e do dinheiro.
(*) Baby Siqueira Abrão, correspondente do jornal Brasil de Fato no Oriente Médio, veio ao Brasil sob os auspícios da Embaixada Palestina, para uma série de palestras com Abdallah Abu Rahmah, líder do comitê popular de Bil’in, e para participar do I Encontro Brasileiro em Solidariedade ao Povo Palestino, realizado na Escola Florestan Fernandes, em Guararema, SP.
Fonte: Carta Maior
domingo, 25 de dezembro de 2011
MAIS JOYCE MANSOUR
Ilhas das doenças
Com leprosos como papagaios
Mar de silêncio rachado pelo relógio falante da velhice
Gritos de uma jovem cadela esquartejada
O hospital cuida de seus mortos-vivos que não nasceram.
* * *
Convide-me a passar a noite em sua boca
Conte-me a juventude dos rios
Pressione minha língua contra seu olho de vidro
Dê-me sua perna como ama de leite
E depois vamos dormir, irmão de meu irmão
Pois nossos beijos morrem mais rápido que a noite
* * *
Plantei uma mão de criança
Pálida de doença, trêmula de verme
Em meu jardim de árvores floridas.
Enterrei-a bem no solo fétido
Reguei-a bem, rastelei, nomeei
Sabendo que uma virgem brotará nesse lugar
Uma virgem brilhante de luz e de vida
Uma nova fé em lugares ancestrais
Tradução: Éclair Antonio Almeida Filho
Com leprosos como papagaios
Mar de silêncio rachado pelo relógio falante da velhice
Gritos de uma jovem cadela esquartejada
O hospital cuida de seus mortos-vivos que não nasceram.
* * *
Convide-me a passar a noite em sua boca
Conte-me a juventude dos rios
Pressione minha língua contra seu olho de vidro
Dê-me sua perna como ama de leite
E depois vamos dormir, irmão de meu irmão
Pois nossos beijos morrem mais rápido que a noite
* * *
Plantei uma mão de criança
Pálida de doença, trêmula de verme
Em meu jardim de árvores floridas.
Enterrei-a bem no solo fétido
Reguei-a bem, rastelei, nomeei
Sabendo que uma virgem brotará nesse lugar
Uma virgem brilhante de luz e de vida
Uma nova fé em lugares ancestrais
Tradução: Éclair Antonio Almeida Filho
(Do livro Gritos rasgos e rapinas, de Joyce Mansour. Bauru: Lumme Editor, 2011. Pedidos pelo e-mail vendas@lummeeditor.com)
terça-feira, 20 de dezembro de 2011
DOIS POEMAS DE DONIZETE GALVÃO
AQUÉM DO HOMEM
Os corpos já nascem
em débito.
A dívida consolida-se
como uma couraça
que adere à pele,
contamina o sangue,
sem que haja lugar
para o desejo.
Quando este surge,
irrompe
como uma facada
na jugular
em beco escuro.
FILOCTETES
Num átimo,
a picada da serpente.
Abre-se a ferida
que nunca sara
que não supura.
Coleção de escaras
que saem à unha
e renascem
novas crostas.
Ri da chaga
aquele que nunca
foi atingido.
A dor:
empecilho.
A dor:
veneno.
Ninguém quer
sua companhia
(Do livro O homem inacabado. São Paulo: Portal Literatura, 2010)
Os corpos já nascem
em débito.
A dívida consolida-se
como uma couraça
que adere à pele,
contamina o sangue,
sem que haja lugar
para o desejo.
Quando este surge,
irrompe
como uma facada
na jugular
em beco escuro.
FILOCTETES
Num átimo,
a picada da serpente.
Abre-se a ferida
que nunca sara
que não supura.
Coleção de escaras
que saem à unha
e renascem
novas crostas.
Ri da chaga
aquele que nunca
foi atingido.
A dor:
empecilho.
A dor:
veneno.
Ninguém quer
sua companhia
(Do livro O homem inacabado. São Paulo: Portal Literatura, 2010)
domingo, 18 de dezembro de 2011
POESIA PARA A PALESTINA
Caros, estou preparando a nova edição da Zunái, que deve entrar on line em março / 2012. Entre outras surpresas, a revista publicará um caderno com poemas de autores brasileiros sobre a questão da Palestina. Uma pequena homenagem da poesia brasileira à palestina, que tem autores do porte de Mahmoud Darwish. Quem quiser participar, pode enviar-me poemas inéditos sobre este tema até o dia 15 de fevereiro. Os melhores trabalhos serão publicados na revista.
sábado, 17 de dezembro de 2011
UM POEMA DE JOSELY VIANNA BAPTISTA
MORADAS NÔMADES
carunchos e cupins roem,
vorazes, a choupana de ripas
pendem do esteio ramos de trigo,
feito amuleto para celeiros cheios;
tachos esfarelam crostas de grãos moídos
e redes balançam seus esgarços,
perto do chão onde uma nódoa preta
mostra o antigo fogo
tudo abandono, e, no entanto,
lá fora o pomar semeado
para os que agora cruzam
(trouxas vazias), um
por um, os onze mil
guapuruvus
(do livro Roça barroca. Cosac & Naif, 2011)
carunchos e cupins roem,
vorazes, a choupana de ripas
pendem do esteio ramos de trigo,
feito amuleto para celeiros cheios;
tachos esfarelam crostas de grãos moídos
e redes balançam seus esgarços,
perto do chão onde uma nódoa preta
mostra o antigo fogo
tudo abandono, e, no entanto,
lá fora o pomar semeado
para os que agora cruzam
(trouxas vazias), um
por um, os onze mil
guapuruvus
(do livro Roça barroca. Cosac & Naif, 2011)
sexta-feira, 16 de dezembro de 2011
DOIS POEMAS DE ROBERTA TOSTES DANIEL
ONDE A VEGETAÇÃO SE RASGA
Onde a vegetação se rasga
Para o sol, o sangue
O rastro da fuga
Verde,
Vermelha
Selva – me suga
Como a mais pura seiva:
Mãos na palavra
Nua.
AINDA
No silêncio: compasso de solidão.
Depois que a música (me) acaba,
Fazer o sem-lugar onde desvio
Linguagem e desejo.
Fremir de ondas
Entre mim e canção,
Escrever as pausas de outra:
Mais sutil, de sombra.
O que eu não toco: pertença minha
(toda escuta, posse).
Onde não sou e não tenho;
Até que ouço, simplesmente.
Presa por vontade
De escutar o que é livre:
O inalcançável movimento
Do mar -
O chamado:
Palavras instigando ondas.
Ouvir o tempo insondável
No mesmo silêncio de corredores e sótãos.
Menina, lia. Escutava Quintana
Onde todas as canções comandam a nau
Apinhada de meninos mortos.
Terrível-suave.
E virgem. O silêncio virgem.
Ocupá-lo com desejo e memória,
Violentá-lo. Se tento calar,
Bebo o tempo: nau frágil.
Um ponto afogado e luminoso da escada,
Perto do peito: o porão do prédio.
Sou eu, um barco ainda ouvindo em segredo.
Degredada em sombra.
Um buraco de luz; deixada pela canção
E pelas brechas nos tijolos.
Abri a porta para o vazio.
Veio a rebentação. Nem perto o mar.
Os vizinhos não sabem; suas casas quando acendem;
Luzes me arrebentam faróis no peito.
As cortinas me abrem. Não saí do quarto.
Tudo veio à voz, depois da voz, minha voz sibilante.
O corredor ainda grande.
Meu sem-lugar: linha do tempo.
Tento uma ausência. Tudo lembrando.
Imagens correm, três delas, ardendo.
O novo. Arrebenta o novo. Oscilações de novo.
Até mesmo no fogo. Tudo são águas.
É um estar-se preso, realmente
(como no amor).
Quem ouve o silêncio, sem fim,
Devorando quem canta,
Move o sagrado, morre em mim.
Não só leveza. Todo instante é um corte,
Toda delicadeza funda o sal na voz
E um corte sempre fala ao dentro.
Arde o vigoroso.
A carne não é rente;
Requentada no sangue, vem antes
(na alma do que não fomos).
Nos afogamos.
A palavra, aprende:
Vai fracassar.
Como a música, seu fim.
Um tempo de mortes, no sempre.
Mas não enquanto:
O canto
quarta-feira, 14 de dezembro de 2011
BRASIL: É HORA DA VERDADE!
A sociedade brasileira tem o direito de saber a verdade sobre as privatizações de empresas estatais realizadas durante o mandato de Fernando Henrique Cardoso na Presidência da República.
As denúncias apresentadas pelo jornalista Amaury Ribeiro Jr. no livro PRIVATARIA TUCANA, acompanhadas de ampla documentação obtida junto a cartórios e instituições públicas, são muito graves e precisam ser apuradas já pelo Congresso Nacional, pois relacionam a privatização de empresas lucrativas que integravam o patrimônio público brasileiro, como a Companhia Vale do Rio Doce e a Tele Norte Leste, a escusas ações de bastidores, envolvendo o recebimento de propinas milionárias por parte de integrantes do Governo Federal.
É preciso que seja totalmente esclarecida a veracidade de tais acusações, em defesa da ética na gestão da coisa pública.
Nós, abaixo-assinados, exigimos que o Congresso Nacional instale uma Comissão Parlamentar de Inquérito que investigue todas as privatizações realizadas no País nos últimos 20 anos, e, caso seja comprovada a ocorrência de irregularidades que firam a nossa soberania, a ética e o interesse público, que tais privatizações sejam anuladas e os responsáveis, punidos de acordo com as leis vigentes.
Viva a soberania do povo brasileiro!
