terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Estrelas devoram o azul, formigas apagando uma pétala: a prosa de invenção de Paulo Leminski

"Uma fonte é uma moça bonita que foi amada por um deus, que disse não a um rio, que fugiu de um sátiro, nada é real, nada é apenas isso, tudo é transformação, todo traçado de constelação é o pedaço de um esboço de um drama terrestre, tudo vibra de tanto significar." Metaformose (2), Uma Viagem pelo Imaginário Grego, de onde extraímos esta citação, é uma fábula singular, dentro do percurso ficcional de Leminski. Um texto de inquietante beleza, que anula as balizas entre prosa e poesia e prescinde da evolução narrativa linear. Personagens e peripécias surgem e desaparecem de modo imprevisto, sem uma seqüência de cunho naturalista; ao contrário, os relatos mitológicos são aqui pincelados de maneira impressionista, como os temas de um poema sinfônico, cuja evolução obedece a uma lógica melódica e harmônica, como o fluir e o refluir de vagas em ondulação: "Reflexos de Narciso nos ecos da ninfa, água na água, como a luz na luz, luz dentro da água". Este ritmo aquoso, construído com avanços e recuos semânticos, como deslocamentos de ondas, remete também ao simbolismo do Mar Primordial, origem da vida. É o universo feminino, noturno, amniótico onde se movimenta o feto, no espaço uterino; e também o mítico oceano celeste. Em Metaformose, esse liber aquae ("livro de água"), a música fluida é orquestrada pelo uso rítmico da pontuação, pelos cortes elípticos, efeitos aliterativos, paronomásicos, anafóricos, entre outros recursos lingüísticos que orientam a respiração verbal.

O elemento água remete ainda ao conhecido aforismo de Heráclito, sábio helênico que repetiu, sem saber, a filosofia de Lao Tzu: "Nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não somos". Água é movimento, instabilidade, mudança, como sabia Tales de Mileto ("Tudo é água"), e este é o tema básico do livro de Leminski, o princípio da mutação. Nada é estático, nessa prosa camaleônica; tudo gira em constante transmutar. O texto flui e reverbera em sucessivas camadas onde mitos e símbolos se aproximam, interagem e modificam-se, procriando novos signos: "Uma flor amarela é o olho de uma ninfa, a passagem entre duas montanhas é o lugar por onde um deus fugiu da ira do seu irmão. (...) Os olhos de Medusa brilham como as gotas de uma chuva de ouro. Nos olhos azuis de Narciso, o azul da água se transforma em céu. Estrelas devoram o azul, formigas apagando uma pétala."

Água, espelho onde Narciso contempla seu reflexo, enlouquecendo de amor por si mesmo, cumprindo o vaticínio de Tirésias ("será feliz enquanto não enxergar seu próprio rosto", frase que ressoa ao longo da úmida prosa-poema como um leitmotiv). Narciso, cego por seu ego, não ouve o apelo de Eco, ponto de partida de todo o fabulário. Este é o evento fundador da trama simbólica, como a Queda de Adão, após comer o Fruto Proibido, na leitura pessoal que Leminski faz do repertório mítico, colocando em primeiro plano um personagem secundário, que representa aqui o surgimento da consciência, ponto de partida da civilização. Refabulando a fábula, reconfigurando os contos arquetípicos, ele intervém no universo da teogonia, convocando os deuses e heróis trágicos a participarem de uma nova jornada imaginativa.

Canto composto de cantos, mito tecido em outros mitos, numa irrupção de cenas rápidas e dinâmicas, como círculos concêntricos na água, desfilam nessa trama lendas e entes bizarros, como a Esfinge, criatura híbrida, com rosto e peitos de mulher, asas de águia e corpo de leão; o Minotauro, touro-homem cuja casa monstruosa é o labirinto; Pasífae, rainha que amou um Touro branco, nascido do mar; e a Medusa, cujo olhar transformava em pedra qualquer um que a fitasse. Fábulas dentro da fábula, fluindo como águas aéreas, numa aparente desordem, mas unificadas na pauta metafórica do tecido aquoso. "Se tudo pode ser metáfora de qualquer coisa e qualquer coisa pode ser traduzida numa coisa qualquer, não há centro, o centro pode estar em qualquer parte, ao mesmo tempo, ou nunca estar em lugar algum."