(Texto do manifesto e abaixo-assinado BRASIL: É HORA DA VERDADE, que está circulando na internet. Para incluir o seu nome na campanha, acesse a página http://privatariatuccana.blogspot.com/ e deixe um comentário com o seu nome e atividade profissional.)
segunda-feira, 12 de dezembro de 2011
A EXPANSÃO SIONISTA NOS TERRITÓRIOS PALESTINOS DE 1946 AOS DIAS DE HOJE
O campo verde designa as áreas ocupadas por palestinos, que habitam a região há milhares de anos, e o campo branco, as áreas de assentamentos de colonos sionistas, em sua maioria imigrantes europeus vindos da Polônia, da Rússia e de outros países, dos anos 40 até agora, em movimentos de imigração patrocinados pelo governo de Israel. Como consequência da operação de "limpeza étnica" realizada na Palestina ocupada pelos sionistas, cerca de 4,5 milhões de palestinos foram expulsos de suas casas e terras e obrigados a viver em acampamentos de refugiados no Líbano, na Síria e em outros países. Os refugiados são proibidos por Israel de retornarem a suas terras. Este fato histórico é conhecido como "Al-Nakba", que em árabe significa "A Catástrofe".
domingo, 11 de dezembro de 2011
O CAPITALISMO, UM APRENDIZ DE FEITICEIRO
“A grande indústria criou o mercado mundial, preparado pela descoberta da América. O mercado mundial expandiu prodigiosamente o comércio, a navegação e as comunicações. Por sua vez, esse desenvolvimento repercutiu sobre a extensão da indústria, e à medida que indústria, comércio, navegação e ferrovia se desenvolviam, a burguesia crescia. (...) Com a criação da grande indústria e do mercado mundial, a burguesia conquistou finalmente a dominação política exclusiva no moderno Estado parlamentar. Um governo moderno é tão-somente um comitê que administra os negócios comuns de toda a classe burguesa. Pressionada pela necessidade de mercados sempre mais extensos para seus produtos, a burguesia conquista a terra inteira. (...) As relações burguesas de produção e troca, as relações burguesas de propriedade, a sociedade burguesa moderna que gerou, como por encanto, meios de produção e de troca tão poderosos se assemelham ao feiticeiro que já não consegue dominar as potências demoníacas que evocara. (...) Como a burguesia supera as crises? (...) Preparando crises mais extensas e mais violentas e reduzindo os meios para preveni-las” (Marx e Engels, Manifesto do Partido Comunista, 1848.)
quinta-feira, 8 de dezembro de 2011
RECITAL DEDICADO A PAULO LEMINSKI
O ex-estranho: leituras de Paulo Leminski é um recital dedicado a um dos mais criativos poetas brasileiros, que uniu o construtivismo das vanguardas à influência do zen-budismo, da música popular e da contracultura, criando uma das obras mais originais de nossa literatura. Paulo Leminski (1944-1989) será homenageado pelo Clube de Leitura de Poesia do Centro Cultural São Paulo, com a declamação de seus textos por Yun Jung Im, Dila Galvão, Paulo de Toledo, Danilo Bueno, Andréa Catrópa, Claudio Daniel, Marcelo Tápia, Neuza Pinheiro e Estrela Leminski.
Dia 16/12/2011 – 19h30
Centro Cultural São Paulo
— Sala de Debates
Rua Vergueiro, n. 1.000, próximo ao metrô
quarta-feira, 7 de dezembro de 2011
BABEL DECIFRADA
A Bíblia é o grande código da literatura ocidental, segundo o estudioso Northrop Frye. É o início de toda a nossa tradição literária. O Cântico dos Cânticos, por exemplo, traduzido por Haroldo de Campos no livro Éden, publicado pela editora Perspectiva, é uma das bases de nossa poesia erótico-amorosa, ao lado da lírica romana e das canções dos trovadores da Idade Média. Já o estilo conciso, obscuro e paradoxal dos livros sapienciais, como os Provérbios e o Eclesiastes marcaram importantes obras de autores românticos e simbolistas, como o Blake do Casamento do Céu com o Inferno, o Novalis de Aurélia e mesmo esse inimigo declarado do cristianismo que foi Lautréamont, nas sentenças paródicas de suas Poésies. Outro adversário contumaz da fé cristã, Friedrich Nietzsche, usou o estilo oratório dos profetas hebreus em seu Assim Falava Zaratustra, e até Marx, em sua obra mais elaborada, do ponto de vista literário, que é o 18 Brumário de Luís Bonaparte, fez várias citações do cânone bíblico, como a conhecida frase “deixemos que os mortos enterrem os seus mortos”. Se fossemos fazer uma lista de todos os autores influenciados, de uma maneira ou outra, pela literatura bíblica, essa lista seria interminável.
Por isso mesmo, traduzir a Bíblia é uma aventura fascinante, que representa um mergulho na fonte primordial de nosso imaginário, de nossa tradição literária e de nossa cultura — ainda que nos afastemos, voluntariamente, da herança judaico-cristã. O que diferencia as traduções de Haroldo de Campos daquelas realizadas por outros estudiosos é que ele não foi movido pela intenção mística ou teológica, mas pelo desejo de recuperar para nós alguns exemplos mais expressivos da poesia bíblica, muito mais elaborada e sofisticada do que poderiam imaginar aqueles que só leram as versões convencionais da escritura.
O resultado do trabalho titânico desenvolvido pelo poeta são três livros notáveis: o Qohélet, tradução do Eclesiastes; Bereshit, com a reimaginação da primeira história da Gênese e da resposta de Deus a Jó; e por fim este Éden, publicado postumamente, que reúne a segunda história da criação, o episódio referente à torre de Babel e o Cântico dos Cânticos, atribuído ao rei Salomão. Nesse conjunto admirável de obras, que formam um tríptico, Haroldo nos mostrou que os textos bíblicos são poemas riquíssimos, não menos complexos, formalmente, do que um poema de Khlébnikov ou Mallarmé. Para revelar as cintilâncias da arte verbal bíblica, Haroldo desprezou a distinção entre prosa e poesia, buscando antes recuperar o ritmo, a respiração prosódica das linhas, valendo-se para isso de sinais gráficos e de recursos de espacialização da poesia moderna. Ele não evitou os jogos paronomásicos, os paralelismos e todos os recursos da função poética que, em geral, são ignorados nas versões tradicionais. Haroldo buscou hebraizar o português, criando uma língua quase híbrida, que ao mesmo tempo nos encanta pela estranheza melódica e apresenta outras possíveis abordagens do texto original, recuperando significados que estão ausentes em muitas versões. Assim, por exemplo, ele traduz shamáyim por fogoágua, em vez de céu, indicando, nesse neologismo, a idéia de uma abóbada celeste formada por uma espécie de magma. Essa tradução nada tem de arbitrária, já que esh significa fogo e máyim, água, como esclarece o tradutor — ou transcriador, como ele preferia ser chamado. O resultado poético pode ser conferido nas linhas iniciais da Primeira História do Bereshit:
No começar Deus criando / O fogoágua e a terra / E a terra era lodo torvo / e a treva sobre o rosto do abismo / E o sopro-Deus / revoa sobre o rosto da água.
A estranheza começa pelo uso do infinitivo, No começar, seguido pelo verbo no gerúndio, Deus criando. É como se o poeta trouxesse até nós o momento inicial da criação, descrevendo o inconcebível cenário de elementos que surgem, interagem e se transformam, na alquimia criadora do cosmo. Esse passado remoto é vivificado também pelo desenho melódico das linhas, com ênfase nas assonâncias (e a terra era lodo torvo) e aliterações (revoa sobre o rosto). Já na Segunda História do Gênesis, presente no livro Éden, ele recupera o jogo semântico entre adam e adamá, que traduz como homem-húmus, coerente com a noção semítica de criação do primeiro humano a partir do pó da terra. Ao mesmo tempo, Haroldo faz outra aproximação paronomásica entre mulher e húmus, recuperando o jogo que em hebraico existe entre ish (homem) e isha (mulher). Não se trata de mero capricho estilístico, mas de uma relação ao mesmo tempo de significante e de significado, já que a aproximação semântica indica uma relação causal: o homem veio do pó, e a mulher da costela do homem. Ou, como diz a Segunda História do Gênesis, na versão haroldiana:
E disse o homem / esta desta vez osso / de meus ossos / e carne de minha carne / A esta chamarei mulher / pois do homem-húmus esta foi tomada.
Outra recriação notável, agora no livro do Qohélet, é a da paronomásia havel havalim, que nós conhecemos, a partir da Vulgata latina, como “vaidade das vaidades”. Esse é um dos versos mais conhecidos da Bíblia. Haroldo interpretou de outra maneira a sentença, traduzindo-a como tudo névoa-nada, sendo que havel, em hebraico, tem o sentido literal de vapor, sopro, e só figurativamente significa vaidade. Não se trata apenas de jogo lingüístico, mas, novamente, uma releitura do sentido, já que a palavra vapor tem um significado mais preciso do que vaidade, e com o conteúdo figurativo adicional de algo impalpável e efêmero. Assim como, na literatura budista, os fenômenos são comparados a bolhas de espuma, que surgem e logo caem na impermanência. Ao optar por tais soluções, Haroldo manteve-se fiel ao sentido literal, muito mais concreto do que abstrato, e com um ganho maior de poeticidade, pelo impacto do inusitado. O que surpreende, no entanto, é o modo como Haroldo fez isso sem abdicar da sonoridade do texto; vale lembrar que ele utilizou diversas gravações, com professores de hebraico lendo esses poemas em voz alta, para trabalhar a partir do impacto sonoro do original. A esse respeito, vale a pena citar um trecho da Primeira História, do Bereshit:
E Deus disse / que as águas esfervilhem / seres fervilhantes / alma-da-vida / E aves voem sobre a terra / face à face / do céufogoágua. / E Deus criou / os grandes monstros do mar / E toda as almas-de-vida rastejantes / que fervilham nas águas / segundo sua espécie / e todas as aves de pena / segundo sua espécie / E Deus viu que era bom.
Esse relato cosmogônico, história cantada do mundo, é um dos vários gêneros literários que integram o cânone bíblico. Em outros capítulos desse livro infinito, encontramos poemas líricos, como o Cântico dos Cânticos (que também integra o Éden), o relato épico, como a história de Josué e as trombetas de Jericó, o discurso filosófico, como os Provérbios e o Qohélet, e ainda esse texto insólito, irônico e enigmático que é a resposta de Deus a Jó, traduzida por Haroldo e incluída no livro Bereshit:
A chuva terá um pai? / Ou quem gerou / as gotas de orvalho? / Do ventre de quem / saiu o gelo? / E a geada do céu / quem a gerou? /; (...) Comandas e os relâmpagos vêm / E te respondem: 'Aqui estamos!' / Quem infundiu / no íbis sabedoria / Ou quem deu ao galo inteligência?
Outro texto de difícil classificação é o episódio da Torre de Babel, incluído no Éden, que é a metáfora arquetípica do surgimento das línguas e das nações (assim como a Primeira História do Gênese trata do nascimento da dualidade e do ego, aquilo que os hindus chamam de mundo do samsara). Novamente, aqui, Haroldo não se contentou com as soluções adocicadas das versões tradicionais, e fez um poema forte e consistente em português, descobrindo novos sentidos para formas novas.
Vale citar o fragmento final:
E disse Ele-O-Nome
um povo uno e uma língua-lábio una para todos
e isto só o começo do seu afazer
E agora nada poderá cerceá-los
no que quer que eles maquinem fazer
Vamos baixemos
e lá babelizemos sua língua-lábio
Que não entenda um
a língua-lábio do outro
E os dispersou Ele-O-Nome de lá
sobre a face de toda a terra
E eles cessaram de construir a cidade
Por isso chamou-se por nome Babel
pois lá babelizou Ele-O-Nome
a língua-lábio de toda a terra
E de lá dispersou-os Ele-O-Nome
sobre a face de toda a terra
Convém ressaltar que Ele-O-Nome é o modo como Haroldo traduz o intraduzível tetragrama que na Bíblia hebraica representa o nome impronunciável de Deus, e que em hebraico safa'ehath significa lábio, com o sentido de idioma; daí a versão haroldiana língua-lábio, que mantém na ambigüidade do neologismo a duplicidade de sentido do termo original. Sobre o Cântico dos Cânticos, pouco há o que dizer: é apenas a melhor tradução em português do mais belo poema de amor da história literária ocidental.
terça-feira, 6 de dezembro de 2011
Estrelas devoram o azul, formigas apagando uma pétala: a prosa de invenção de Paulo Leminski
"Uma fonte é uma moça bonita que foi amada por um deus, que disse não a um rio, que fugiu de um sátiro, nada é real, nada é apenas isso, tudo é transformação, todo traçado de constelação é o pedaço de um esboço de um drama terrestre, tudo vibra de tanto significar." Metaformose (2), Uma Viagem pelo Imaginário Grego, de onde extraímos esta citação, é uma fábula singular, dentro do percurso ficcional de Leminski. Um texto de inquietante beleza, que anula as balizas entre prosa e poesia e prescinde da evolução narrativa linear. Personagens e peripécias surgem e desaparecem de modo imprevisto, sem uma seqüência de cunho naturalista; ao contrário, os relatos mitológicos são aqui pincelados de maneira impressionista, como os temas de um poema sinfônico, cuja evolução obedece a uma lógica melódica e harmônica, como o fluir e o refluir de vagas em ondulação: "Reflexos de Narciso nos ecos da ninfa, água na água, como a luz na luz, luz dentro da água". Este ritmo aquoso, construído com avanços e recuos semânticos, como deslocamentos de ondas, remete também ao simbolismo do Mar Primordial, origem da vida. É o universo feminino, noturno, amniótico onde se movimenta o feto, no espaço uterino; e também o mítico oceano celeste. Em Metaformose, esse liber aquae ("livro de água"), a música fluida é orquestrada pelo uso rítmico da pontuação, pelos cortes elípticos, efeitos aliterativos, paronomásicos, anafóricos, entre outros recursos lingüísticos que orientam a respiração verbal.
O elemento água remete ainda ao conhecido aforismo de Heráclito, sábio helênico que repetiu, sem saber, a filosofia de Lao Tzu: "Nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não somos". Água é movimento, instabilidade, mudança, como sabia Tales de Mileto ("Tudo é água"), e este é o tema básico do livro de Leminski, o princípio da mutação. Nada é estático, nessa prosa camaleônica; tudo gira em constante transmutar. O texto flui e reverbera em sucessivas camadas onde mitos e símbolos se aproximam, interagem e modificam-se, procriando novos signos: "Uma flor amarela é o olho de uma ninfa, a passagem entre duas montanhas é o lugar por onde um deus fugiu da ira do seu irmão. (...) Os olhos de Medusa brilham como as gotas de uma chuva de ouro. Nos olhos azuis de Narciso, o azul da água se transforma em céu. Estrelas devoram o azul, formigas apagando uma pétala."
Água, espelho onde Narciso contempla seu reflexo, enlouquecendo de amor por si mesmo, cumprindo o vaticínio de Tirésias ("será feliz enquanto não enxergar seu próprio rosto", frase que ressoa ao longo da úmida prosa-poema como um leitmotiv). Narciso, cego por seu ego, não ouve o apelo de Eco, ponto de partida de todo o fabulário. Este é o evento fundador da trama simbólica, como a Queda de Adão, após comer o Fruto Proibido, na leitura pessoal que Leminski faz do repertório mítico, colocando em primeiro plano um personagem secundário, que representa aqui o surgimento da consciência, ponto de partida da civilização. Refabulando a fábula, reconfigurando os contos arquetípicos, ele intervém no universo da teogonia, convocando os deuses e heróis trágicos a participarem de uma nova jornada imaginativa.
Canto composto de cantos, mito tecido em outros mitos, numa irrupção de cenas rápidas e dinâmicas, como círculos concêntricos na água, desfilam nessa trama lendas e entes bizarros, como a Esfinge, criatura híbrida, com rosto e peitos de mulher, asas de águia e corpo de leão; o Minotauro, touro-homem cuja casa monstruosa é o labirinto; Pasífae, rainha que amou um Touro branco, nascido do mar; e a Medusa, cujo olhar transformava em pedra qualquer um que a fitasse. Fábulas dentro da fábula, fluindo como águas aéreas, numa aparente desordem, mas unificadas na pauta metafórica do tecido aquoso. "Se tudo pode ser metáfora de qualquer coisa e qualquer coisa pode ser traduzida numa coisa qualquer, não há centro, o centro pode estar em qualquer parte, ao mesmo tempo, ou nunca estar em lugar algum."
Metaformose é uma não-história, que desconsidera tempo e espaço e onde os personagens são idéias, ícones do comportamento humano que se entrecruzam, num ciclo de mutações e permutações onde "tudo pode se transformar em tudo". "Uns são transformados em flores, outros são transformados em pedra, outros ainda se transformam em estrelas e constelações. Nada com seu ser se conforma. Toda transformação exige uma explicação. O ser, sim, é inexplicável." Nesta prosa que escorre por entre os dedos, dispersiva como filetes das águas do Letes, o rio do esquecimento, o poeta faz menos uma prosa didática ou acadêmica que um recorte/montagem de símbolos móveis para indicar o aspecto misterioso, fugidio e ilusório (maya) do princípio rotineiro de realidade. "Que mais existe senão afirmar a multiplicidade do real, a igual probabilidade dos eventos impossíveis, a eterna troca de tudo em tudo, a única realidade absoluta? Seres se traduzem, tudo pode ser metáfora de outra coisa ou de coisa alguma, tudo irremediavelmente metamorfose."
II
"Cold, no, I don't believe your heart is cold, maybe he is just afraid to be broken again", cantava Norma antes de ser morta e violada por seus convidados, para ressuscitar depois, nua entre flores, no caixão onde colocaram seu corpo, na cíclica cerimônia de adeus. Este episódio acontece durante a festa que é o evento central de Agora é que São Elas, romance de Leminski sobre a impossibilidade de escrever romances. Neste livro estranho, que desarticula a noção tradicional de enredo, o autor subverte a sequência linear da narrativa justapondo ações simultâneas, descontínuas, em diversos planos de espaço-tempo. É como um tabuleiro de xadrez tridimensional, onde o jogo ocorre em campos paralelos, permitindo diversas possibilidades estratégicas, combinações e superposições, ou ainda como um sonho sonhado em outro sonho, para citarmos a metáfora de Poe. Em Agora é que São Elas, as ações básicas acontecem no mesmo ponto, a enigmática casa de Norma Propp, mas se repetem, ao longo do livro, em distintos planos temporais e com variações imprevistas no tabuleiro e nos lances da partida, como se fossem várias versões possíveis do mesmo jogo. Universos paralelos, percorridos por um perplexo personagem sem nome, que salta de um cenário para outro, em busca de uma solução para o misterioso quebra-cabeças.
Essa jornada insólita tem um ponto de partida que conduz aos vários caminhos de leitura do romance: numa noite chuvosa, o narrador toca a campainha de uma mansão, a fim de pedir um isqueiro para acender seu cigarro. O mordomo abre a porta e convida-o a entrar. No interior da casa, que é um cubo mágico ou labirinto, acontece uma festa que celebrava, justamente, o noivado do personagem anônimo com Norma Propp. Ele a ouve cantar uma canção de Ella Fitzgerald, antes ou depois de uma orgia, antes ou depois de um crime, antes ou depois de sair da casa, apressado, e de retornar a ela, para saber que a festa foi ontem. Ou ainda, quem sabe, será amanhã. Ou talvez nunca tenha acontecido. Similar a um espetáculo de espelhos, que exibe múltiplas imagens deformadas da mesma pessoa, a casa multiplica e reinventa os fenômenos, até a exaustão. Ou, como diz o narrador: "Esta festa e esta casa é uma máquina, um monstruoso mecanismo que se transforma e transforma o real em cerimônias". Os eventos se desenvolvem no salão de convidados, onde um maníaco jura que tem uma bomba atômica instalada no cérebro, que explodirá se ele pronunciar certa palavra, mas também no jardim, onde uma menina (3) conta estrelas e narra uma guerra cósmica envolvendo os seres gasosos de uma distante constelação. Cenas e personagens sucedem-se como as cartas embaralhadas de um jogo de pôquer, ou como as peças de um jogo da memória, cabendo ao leitor encontrar sua leitura, sua trilha de investigação dessa curiosa narrativa.
A relação erótica intensa, obsessiva, tecida em encontros e desencontros, entre Norma e o anônimo personagem ocupam o centro do romance, contada em linguagem lasciva, picante, com os timbres e toques da malandragem. Relido sob esta ótica, o livro dialoga com a vertente coloquial e fescenina, cujo moderno avatar é o Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade. O enlace amoroso, porém, se manifesta de maneira bizarra, com a prática exclusiva do sexo oral, sem a consumação do coito; recordando, de certa forma, o filme Esse Obscuro Objeto do Desejo, de Buñuel, essa outra ode ao amor que não se completa. Sob o desejo dos amantes, pesa a presença do pai de Norma, ninguém menos que Vladimir Propp, autor da Morfologia do Conto Maravilhoso, que aparece nesta prosa delirante como o psicanalista e mestre espiritual do narrador, em sua busca da sabedoria. A presença de Propp como figura de ficção abre outra via de leitura, metalinguística, no livro de Leminski, já que o sábio russo estudou a estrutura dos contos tradicionais e a construção dos personagens, elaborando uma teoria sobre a gênese das fábulas, assim descrita pelo autor-narrador: "O fato é que descobriu que todas as histórias, no fundo, constituem uma só história. (...) A gente passava por certas peripécias básicas, sempre as mesmas, só mudava a ordem". A Morfologia do Conto Maravilhoso, diz Leminski, é "um romance abstrato. Quer dizer, um romance feito de todos os romances, seus personagens são todos os personagens possíveis". Propp elaborou 31 funções básicas do personagem, e a partir desse número, tomado como talismã, Leminski dividiu seu livro em 31 capítulos, sendo que o último é subdividido em 31 partes, numa relação de isomorfismo. Dessa maneira, Agora é que São Elas não é apenas um relato ficcional, mas um romance-ensaio, paródico, alegórico, multi-referencial. Este livro incomum, que resgata e subverte os elementos típicos da fabulação (a gravidez de Norma e sua fuga com Bernardo), é também uma crítica satírica do próprio conceito de romance, que o autor considerava um gênero esgotado, típico do século XIX, por ter como referência básica o realismo, ou seja, uma técnica composicional e uma visão de mundo já superados pelo experimento joyceano (sobretudo o Finnegans Wake) e pelos novos paradigmas da física e da filosofia modernas. O duende da lógica que orientou a Comédia Humana de Balzac ou Em Busca do Tempo Perdido, de Proust, não fazia mais sentido na era do pensamento quântico: "A lógica morreu de um tumor cerebral, no verão de 1878, em Clichy, uma pequena aldeia no interior da França, quase na fronteira da Alsácia-Lorena", dispara o polaco. Só havia um problema: o que fazer com a realidade, ou melhor, com a literatura? A resposta do autor é Agora é que São Elas, "um romance sobre a minha impossibilidade de escrever romances". O livro como matéria orgânica, viva, inquieta, suscetível de moldar-se a todas as formas e suas variações inumeráveis.