Metaformose é uma não-história, que desconsidera tempo e espaço e onde os personagens são idéias, ícones do comportamento humano que se entrecruzam, num ciclo de mutações e permutações onde "tudo pode se transformar em tudo". "Uns são transformados em flores, outros são transformados em pedra, outros ainda se transformam em estrelas e constelações. Nada com seu ser se conforma. Toda transformação exige uma explicação. O ser, sim, é inexplicável." Nesta prosa que escorre por entre os dedos, dispersiva como filetes das águas do Letes, o rio do esquecimento, o poeta faz menos uma prosa didática ou acadêmica que um recorte/montagem de símbolos móveis para indicar o aspecto misterioso, fugidio e ilusório (maya) do princípio rotineiro de realidade. "Que mais existe senão afirmar a multiplicidade do real, a igual probabilidade dos eventos impossíveis, a eterna troca de tudo em tudo, a única realidade absoluta? Seres se traduzem, tudo pode ser metáfora de outra coisa ou de coisa alguma, tudo irremediavelmente metamorfose."

II

"Cold, no, I don't believe your heart is cold, maybe he is just afraid to be broken again", cantava Norma antes de ser morta e violada por seus convidados, para ressuscitar depois, nua entre flores, no caixão onde colocaram seu corpo, na cíclica cerimônia de adeus. Este episódio acontece durante a festa que é o evento central de Agora é que São Elas, romance de Leminski sobre a impossibilidade de escrever romances. Neste livro estranho, que desarticula a noção tradicional de enredo, o autor subverte a sequência linear da narrativa justapondo ações simultâneas, descontínuas, em diversos planos de espaço-tempo. É como um tabuleiro de xadrez tridimensional, onde o jogo ocorre em campos paralelos, permitindo diversas possibilidades estratégicas, combinações e superposições, ou ainda como um sonho sonhado em outro sonho, para citarmos a metáfora de Poe. Em Agora é que São Elas, as ações básicas acontecem no mesmo ponto, a enigmática casa de Norma Propp, mas se repetem, ao longo do livro, em distintos planos temporais e com variações imprevistas no tabuleiro e nos lances da partida, como se fossem várias versões possíveis do mesmo jogo. Universos paralelos, percorridos por um perplexo personagem sem nome, que salta de um cenário para outro, em busca de uma solução para o misterioso quebra-cabeças.

Essa jornada insólita tem um ponto de partida que conduz aos vários caminhos de leitura do romance: numa noite chuvosa, o narrador toca a campainha de uma mansão, a fim de pedir um isqueiro para acender seu cigarro. O mordomo abre a porta e convida-o a entrar. No interior da casa, que é um cubo mágico ou labirinto, acontece uma festa que celebrava, justamente, o noivado do personagem anônimo com Norma Propp. Ele a ouve cantar uma canção de Ella Fitzgerald, antes ou depois de uma orgia, antes ou depois de um crime, antes ou depois de sair da casa, apressado, e de retornar a ela, para saber que a festa foi ontem. Ou ainda, quem sabe, será amanhã. Ou talvez nunca tenha acontecido. Similar a um espetáculo de espelhos, que exibe múltiplas imagens deformadas da mesma pessoa, a casa multiplica e reinventa os fenômenos, até a exaustão. Ou, como diz o narrador: "Esta festa e esta casa é uma máquina, um monstruoso mecanismo que se transforma e transforma o real em cerimônias". Os eventos se desenvolvem no salão de convidados, onde um maníaco jura que tem uma bomba atômica instalada no cérebro, que explodirá se ele pronunciar certa palavra, mas também no jardim, onde uma menina (3) conta estrelas e narra uma guerra cósmica envolvendo os seres gasosos de uma distante constelação. Cenas e personagens sucedem-se como as cartas embaralhadas de um jogo de pôquer, ou como as peças de um jogo da memória, cabendo ao leitor encontrar sua leitura, sua trilha de investigação dessa curiosa narrativa.