III
Catatau é o relato da viagem imaginária do filósofo René Descartes ao Brasil, como membro da comitiva do conde Maurício de Nassau. Nesta prosa barroca carnavalizada, o pensamento analógico (ou demiurgo da mutação) contamina os vocábulos, as linhas e as páginas do livro, dissolvendo história, mito e símbolo na paisagem da escritura, fazendo surgir figuras híbridas, mescladas ("plantas sarcófagas", "esfinges bucefálicas"), de um universo singular e autônomo, com sua própria lógica estrutural e semântica O livro se desdobra como a pele líquida do oceano, sem divisões temáticas, mas com uma sucessão de imagens de imprecisa geometria, ignorando distinções de espaço e tempo: há um eterno agora, uma mandala onde elementos de distintas culturas e períodos são invocados e recriados, não apenas como paródia ou metáfora, mas como irônicos acordes e jogos de pensamento. A própria identidade do idioma é abalada pela construção babélica, onde rutilam timbres e toques de outras tribos, do latim ao polonês, numa algaravia de sentidos. A sintaxe é musical, sem uma lógica de gramática e dicionário, e as palavras sexualizam-se, extáticas, fazendo surgir termos neológicos ("olhosclitóris", "espiralâmides"), que recordam figuras dos quadros de Bosh. Tais composições, efetuadas pela montagem de elementos estranhos entre si, podem ser aproximadas tanto da "palavra-valise" de Carroll e Joyce quanto do conceito de imagem poética formulado por Reverdy. Em Catatau, Leminski atingiu o grau zero da escritura, onde a realidade não é abolida, mas rarefeita ou desfocada: os grafismos impressos na página transcendem a condição passiva de mensageiros do mundo para constituirem, eles próprios, um mundo, uma realidade à parte. Jornada paralela ao neobarroco de Lezama, Sarduy e Kozer (4), esta anti-epopéia de Leminski faz a simbiose do erudito e do popular, do sensual e do intelectual, do sagrado e do profano, trazendo para o texto poético - ou ainda, para a função poética - um repertório informativo só comparável ao dos portais do ciberespaço -- em Catatau, aliás, não falta sequer o "vírus de computador", que atende pelo nome de Occam (5). A ironia engenhosa do livro, talvez sua pedra-de-toque, seja o encontro da lógica européia, simbolizada em Descartes, com a exuberância primitiva de uma terra distante, esse "labirinto de enganos deleitáveis", onde impera uma outra forma de pensamento, atávica, corpórea, centrada talvez no olhar (6). Aturdido com a beleza da terra bárbara ("meus sonhos se populam da estranha fauna e flora"), e motivado ainda pelo consumo de ervas narcóticas em seu cachimbo, o filósofo, bêbado de imagens, vai despindo o rigor dos silogismos e elaborando uma outra racionalidade, onde "pensamento é espelho". Renatus Cartesius, com sua luneta, contempla o contemplável, mas as imagens captadas em suas lentes são bizarras associações entre real e irreal, sentido e sonhado, palpável e imaginário, indicando uma fusão entre o subjetivo (o olhar do observador) e o objetivo (o objeto observado), o movimento para dentro e o para fora, numa "excentricidade focal". O resultado desse enquadramento de miragens é um discurso tecido em sequências de plástica desordem, que inserem na página estranhas composições de "animais anormais", "plantas que comem carne", "uma jibóia que é só borboletas" e outros quadros da terra brasilis, borrados ou deformados à maneira cubista, mas de um cubismo antropofágico, que transfigura os contornos e o sentido das coisas, convertidas em realidades verbais. A pupila alucinada do personagem, que rege o ritmo da narrativa, opera recortes súbitos, colagens de figuras fragmentárias, ecos e espelhismos de um mundo recriado no romance impossível. Há toda uma floresta de citações e provérbios, de signos ocultos em signos, como camadas geológicas de leitura, que exigiriam o esforço de um exegeta com o fôlego e a tenacidade de um Indiana Jones. No breve espaço deste ensaio, não iremos nos iludir com a exploração metódica do fabulário, o que demandaria obra de amplo escopo. Nosso único intento foi o de registrar, de modo sucinto e impreciso, algumas impressões de leitura do multifacetado "romance-idéia" de Leminski, em paralelo com as suas outras prosas, que formam algo como uma trilogia (7), onde cada livro dialoga com os demais, em seu acabamento e visão estratégica.
NOTAS
(1) O presente ensaio enfoca as três narrativas longas em prosa de Leminski na ordem inversa em que foram publicadas. Metaformose, texto de publicação póstuma, saiu em 1994; Agora é que São Elas é de 1984, e Catatau, de 1975. Esta inversão deliberada deve-se ao método crítico adotado pelo autor, que não tem um viés diacrônico.
(2) Metaformose é um neologismo criado por Leminski a partir da palavra metamorfose, parodiando o famoso poema de Ovídio. É também o título de um poema concreto que o autor publicou na revista Invenção, composto de variações morfológicas como "amor", "mater", "morte", "amorfo" e "feto".
(3) A menina aparece ao mesmo tempo como personagem e possível autora do romance, em novo lance metalinguístico: "Essa casa é toda minha. As pessoas que estão lá dentro são meus brinquedos. Alguns, eu inventei. Alguns, meu pai comprou." Seu nome é Norma, assim como o da heroína, numa curiosa relação especular de ousider, remetendo novamente a Poe e a seu conto Wlliam Wilson.
(4) A presença do neobarroco no Brasil ainda não foi estudada de modo amplo e satisfatório, mas é possível incluir, dentro desta vertente, livros como Galáxias, de Haroldo de Campos; Catatau, de Paulo Leminski; Satori, de Horácio Costa; Mar Paraguayo, de Wilson Bueno; Ar e Corpografia, de Josely Vianna Baptista.
(5) Monstro semiótico que assombra o livro, interferindo na própria escritura. Occam é um nome derivado de um personagem lendário do século XVI, William of Ockham.
(6) Já na segunda linha de Catatau, Renatus Cartesius diz: "vejo o mar, vejo a baía e vejo as naus ", e um pouco abaixo: CONTEMPLO A CONSIDERAR O CAIS, O MAR, AS NUVENS, OS ENIGMAS E OS PRODÍGIOS DE BRASÍLIA". Essa reiteração do olhar se multiplica ao longo da narrativa, culminando na expressão "Ver é uma fábula".
(7) Uma investigação mais rigorosa da fabulação leminsqueana deveria incluir também, a nosso ver, o seu ciclo de biografias de Jesus, Bashô, Trotsky e Cruz e Sousa, reunidas no volume Vida, e a inventiva recriação do Giacomo Joyce, de James Joyce, sem esquecer do insólito O Gozo Fabuloso.
O elemento água remete ainda ao conhecido aforismo de Heráclito, sábio helênico que repetiu, sem saber, a filosofia de Lao Tzu: "Nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não somos". Água é movimento, instabilidade, mudança, como sabia Tales de Mileto ("Tudo é água"), e este é o tema básico do livro de Leminski, o princípio da mutação. Nada é estático, nessa prosa camaleônica; tudo gira em constante transmutar. O texto flui e reverbera em sucessivas camadas onde mitos e símbolos se aproximam, interagem e modificam-se, procriando novos signos: "Uma flor amarela é o olho de uma ninfa, a passagem entre duas montanhas é o lugar por onde um deus fugiu da ira do seu irmão. (...) Os olhos de Medusa brilham como as gotas de uma chuva de ouro. Nos olhos azuis de Narciso, o azul da água se transforma em céu. Estrelas devoram o azul, formigas apagando uma pétala."
Água, espelho onde Narciso contempla seu reflexo, enlouquecendo de amor por si mesmo, cumprindo o vaticínio de Tirésias ("será feliz enquanto não enxergar seu próprio rosto", frase que ressoa ao longo da úmida prosa-poema como um leitmotiv). Narciso, cego por seu ego, não ouve o apelo de Eco, ponto de partida de todo o fabulário. Este é o evento fundador da trama simbólica, como a Queda de Adão, após comer o Fruto Proibido, na leitura pessoal que Leminski faz do repertório mítico, colocando em primeiro plano um personagem secundário, que representa aqui o surgimento da consciência, ponto de partida da civilização. Refabulando a fábula, reconfigurando os contos arquetípicos, ele intervém no universo da teogonia, convocando os deuses e heróis trágicos a participarem de uma nova jornada imaginativa.
Canto composto de cantos, mito tecido em outros mitos, numa irrupção de cenas rápidas e dinâmicas, como círculos concêntricos na água, desfilam nessa trama lendas e entes bizarros, como a Esfinge, criatura híbrida, com rosto e peitos de mulher, asas de águia e corpo de leão; o Minotauro, touro-homem cuja casa monstruosa é o labirinto; Pasífae, rainha que amou um Touro branco, nascido do mar; e a Medusa, cujo olhar transformava em pedra qualquer um que a fitasse. Fábulas dentro da fábula, fluindo como águas aéreas, numa aparente desordem, mas unificadas na pauta metafórica do tecido aquoso. "Se tudo pode ser metáfora de qualquer coisa e qualquer coisa pode ser traduzida numa coisa qualquer, não há centro, o centro pode estar em qualquer parte, ao mesmo tempo, ou nunca estar em lugar algum."
Metaformose é uma não-história, que desconsidera tempo e espaço e onde os personagens são idéias, ícones do comportamento humano que se entrecruzam, num ciclo de mutações e permutações onde "tudo pode se transformar em tudo". "Uns são transformados em flores, outros são transformados em pedra, outros ainda se transformam em estrelas e constelações. Nada com seu ser se conforma. Toda transformação exige uma explicação. O ser, sim, é inexplicável." Nesta prosa que escorre por entre os dedos, dispersiva como filetes das águas do Letes, o rio do esquecimento, o poeta faz menos uma prosa didática ou acadêmica que um recorte/montagem de símbolos móveis para indicar o aspecto misterioso, fugidio e ilusório (maya) do princípio rotineiro de realidade. "Que mais existe senão afirmar a multiplicidade do real, a igual probabilidade dos eventos impossíveis, a eterna troca de tudo em tudo, a única realidade absoluta? Seres se traduzem, tudo pode ser metáfora de outra coisa ou de coisa alguma, tudo irremediavelmente metamorfose."
II
"Cold, no, I don't believe your heart is cold, maybe he is just afraid to be broken again", cantava Norma antes de ser morta e violada por seus convidados, para ressuscitar depois, nua entre flores, no caixão onde colocaram seu corpo, na cíclica cerimônia de adeus. Este episódio acontece durante a festa que é o evento central de Agora é que São Elas, romance de Leminski sobre a impossibilidade de escrever romances. Neste livro estranho, que desarticula a noção tradicional de enredo, o autor subverte a sequência linear da narrativa justapondo ações simultâneas, descontínuas, em diversos planos de espaço-tempo. É como um tabuleiro de xadrez tridimensional, onde o jogo ocorre em campos paralelos, permitindo diversas possibilidades estratégicas, combinações e superposições, ou ainda como um sonho sonhado em outro sonho, para citarmos a metáfora de Poe. Em Agora é que São Elas, as ações básicas acontecem no mesmo ponto, a enigmática casa de Norma Propp, mas se repetem, ao longo do livro, em distintos planos temporais e com variações imprevistas no tabuleiro e nos lances da partida, como se fossem várias versões possíveis do mesmo jogo. Universos paralelos, percorridos por um perplexo personagem sem nome, que salta de um cenário para outro, em busca de uma solução para o misterioso quebra-cabeças.
Essa jornada insólita tem um ponto de partida que conduz aos vários caminhos de leitura do romance: numa noite chuvosa, o narrador toca a campainha de uma mansão, a fim de pedir um isqueiro para acender seu cigarro. O mordomo abre a porta e convida-o a entrar. No interior da casa, que é um cubo mágico ou labirinto, acontece uma festa que celebrava, justamente, o noivado do personagem anônimo com Norma Propp. Ele a ouve cantar uma canção de Ella Fitzgerald, antes ou depois de uma orgia, antes ou depois de um crime, antes ou depois de sair da casa, apressado, e de retornar a ela, para saber que a festa foi ontem. Ou ainda, quem sabe, será amanhã. Ou talvez nunca tenha acontecido. Similar a um espetáculo de espelhos, que exibe múltiplas imagens deformadas da mesma pessoa, a casa multiplica e reinventa os fenômenos, até a exaustão. Ou, como diz o narrador: "Esta festa e esta casa é uma máquina, um monstruoso mecanismo que se transforma e transforma o real em cerimônias". Os eventos se desenvolvem no salão de convidados, onde um maníaco jura que tem uma bomba atômica instalada no cérebro, que explodirá se ele pronunciar certa palavra, mas também no jardim, onde uma menina (3) conta estrelas e narra uma guerra cósmica envolvendo os seres gasosos de uma distante constelação. Cenas e personagens sucedem-se como as cartas embaralhadas de um jogo de pôquer, ou como as peças de um jogo da memória, cabendo ao leitor encontrar sua leitura, sua trilha de investigação dessa curiosa narrativa.
A relação erótica intensa, obsessiva, tecida em encontros e desencontros, entre Norma e o anônimo personagem ocupam o centro do romance, contada em linguagem lasciva, picante, com os timbres e toques da malandragem. Relido sob esta ótica, o livro dialoga com a vertente coloquial e fescenina, cujo moderno avatar é o Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade. O enlace amoroso, porém, se manifesta de maneira bizarra, com a prática exclusiva do sexo oral, sem a consumação do coito; recordando, de certa forma, o filme Esse Obscuro Objeto do Desejo, de Buñuel, essa outra ode ao amor que não se completa. Sob o desejo dos amantes, pesa a presença do pai de Norma, ninguém menos que Vladimir Propp, autor da Morfologia do Conto Maravilhoso, que aparece nesta prosa delirante como o psicanalista e mestre espiritual do narrador, em sua busca da sabedoria. A presença de Propp como figura de ficção abre outra via de leitura, metalinguística, no livro de Leminski, já que o sábio russo estudou a estrutura dos contos tradicionais e a construção dos personagens, elaborando uma teoria sobre a gênese das fábulas, assim descrita pelo autor-narrador: "O fato é que descobriu que todas as histórias, no fundo, constituem uma só história. (...) A gente passava por certas peripécias básicas, sempre as mesmas, só mudava a ordem". A Morfologia do Conto Maravilhoso, diz Leminski, é "um romance abstrato. Quer dizer, um romance feito de todos os romances, seus personagens são todos os personagens possíveis". Propp elaborou 31 funções básicas do personagem, e a partir desse número, tomado como talismã, Leminski dividiu seu livro em 31 capítulos, sendo que o último é subdividido em 31 partes, numa relação de isomorfismo. Dessa maneira, Agora é que São Elas não é apenas um relato ficcional, mas um romance-ensaio, paródico, alegórico, multi-referencial. Este livro incomum, que resgata e subverte os elementos típicos da fabulação (a gravidez de Norma e sua fuga com Bernardo), é também uma crítica satírica do próprio conceito de romance, que o autor considerava um gênero esgotado, típico do século XIX, por ter como referência básica o realismo, ou seja, uma técnica composicional e uma visão de mundo já superados pelo experimento joyceano (sobretudo o Finnegans Wake) e pelos novos paradigmas da física e da filosofia modernas. O duende da lógica que orientou a Comédia Humana de Balzac ou Em Busca do Tempo Perdido, de Proust, não fazia mais sentido na era do pensamento quântico: "A lógica morreu de um tumor cerebral, no verão de 1878, em Clichy, uma pequena aldeia no interior da França, quase na fronteira da Alsácia-Lorena", dispara o polaco. Só havia um problema: o que fazer com a realidade, ou melhor, com a literatura? A resposta do autor é Agora é que São Elas, "um romance sobre a minha impossibilidade de escrever romances". O livro como matéria orgânica, viva, inquieta, suscetível de moldar-se a todas as formas e suas variações inumeráveis.
III
Catatau é o relato da viagem imaginária do filósofo René Descartes ao Brasil, como membro da comitiva do conde Maurício de Nassau. Nesta prosa barroca carnavalizada, o pensamento analógico (ou demiurgo da mutação) contamina os vocábulos, as linhas e as páginas do livro, dissolvendo história, mito e símbolo na paisagem da escritura, fazendo surgir figuras híbridas, mescladas ("plantas sarcófagas", "esfinges bucefálicas"), de um universo singular e autônomo, com sua própria lógica estrutural e semântica O livro se desdobra como a pele líquida do oceano, sem divisões temáticas, mas com uma sucessão de imagens de imprecisa geometria, ignorando distinções de espaço e tempo: há um eterno agora, uma mandala onde elementos de distintas culturas e períodos são invocados e recriados, não apenas como paródia ou metáfora, mas como irônicos acordes e jogos de pensamento. A própria identidade do idioma é abalada pela construção babélica, onde rutilam timbres e toques de outras tribos, do latim ao polonês, numa algaravia de sentidos. A sintaxe é musical, sem uma lógica de gramática e dicionário, e as palavras sexualizam-se, extáticas, fazendo surgir termos neológicos ("olhosclitóris", "espiralâmides"), que recordam figuras dos quadros de Bosh. Tais composições, efetuadas pela montagem de elementos estranhos entre si, podem ser aproximadas tanto da "palavra-valise" de Carroll e Joyce quanto do conceito de imagem poética formulado por Reverdy. Em Catatau, Leminski atingiu o grau zero da escritura, onde a realidade não é abolida, mas rarefeita ou desfocada: os grafismos impressos na página transcendem a condição passiva de mensageiros do mundo para constituirem, eles próprios, um mundo, uma realidade à parte. Jornada paralela ao neobarroco de Lezama, Sarduy e Kozer (4), esta anti-epopéia de Leminski faz a simbiose do erudito e do popular, do sensual e do intelectual, do sagrado e do profano, trazendo para o texto poético - ou ainda, para a função poética - um repertório informativo só comparável ao dos portais do ciberespaço -- em Catatau, aliás, não falta sequer o "vírus de computador", que atende pelo nome de Occam (5). A ironia engenhosa do livro, talvez sua pedra-de-toque, seja o encontro da lógica européia, simbolizada em Descartes, com a exuberância primitiva de uma terra distante, esse "labirinto de enganos deleitáveis", onde impera uma outra forma de pensamento, atávica, corpórea, centrada talvez no olhar (6). Aturdido com a beleza da terra bárbara ("meus sonhos se populam da estranha fauna e flora"), e motivado ainda pelo consumo de ervas narcóticas em seu cachimbo, o filósofo, bêbado de imagens, vai despindo o rigor dos silogismos e elaborando uma outra racionalidade, onde "pensamento é espelho". Renatus Cartesius, com sua luneta, contempla o contemplável, mas as imagens captadas em suas lentes são bizarras associações entre real e irreal, sentido e sonhado, palpável e imaginário, indicando uma fusão entre o subjetivo (o olhar do observador) e o objetivo (o objeto observado), o movimento para dentro e o para fora, numa "excentricidade focal". O resultado desse enquadramento de miragens é um discurso tecido em sequências de plástica desordem, que inserem na página estranhas composições de "animais anormais", "plantas que comem carne", "uma jibóia que é só borboletas" e outros quadros da terra brasilis, borrados ou deformados à maneira cubista, mas de um cubismo antropofágico, que transfigura os contornos e o sentido das coisas, convertidas em realidades verbais. A pupila alucinada do personagem, que rege o ritmo da narrativa, opera recortes súbitos, colagens de figuras fragmentárias, ecos e espelhismos de um mundo recriado no romance impossível. Há toda uma floresta de citações e provérbios, de signos ocultos em signos, como camadas geológicas de leitura, que exigiriam o esforço de um exegeta com o fôlego e a tenacidade de um Indiana Jones. No breve espaço deste ensaio, não iremos nos iludir com a exploração metódica do fabulário, o que demandaria obra de amplo escopo. Nosso único intento foi o de registrar, de modo sucinto e impreciso, algumas impressões de leitura do multifacetado "romance-idéia" de Leminski, em paralelo com as suas outras prosas, que formam algo como uma trilogia (7), onde cada livro dialoga com os demais, em seu acabamento e visão estratégica.
NOTAS
(1) O presente ensaio enfoca as três narrativas longas em prosa de Leminski na ordem inversa em que foram publicadas. Metaformose, texto de publicação póstuma, saiu em 1994; Agora é que São Elas é de 1984, e Catatau, de 1975. Esta inversão deliberada deve-se ao método crítico adotado pelo autor, que não tem um viés diacrônico.
(2) Metaformose é um neologismo criado por Leminski a partir da palavra metamorfose, parodiando o famoso poema de Ovídio. É também o título de um poema concreto que o autor publicou na revista Invenção, composto de variações morfológicas como "amor", "mater", "morte", "amorfo" e "feto".
(3) A menina aparece ao mesmo tempo como personagem e possível autora do romance, em novo lance metalinguístico: "Essa casa é toda minha. As pessoas que estão lá dentro são meus brinquedos. Alguns, eu inventei. Alguns, meu pai comprou." Seu nome é Norma, assim como o da heroína, numa curiosa relação especular de ousider, remetendo novamente a Poe e a seu conto Wlliam Wilson.
(4) A presença do neobarroco no Brasil ainda não foi estudada de modo amplo e satisfatório, mas é possível incluir, dentro desta vertente, livros como Galáxias, de Haroldo de Campos; Catatau, de Paulo Leminski; Satori, de Horácio Costa; Mar Paraguayo, de Wilson Bueno; Ar e Corpografia, de Josely Vianna Baptista.
(5) Monstro semiótico que assombra o livro, interferindo na própria escritura. Occam é um nome derivado de um personagem lendário do século XVI, William of Ockham.
(6) Já na segunda linha de Catatau, Renatus Cartesius diz: "vejo o mar, vejo a baía e vejo as naus ", e um pouco abaixo: CONTEMPLO A CONSIDERAR O CAIS, O MAR, AS NUVENS, OS ENIGMAS E OS PRODÍGIOS DE BRASÍLIA". Essa reiteração do olhar se multiplica ao longo da narrativa, culminando na expressão "Ver é uma fábula".
(7) Uma investigação mais rigorosa da fabulação leminsqueana deveria incluir também, a nosso ver, o seu ciclo de biografias de Jesus, Bashô, Trotsky e Cruz e Sousa, reunidas no volume Vida, e a inventiva recriação do Giacomo Joyce, de James Joyce, sem esquecer do insólito O Gozo Fabuloso.
domingo, 4 de dezembro de 2011
ESQUELETOS DO NUNCA (IX)
REVOLUÇÃO
I
A revolução começa pelo escaravelho, nuvem de parietais que dizem a lavoura obsessiva dos cutelos.
II
Excessiva porque necessária, investe mamífero mamífero ante o lacerado pêlo púbico, molusco esse desprezo que se faz habitação.
III
A mobilidade das estruturas aquáticas desorienta solidez de partículas, numerações de língua desentranhadas até o ignorado.
IV
A revolução cresce nas axilas, nos limbos, ramagens, estudos para voz: é o seu destino inexoráavel.
V
Antiesquelética nebulosa, redefine o tempo e suas cavilações no jogo combinatório dos contrários.
VI
Estes são os meus instrumentos (confesso), minhas paisagens estratégicas para violar tuas orelhas, tuas cavidades, que se recusaram à minuciosa cabala de meu olhar (encanta-me tua letra, esqueleto do meu canto, voz que acende estranhos cães).
VII
A revolução está na língua, que incita ao asbesto da orgia, à mais temporária das peles, quando vemos pégasos de outro sonho e nossa incapacidade de laçá-los.
(Num hotel em Santo Domingo, 2011)
I
A revolução começa pelo escaravelho, nuvem de parietais que dizem a lavoura obsessiva dos cutelos.
II
Excessiva porque necessária, investe mamífero mamífero ante o lacerado pêlo púbico, molusco esse desprezo que se faz habitação.
III
A mobilidade das estruturas aquáticas desorienta solidez de partículas, numerações de língua desentranhadas até o ignorado.
IV
A revolução cresce nas axilas, nos limbos, ramagens, estudos para voz: é o seu destino inexoráavel.
V
Antiesquelética nebulosa, redefine o tempo e suas cavilações no jogo combinatório dos contrários.
VI
Estes são os meus instrumentos (confesso), minhas paisagens estratégicas para violar tuas orelhas, tuas cavidades, que se recusaram à minuciosa cabala de meu olhar (encanta-me tua letra, esqueleto do meu canto, voz que acende estranhos cães).
VII
A revolução está na língua, que incita ao asbesto da orgia, à mais temporária das peles, quando vemos pégasos de outro sonho e nossa incapacidade de laçá-los.
(Num hotel em Santo Domingo, 2011)
sábado, 3 de dezembro de 2011
ESQUELETOS DO NUNCA (VIII)
LIRISMO
Só acredito na ferocidade do corpo, na música epidérmica, quando você me desnasce.
(Apócrifo de Restiff de la Bretonne)
NO RESTAURANTE AZUL
Autópsia de uma saudade: máscaras japonesas, delicadas taças de laca, olhos que se afastam, aéreos, até se tornarem palavras.
(03/12/2011)
ENIGMA
“É preciso me amar até os ossos.” Com a intensidade da cremalheira, com o silêncio de um enigma que nunca se completa.
(Delfos, era mítica)
DE UM MANUSCRITO APÓCRIFO DE CÉSAR VALLEJO
Você não acredita sinceramente no silêncio da madeira, na fala dos ocos. Impossível decifrar a violência do amor: teu olho, minha carne, relógios, pêlos púbicos, realidade feita de líquidos e alarme.
(Textos apócrifos de poetas célebres, 1974)
quinta-feira, 1 de dezembro de 2011
GALERIA: JOYCE MANSOUR
Joyce Mansour (1928 -1986), pseudônimo de Joyce Patricia Adès, nasceu em Bowden (Inglaterra), filha de pais de origem judaica. Viveu parte de sua vida no Egito, onde se casou. Mudou-se para a França em 1953, onde publicou seu primeiro livro, Cris (Gritos). Ficou conhecida como poeta surrealista, tendo colaborado inclusive com a revista brasileira Phala (1967), dirigida por Sérgio Lima. A autora publicou 16 livros de poesia, além de títulos em prosa e peças teatrais.
TRÊS POEMAS DE JOYCE MANSOUR
O APELO AMARGO DE UM SOLUÇO
Venham mulheres de seios febris
Escutar em silêncio o grito da víbora
E sondar comigo o baixo nevoeiro ruivo
Que infla de súbito a voz do amigo
O rio é fresco em torno do corpo dele
Sua camisa flutua branca como o fim de um discurso
No ar substancial avaro de conchas
Inclinem-se moças intempestivas
Abandonem seus pensamentos de chapeuzinho
Suas imbecis molhadelas suas botas rápidas
Um redemoinho se produziu na vegetação
E o homem se afogou no licor
* * *
Queimar incenso na quietude de um quarto
Longe atrás dos recifes de uma jornada climática
Seguir longas caudas de negro vestidas
Nos cemitérios onde dormem os anos passados
Chorar mortos que florescem como presuntos
de Parma
Cavar sulcos rugosos nos campos
Furar o olho estagnante da noite
Beijar o pé de um papa alpinista
Ou lamber o óleo que escorre dos ídolos doloridos
Com excesso de carícias
Tudo isso me fatiga
Me exaspera
Nada vale uma boa dose de raiva
Para partir
Pois o pé cria o caminho desgasta a rocha
E derruba o totem que titubeia
No medo tropical das igrejas
É preciso afogar o galo em seu nascimento
Impedir os cegos de conduzir o trem
As pradarias da morte borboleteantes de papéis grassos
Margeiam nossos sonhos com seus altos gritos
Razão a mais para rir
AZUL COMO O DESERTO
Felizes os solitários
Os que semeiam o céu na areia ávida
Os que buscam tudo elemento vivo sob as saias as saias do vento
Os que correm ofegantes depois de um sonho evaporado
Pois são o sal da terra
Felizes as vigias sobre o oceano do deserto
As que perseguem o feneco* muito além da miragem
O sol alado perde suas plumas no horizonte
O eterno estio ri da tumba úmida
E se um grande grito ressoa nas rochas acamadas
Ninguém o ouve ninguém
O deserto uiva sempre sob um céu impávido
O olho fixo plaina só
Como a águia no despontar do dia
A morte engole o orvalho
A serpente sufoca o rato
O nômade sob sua tenda escuta o tempo ranger
Sobre o cascalho da insônia
Tudo está lá na espera de uma palavra já enunciada
Alhures
Tradução: Éclair Antonio Almeida Filho
Venham mulheres de seios febris
Escutar em silêncio o grito da víbora
E sondar comigo o baixo nevoeiro ruivo
Que infla de súbito a voz do amigo
O rio é fresco em torno do corpo dele
Sua camisa flutua branca como o fim de um discurso
No ar substancial avaro de conchas
Inclinem-se moças intempestivas
Abandonem seus pensamentos de chapeuzinho
Suas imbecis molhadelas suas botas rápidas
Um redemoinho se produziu na vegetação
E o homem se afogou no licor
* * *
Queimar incenso na quietude de um quarto
Longe atrás dos recifes de uma jornada climática
Seguir longas caudas de negro vestidas
Nos cemitérios onde dormem os anos passados
Chorar mortos que florescem como presuntos
de Parma
Cavar sulcos rugosos nos campos
Furar o olho estagnante da noite
Beijar o pé de um papa alpinista
Ou lamber o óleo que escorre dos ídolos doloridos
Com excesso de carícias
Tudo isso me fatiga
Me exaspera
Nada vale uma boa dose de raiva
Para partir
Pois o pé cria o caminho desgasta a rocha
E derruba o totem que titubeia
No medo tropical das igrejas
É preciso afogar o galo em seu nascimento
Impedir os cegos de conduzir o trem
As pradarias da morte borboleteantes de papéis grassos
Margeiam nossos sonhos com seus altos gritos
Razão a mais para rir
AZUL COMO O DESERTO
Felizes os solitários
Os que semeiam o céu na areia ávida
Os que buscam tudo elemento vivo sob as saias as saias do vento
Os que correm ofegantes depois de um sonho evaporado
Pois são o sal da terra
Felizes as vigias sobre o oceano do deserto
As que perseguem o feneco* muito além da miragem
O sol alado perde suas plumas no horizonte
O eterno estio ri da tumba úmida
E se um grande grito ressoa nas rochas acamadas
Ninguém o ouve ninguém
O deserto uiva sempre sob um céu impávido
O olho fixo plaina só
Como a águia no despontar do dia
A morte engole o orvalho
A serpente sufoca o rato
O nômade sob sua tenda escuta o tempo ranger
Sobre o cascalho da insônia
Tudo está lá na espera de uma palavra já enunciada
Alhures
Tradução: Éclair Antonio Almeida Filho
Poemas do livro Gritos rasgos e rapinas, de Joyce Mansour, com tradução de Eclair Antonio Almeida Filho e publicado recentemente pela Lumme Editor.
quarta-feira, 30 de novembro de 2011
HOMENAGEM A PAULO LEMINSKI NO CENTRO CULTURAL SÃO PAULO
Caros, no dia 06 de dezembro, terça-feira, às 19h30, o poeta Lúcio Agra fará uma palestra sobre Paulo Leminski no Centro Cultural São Paulo, dentro do ciclo mensal Poetas de Cabeceira (haverá interpretação em Libras). E no dia 16/12, sexta-feira, às 19h30, acontecerá o recital “O Ex-Estranho: Leituras de Paulo Leminski”, atividade do Clube de Leitura de Poesia, com a participação de Marcelo Tápia, Claudio Daniel, Neuza Pinheiro, Danilo Bueno, Andréa Catrópa, Dila Galvão, Estrela Leminski e Yun Jung Im. As duas atividades têm entrada franca, sem necessidade de retirada de ingressos, e acontecerão na Sala de Debates do CCSP.
terça-feira, 29 de novembro de 2011
segunda-feira, 28 de novembro de 2011
NOITE DO ORIENTE MÉDIO NO CENTRO CULTURAL SÃO PAULO
Caros, na próxima sexta-feira, dia 02 de dezembro, às 20h30, será realizado no Centro Cultural São Paulo um novo recital do ciclo Poesia dos 4 Cantos: será a Noite do Oriente Médio, que apresentará a leitura de poemas tradicionais e contemporâneos de autores do Líbano, Síria, Palestina, Irã e outros países com interpretação da poeta e atriz Francesca Cricelli e a participação dos músicos William Bordokan, Semi el Khouri Bordokan, Claudio Kairouz e Rogério de Queiroz e da dançarina Cristina Antoniadis Bordokan.
Local: Centro Cultural São Paulo – Praça das Bibliotecas
Rua Vergueiro, 1.000, próximo à estação de metrô.
Entrada franca - sem necessidade de retirada de ingressos
Durante a semana, haverá também uma exposição temática de obras da literatura do Oriente Médio nos exibidores da Biblioteca Sérgio Milliet do Centro Cultural São Paulo.
Local: Centro Cultural São Paulo – Praça das Bibliotecas
Rua Vergueiro, 1.000, próximo à estação de metrô.
Entrada franca - sem necessidade de retirada de ingressos
Durante a semana, haverá também uma exposição temática de obras da literatura do Oriente Médio nos exibidores da Biblioteca Sérgio Milliet do Centro Cultural São Paulo.
UM POEMA DE ROBERTO ECHAVARREN
CONFISSÃO PIRAMIDAL
pirâmides formando em um momento
Julián del Casal
Se a distribuição dos azuis nesta vertigem
cônica, em vésperas de primavera
sobre a colcha, espera tudo da música
ainda que colabore para o espelhismo de finais
plenos de sentidos, é que a vida
traz seus feixes apertados, suas gavelas, o torneado
turbante do qual o sol escapa girando
e não sabemos qual é a relação entre "arte" e "vida"
salvo quando o pêlo de uma gata no cio se eriça.
Se pudesses descrever a vida como uma coleção de vestidos
ou crimes que saltam à vista:
penso na foto de um indonésio com o crânio varado
por uma bala, porém esta imagem,
que está à minha disposição, é uma entre outras
e no espelhismo, nas imagens que meu corpo absorve, nas que expele,
uma onda de piolhos que, à luz tíbia da janela, aparecem na pele do macaco,
se desalinha uma cabeleira, colada com coágulos de sangue contra um crânio,
mas os olhos não se correspondem com essa ou outra imagem,
são os olhos da morte, ou melhor, do estar morrendo:
vertigem da mulher que desperta no teto de seu automóvel
feito um nó de ferros retorcidos, vê sua filha jazer a seu lado
e ao querer tocá-la percebe que não há nada onde havia um braço,
que não tem braços, que foram abolidos
como uma folha fica aprisionada entre as páginas de um livro;
onde havia um mundo ainda há um mundo.
"Nós quase te quisemos. Faltou pouco
para nos convencer. Talvez o problema não esteja em ti,
mas em uma nova forma de ver que se foi insinuando
ultimamente.
Ou então, e isto talvez nos permita ser mais exatos:
uma maneira de olhar que era a nossa
mas que já não consideramos útil, ou interessante, ou possível prosseguir.
Talvez os problemas de nossa economia
mudem as realidades de - não vamos dizer uma década,
mas daqueles poucos meses anteriores a este brutal
começo da primavera. O próprio ar,
quer dizer, as elevações repentinas no clima
desta cidade, os pináculos de som,
a luz do sol na água de uns olhos verdes, a certa hora da tarde,
muda algo tão incongruente como o cardigã da hora de jantar.
E tua vida assim, entre os crepúsculos
instantâneos e os incertos períodos de cegueira,
atravessa ruas que rapidamente deixaram de ser as mesmas
e todos os trastes de uma incipiente parafernália
com suas órbitas particulares de interesse, seus contrastes
ou divergências dentro do espírito de uma época,
quando alguém buscava simplesmente expandir ou aprofundar
os limites da compreensão e as condições do diálogo,
tornaram-se agora os mensageiros tresnoitados de uma mudança
em que os indícios não revertem a um sistema, senão implicam de súbito
que os mais inocentes sonhos de império ficaram
sem o menor xale para cobrir os ombros,
quer dizer, sem a menor possibilidade de acordo,
de somatórios que os desígnios propícios do princípio do dia
nos fazem ver agora como ruínas
antes que tenham sido completados sequer os alicerces.
Porém, a aventura é descrita em termos
tão encantadores, os cronistas continuam falando
de uma Flórida de saudações;
não já salões e salões, decorados e mobiliados
segundo o gosto prolixo dos aposentos de inverno,
onde a aurora, tão prematura agora, chega para mostrar
o leve desbotado ou deterioração dos materiais mais firmes,
o veludo, por exemplo, enroscando-se nas borlas torturadas
porém majestosas de um cortinado, atrás do qual
o Príncipe de Urbino está envolto como uma crisálida
diante da aurora já vermelha de desastres;
ou as amêndoas e o marzipã moídos neste bolo nupcial,
ou os pingentes aplastados com as colunas ainda verticais
porém partidas, e os diademas, e o índigo do mar
e o rímel de sobrancelhas e cílios;
as camisas arrancadas numa navegação de corpo perdido;
a paisagem decapitada; o indistinto
butim que um emigrado arrasta e incorpora,
de que caem fragmentos, jóias são roubadas,
novos frisos aparecem como um mar esmeralda
ou o cone de um sorvete de menta.
Pela colcha rasgada saem os pés indenes,
os pés de barro do colosso,
prestes a calçar-se de novo para a empresa
do conquistador da vez, pés alados,
pés cansados; pés que são com efeito
o único despojo da batalha."
Tradução: Luiz Roberto Guedes e Claudio Daniel
pirâmides formando em um momento
Julián del Casal
Se a distribuição dos azuis nesta vertigem
cônica, em vésperas de primavera
sobre a colcha, espera tudo da música
ainda que colabore para o espelhismo de finais
plenos de sentidos, é que a vida
traz seus feixes apertados, suas gavelas, o torneado
turbante do qual o sol escapa girando
e não sabemos qual é a relação entre "arte" e "vida"
salvo quando o pêlo de uma gata no cio se eriça.
Se pudesses descrever a vida como uma coleção de vestidos
ou crimes que saltam à vista:
penso na foto de um indonésio com o crânio varado
por uma bala, porém esta imagem,
que está à minha disposição, é uma entre outras
e no espelhismo, nas imagens que meu corpo absorve, nas que expele,
uma onda de piolhos que, à luz tíbia da janela, aparecem na pele do macaco,
se desalinha uma cabeleira, colada com coágulos de sangue contra um crânio,
mas os olhos não se correspondem com essa ou outra imagem,
são os olhos da morte, ou melhor, do estar morrendo:
vertigem da mulher que desperta no teto de seu automóvel
feito um nó de ferros retorcidos, vê sua filha jazer a seu lado
e ao querer tocá-la percebe que não há nada onde havia um braço,
que não tem braços, que foram abolidos
como uma folha fica aprisionada entre as páginas de um livro;
onde havia um mundo ainda há um mundo.
"Nós quase te quisemos. Faltou pouco
para nos convencer. Talvez o problema não esteja em ti,
mas em uma nova forma de ver que se foi insinuando
ultimamente.
Ou então, e isto talvez nos permita ser mais exatos:
uma maneira de olhar que era a nossa
mas que já não consideramos útil, ou interessante, ou possível prosseguir.
Talvez os problemas de nossa economia
mudem as realidades de - não vamos dizer uma década,
mas daqueles poucos meses anteriores a este brutal
começo da primavera. O próprio ar,
quer dizer, as elevações repentinas no clima
desta cidade, os pináculos de som,
a luz do sol na água de uns olhos verdes, a certa hora da tarde,
muda algo tão incongruente como o cardigã da hora de jantar.
E tua vida assim, entre os crepúsculos
instantâneos e os incertos períodos de cegueira,
atravessa ruas que rapidamente deixaram de ser as mesmas
e todos os trastes de uma incipiente parafernália
com suas órbitas particulares de interesse, seus contrastes
ou divergências dentro do espírito de uma época,
quando alguém buscava simplesmente expandir ou aprofundar
os limites da compreensão e as condições do diálogo,
tornaram-se agora os mensageiros tresnoitados de uma mudança
em que os indícios não revertem a um sistema, senão implicam de súbito
que os mais inocentes sonhos de império ficaram
sem o menor xale para cobrir os ombros,
quer dizer, sem a menor possibilidade de acordo,
de somatórios que os desígnios propícios do princípio do dia
nos fazem ver agora como ruínas
antes que tenham sido completados sequer os alicerces.
Porém, a aventura é descrita em termos
tão encantadores, os cronistas continuam falando
de uma Flórida de saudações;
não já salões e salões, decorados e mobiliados
segundo o gosto prolixo dos aposentos de inverno,
onde a aurora, tão prematura agora, chega para mostrar
o leve desbotado ou deterioração dos materiais mais firmes,
o veludo, por exemplo, enroscando-se nas borlas torturadas
porém majestosas de um cortinado, atrás do qual
o Príncipe de Urbino está envolto como uma crisálida
diante da aurora já vermelha de desastres;
ou as amêndoas e o marzipã moídos neste bolo nupcial,
ou os pingentes aplastados com as colunas ainda verticais
porém partidas, e os diademas, e o índigo do mar
e o rímel de sobrancelhas e cílios;
as camisas arrancadas numa navegação de corpo perdido;
a paisagem decapitada; o indistinto
butim que um emigrado arrasta e incorpora,
de que caem fragmentos, jóias são roubadas,
novos frisos aparecem como um mar esmeralda
ou o cone de um sorvete de menta.
Pela colcha rasgada saem os pés indenes,
os pés de barro do colosso,
prestes a calçar-se de novo para a empresa
do conquistador da vez, pés alados,
pés cansados; pés que são com efeito
o único despojo da batalha."
Tradução: Luiz Roberto Guedes e Claudio Daniel
quinta-feira, 24 de novembro de 2011
ATO DE SOLIDARIEDADE AO POVO PALESTINO
Caros, no dia 28 de novembro será comemorado o Dia Internacional de Solidariedade ao Povo Palestino. Haverá uma sessão solene na Assembleia Legislativa de São Paulo, às 20h. Além das manifestações de parlamentares e líderes partidários, haverá uma exposição de fotos da ocupação sionista e da resistência palestina e a leitura de poemas de autores como Darwish. Compareçam e divulguem, vamos manifestar o nosso apoio à causa palestina!
terça-feira, 22 de novembro de 2011
POETAS DA PALESTINA (III)
REFUGIADO
O sol atravessa as fronteiras
sem que os soldados atirem
o rouxinol canta manhã e tarde
e dorme em paz
com todos os pássaros dos kibutz
um asno extraviado
pica o pasto
em paz
sobre a linha de fogo
sem que os soldados atirem nele
e eu
teu filho exilado
-- Ó terra de minha pátria
entre meus olhos e teus horizontes
a muralha das fronteiras
(Salim Jabran)
SOBRE OS ÍNDIOS VERMELHOS
A América
das flores mortuárias
danças e ritmos sobre as ruínas
de vocês não sobra mais que os filmes
que provocam risos... e as lágrimas
Ó meus irmãos os mortos
que provocam o riso e as lágrimas!
Os campos dos colonos se estendem por toda parte
amplos, ricos, reverdejantes
as fábricas dos colonos ensurdecem o mundo com sua algazarra
infectam o céu
que posso dizer irmãos meus?
Que vossa história durma em paz
e a morte à civilização
que se edifica sobre as ruínas
e o sangue!
(Salim Jabran)
JOSÉ NO FUNDO DO POÇO
Tuas palavras
ó condutor de caravanas
são tristes
tuas palavras se vão com o vento
e a noite é uma horda de lobos dementes
o transeunte manchou minha fronte
me transpassaram
os inimigos me torturaram
porque meus olhos só amaram
minha pátria
me crucificaram na solidão
Ó condutor de caravanas
meus irmãos me ataram
e me lançaram no fundo do poço
seu silêncio me mata
me assassinaram
Ó condutor de caravanas
porque amei
(Muhammad Al Qissi)
Traduções: Jaime W. Cardoso e José Carlos Gondim
(Do livro Poesia palestina de combate. Rio de Janeiro: Achiamé, 1981.)
POETAS DA PALESTINA (II)
CÓLERA E TRISTEZA
A aldeia em ruínas
como um espantalho
a terra rachada
e os troncos de vossas oliveiras
como ninhos de coruja ou de corvos
quem preparou este ano a carreta?
qum trabalhou a terra?
tu! Onde está teu irmão... onde teu pai
miragens
de onde vens? de uma muralha?
ou acaso das nuvens?
velas pela dignidade dos mortos?
ou fechas tua porta ao cair da noite?
por que não te sublevas
desde o momento em que a carne do pai de teu pai
está crucificada
sobre as botas da noite
tu a amas?
eu a amei antes de ti
e tremi em suas margens escuras
era bela
mas dançou sobre minha tumba
tu e eu
pedimos satisfações à história
à bandeira que perdeu sua virilidade
quem somos?
deixa que a pressa das ruas
beba na indignidade de nosso estandarte assassinado
por que não te rebelas
quando ela estende seus braços aos outros
e seus seios
temos suportado a tristeza durante anos
e o sol não tem nascido
a tristeza é um fogo que o tempo consome
e que o vento desperta
e como domaste o fogo
sem armas
exceto a coalizão de vento e fogo
numa pátria violada
(Mahmoud Darwish)
Traduções: Jaime W. Cardoso e José Carlos Gondim
(Do livro Poesia palestina de combate. Rio de Janeiro: Achiamé, 1981.)
A aldeia em ruínas
como um espantalho
a terra rachada
e os troncos de vossas oliveiras
como ninhos de coruja ou de corvos
quem preparou este ano a carreta?
qum trabalhou a terra?
tu! Onde está teu irmão... onde teu pai
miragens
de onde vens? de uma muralha?
ou acaso das nuvens?
velas pela dignidade dos mortos?
ou fechas tua porta ao cair da noite?
por que não te sublevas
desde o momento em que a carne do pai de teu pai
está crucificada
sobre as botas da noite
tu a amas?
eu a amei antes de ti
e tremi em suas margens escuras
era bela
mas dançou sobre minha tumba
tu e eu
pedimos satisfações à história
à bandeira que perdeu sua virilidade
quem somos?
deixa que a pressa das ruas
beba na indignidade de nosso estandarte assassinado
por que não te rebelas
quando ela estende seus braços aos outros
e seus seios
temos suportado a tristeza durante anos
e o sol não tem nascido
a tristeza é um fogo que o tempo consome
e que o vento desperta
e como domaste o fogo
sem armas
exceto a coalizão de vento e fogo
numa pátria violada
(Mahmoud Darwish)
Traduções: Jaime W. Cardoso e José Carlos Gondim
(Do livro Poesia palestina de combate. Rio de Janeiro: Achiamé, 1981.)
segunda-feira, 21 de novembro de 2011
POETAS DA PALESTINA (I)
LUA DE INVERNO
Tomarei teu cadáver mártir
mandarei metê-lo em sal e enxofre
depois o tomarei como chá
como um vinho fraco
como um poema
no mercado da má poesia
e direi aos poetas
Ó! Poetas de nossa gloriosa nação
eu sou o assassino da lua
da qual vocês eram os escravos...
(Mahmoud Darwish)
OS LÁBIOS CORTADOS
Eu poderia ter contado
a história do rouxinol assassinado
poderia ter contado
a história...
se não me tivessem cortado os lábios.
(Samih al Qassim)
PROVÉRBIOS
Segundo nosso primeiro antepassado
disseram nos provérbios
“Como uma raposa
que engole uma foice”
“O que o vento traz
a tempestade leva”
“Quem rouba os outros
vive sempre
com medo”.
(Tawfik Az- Zayad)
CARTEIRA DE IDENTIDADE
Registra-me
sou árabe
o número de minha identidade é cinqüenta mil
tenho oito filhos
e o nono... virá logo depois do verão
vais te irritar por acaso?
Registra-me
sou árabe
trabalho com meus companheiros de luta
em uma pedreira
tenho oito filhos arranco pedras
o pão, as roupas, os cadernos
e não venho mendigar em tua porta
e não me dobro
diante das lajes de teu umbral
vais te irritar por acaso?
Registra-me
sou árabe
meu nome é muito comum
e sou paciente
em um país que ferve de cólera
minhas raízes...
fixadas antes do nascimento dos tempos
antes da eclosão dos séculos
antes dos ciprestes e oliveiras
antes do crescimento vegetal
meu pai... da família do arado
e não dos senhores do Nujube
meu avô era camponês
sem árvore genealógica
minha casa
uma cabana de guarda
de canas e ramagens
satisfeito com minha condição
meu nome é muito comum
Registra-me
sou árabe
sou árabe
cabelos... negros
olhos... castanhos
sinais particulares
um kuffiah e uma faixa na cabeça
as palmas ásperas como rochas
arranharam as mãos que estreitam
e amo acima de tudo azeite de oliva e o tomilho
meu endereço
sou de um povoado perdido... esquecido
de ruas sem nome
e todos os seus homens... no campo e na pedreira
amam o comunismo
vais te irritar por acaso?
Registra-me
sou árabe
tu me despojaste dos vinhedos de meus antepassados
e da terra que cultivava
com meus filhos
e não os deixaste
nem a nossos descendentes
mais que estes seixos
que nosso governo tomará também
como se diz
vamos!
escreve
bem no alto da primeira página
que não odeio os homens
que eu não agrido ninguém
mas... se me esfomeiam
como a carne de quem me despoja
e cuidado...cuida-te
de minha fome
e minha cólera.
(Mahmoud Darwish)
Traduções: Jaime W. Cardoso e José Carlos Gondim
(Do livro Poesia palestina de combate. Rio de Janeiro: Achiamé, 1981.)
Tomarei teu cadáver mártir
mandarei metê-lo em sal e enxofre
depois o tomarei como chá
como um vinho fraco
como um poema
no mercado da má poesia
e direi aos poetas
Ó! Poetas de nossa gloriosa nação
eu sou o assassino da lua
da qual vocês eram os escravos...
(Mahmoud Darwish)
OS LÁBIOS CORTADOS
Eu poderia ter contado
a história do rouxinol assassinado
poderia ter contado
a história...
se não me tivessem cortado os lábios.
(Samih al Qassim)
PROVÉRBIOS
Segundo nosso primeiro antepassado
disseram nos provérbios
“Como uma raposa
que engole uma foice”
“O que o vento traz
a tempestade leva”
“Quem rouba os outros
vive sempre
com medo”.
(Tawfik Az- Zayad)
CARTEIRA DE IDENTIDADE
Registra-me
sou árabe
o número de minha identidade é cinqüenta mil
tenho oito filhos
e o nono... virá logo depois do verão
vais te irritar por acaso?
Registra-me
sou árabe
trabalho com meus companheiros de luta
em uma pedreira
tenho oito filhos arranco pedras
o pão, as roupas, os cadernos
e não venho mendigar em tua porta
e não me dobro
diante das lajes de teu umbral
vais te irritar por acaso?
Registra-me
sou árabe
meu nome é muito comum
e sou paciente
em um país que ferve de cólera
minhas raízes...
fixadas antes do nascimento dos tempos
antes da eclosão dos séculos
antes dos ciprestes e oliveiras
antes do crescimento vegetal
meu pai... da família do arado
e não dos senhores do Nujube
meu avô era camponês
sem árvore genealógica
minha casa
uma cabana de guarda
de canas e ramagens
satisfeito com minha condição
meu nome é muito comum
Registra-me
sou árabe
sou árabe
cabelos... negros
olhos... castanhos
sinais particulares
um kuffiah e uma faixa na cabeça
as palmas ásperas como rochas
arranharam as mãos que estreitam
e amo acima de tudo azeite de oliva e o tomilho
meu endereço
sou de um povoado perdido... esquecido
de ruas sem nome
e todos os seus homens... no campo e na pedreira
amam o comunismo
vais te irritar por acaso?
Registra-me
sou árabe
tu me despojaste dos vinhedos de meus antepassados
e da terra que cultivava
com meus filhos
e não os deixaste
nem a nossos descendentes
mais que estes seixos
que nosso governo tomará também
como se diz
vamos!
escreve
bem no alto da primeira página
que não odeio os homens
que eu não agrido ninguém
mas... se me esfomeiam
como a carne de quem me despoja
e cuidado...cuida-te
de minha fome
e minha cólera.
(Mahmoud Darwish)
Traduções: Jaime W. Cardoso e José Carlos Gondim
(Do livro Poesia palestina de combate. Rio de Janeiro: Achiamé, 1981.)
domingo, 20 de novembro de 2011
POEMAS DE JÚLIO ESPINOSA GUERRA
II
Num estranho processo de metamorfose
a língua nos mumifica
enchendo-nos a boca de algodão
Taxidermistas de nós mesmos
nossos olhos são as presas
alfinetes
os ruídos.
V
Ser como o grilo
e seu canto
Permanecer oculto
nas esquinas
da casa
e dizer tanto
com tão pouco.
IX
Você se aproxima aproxima da caixa
com tremenda devoção
a seus insetos
Examina-os, inspeciona-os
sem atrever-te a soltá-los
de seus alfinetes
Mas quando ninguém te vê
à hora da sesta
por fim te decides
Levantas o cristal
e percebes
que tantas mortes
também cabem numa página
Para tirar-lhes o pó
sopras sobre suas carapaças
Sem querer
tocam-se suas membranas
fundem-se suas barrigas
e outro animal
inclassificado
deixa seu rastro no poema.
XII
Mudar de linguagem
como a serpente
muda de pele.
Traduções: Claudio Daniel
Num estranho processo de metamorfose
a língua nos mumifica
enchendo-nos a boca de algodão
Taxidermistas de nós mesmos
nossos olhos são as presas
alfinetes
os ruídos.
V
Ser como o grilo
e seu canto
Permanecer oculto
nas esquinas
da casa
e dizer tanto
com tão pouco.
IX
Você se aproxima aproxima da caixa
com tremenda devoção
a seus insetos
Examina-os, inspeciona-os
sem atrever-te a soltá-los
de seus alfinetes
Mas quando ninguém te vê
à hora da sesta
por fim te decides
Levantas o cristal
e percebes
que tantas mortes
também cabem numa página
Para tirar-lhes o pó
sopras sobre suas carapaças
Sem querer
tocam-se suas membranas
fundem-se suas barrigas
e outro animal
inclassificado
deixa seu rastro no poema.
XII
Mudar de linguagem
como a serpente
muda de pele.
Traduções: Claudio Daniel
Julio Espinosa Guerra (Chile, 1974) reside na Espanha desde 2001. Publicou os livros de poesia La soledad del encuentro (1999), Las metamorfosis de un animal sin paraíso (2004), a antologia La poesía del siglo XX en Chile (2006) e a novela El día que fue ayer (2006). Dirige a revista de poesia Heterogénea.
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