A relação erótica intensa, obsessiva, tecida em encontros e desencontros, entre Norma e o anônimo personagem ocupam o centro do romance, contada em linguagem lasciva, picante, com os timbres e toques da malandragem. Relido sob esta ótica, o livro dialoga com a vertente coloquial e fescenina, cujo moderno avatar é o Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade. O enlace amoroso, porém, se manifesta de maneira bizarra, com a prática exclusiva do sexo oral, sem a consumação do coito; recordando, de certa forma, o filme Esse Obscuro Objeto do Desejo, de Buñuel, essa outra ode ao amor que não se completa. Sob o desejo dos amantes, pesa a presença do pai de Norma, ninguém menos que Vladimir Propp, autor da Morfologia do Conto Maravilhoso, que aparece nesta prosa delirante como o psicanalista e mestre espiritual do narrador, em sua busca da sabedoria. A presença de Propp como figura de ficção abre outra via de leitura, metalinguística, no livro de Leminski, já que o sábio russo estudou a estrutura dos contos tradicionais e a construção dos personagens, elaborando uma teoria sobre a gênese das fábulas, assim descrita pelo autor-narrador: "O fato é que descobriu que todas as histórias, no fundo, constituem uma só história. (...) A gente passava por certas peripécias básicas, sempre as mesmas, só mudava a ordem". A Morfologia do Conto Maravilhoso, diz Leminski, é "um romance abstrato. Quer dizer, um romance feito de todos os romances, seus personagens são todos os personagens possíveis". Propp elaborou 31 funções básicas do personagem, e a partir desse número, tomado como talismã, Leminski dividiu seu livro em 31 capítulos, sendo que o último é subdividido em 31 partes, numa relação de isomorfismo. Dessa maneira, Agora é que São Elas não é apenas um relato ficcional, mas um romance-ensaio, paródico, alegórico, multi-referencial. Este livro incomum, que resgata e subverte os elementos típicos da fabulação (a gravidez de Norma e sua fuga com Bernardo), é também uma crítica satírica do próprio conceito de romance, que o autor considerava um gênero esgotado, típico do século XIX, por ter como referência básica o realismo, ou seja, uma técnica composicional e uma visão de mundo já superados pelo experimento joyceano (sobretudo o Finnegans Wake) e pelos novos paradigmas da física e da filosofia modernas. O duende da lógica que orientou a Comédia Humana de Balzac ou Em Busca do Tempo Perdido, de Proust, não fazia mais sentido na era do pensamento quântico: "A lógica morreu de um tumor cerebral, no verão de 1878, em Clichy, uma pequena aldeia no interior da França, quase na fronteira da Alsácia-Lorena", dispara o polaco. Só havia um problema: o que fazer com a realidade, ou melhor, com a literatura? A resposta do autor é Agora é que São Elas, "um romance sobre a minha impossibilidade de escrever romances". O livro como matéria orgânica, viva, inquieta, suscetível de moldar-se a todas as formas e suas variações inumeráveis.

III

Catatau é o relato da viagem imaginária do filósofo René Descartes ao Brasil, como membro da comitiva do conde Maurício de Nassau. Nesta prosa barroca carnavalizada, o pensamento analógico (ou demiurgo da mutação) contamina os vocábulos, as linhas e as páginas do livro, dissolvendo história, mito e símbolo na paisagem da escritura, fazendo surgir figuras híbridas, mescladas ("plantas sarcófagas", "esfinges bucefálicas"), de um universo singular e autônomo, com sua própria lógica estrutural e semântica O livro se desdobra como a pele líquida do oceano, sem divisões temáticas, mas com uma sucessão de imagens de imprecisa geometria, ignorando distinções de espaço e tempo: há um eterno agora, uma mandala onde elementos de distintas culturas e períodos são invocados e recriados, não apenas como paródia ou metáfora, mas como irônicos acordes e jogos de pensamento. A própria identidade do idioma é abalada pela construção babélica, onde rutilam timbres e toques de outras tribos, do latim ao polonês, numa algaravia de sentidos. A sintaxe é musical, sem uma lógica de gramática e dicionário, e as palavras sexualizam-se, extáticas, fazendo surgir termos neológicos ("olhosclitóris", "espiralâmides"), que recordam figuras dos quadros de Bosh. Tais composições, efetuadas pela montagem de elementos estranhos entre si, podem ser aproximadas tanto da "palavra-valise" de Carroll e Joyce quanto do conceito de imagem poética formulado por Reverdy. Em Catatau, Leminski atingiu o grau zero da escritura, onde a realidade não é abolida, mas rarefeita ou desfocada: os grafismos impressos na página transcendem a condição passiva de mensageiros do mundo para constituirem, eles próprios, um mundo, uma realidade à parte. Jornada paralela ao neobarroco de Lezama, Sarduy e Kozer (4), esta anti-epopéia de Leminski faz a simbiose do erudito e do popular, do sensual e do intelectual, do sagrado e do profano, trazendo para o texto poético - ou ainda, para a função poética - um repertório informativo só comparável ao dos portais do ciberespaço -- em Catatau, aliás, não falta sequer o "vírus de computador", que atende pelo nome de Occam (5). A ironia engenhosa do livro, talvez sua pedra-de-toque, seja o encontro da lógica européia, simbolizada em Descartes, com a exuberância primitiva de uma terra distante, esse "labirinto de enganos deleitáveis", onde impera uma outra forma de pensamento, atávica, corpórea, centrada talvez no olhar (6). Aturdido com a beleza da terra bárbara ("meus sonhos se populam da estranha fauna e flora"), e motivado ainda pelo consumo de ervas narcóticas em seu cachimbo, o filósofo, bêbado de imagens, vai despindo o rigor dos silogismos e elaborando uma outra racionalidade, onde "pensamento é espelho". Renatus Cartesius, com sua luneta, contempla o contemplável, mas as imagens captadas em suas lentes são bizarras associações entre real e irreal, sentido e sonhado, palpável e imaginário, indicando uma fusão entre o subjetivo (o olhar do observador) e o objetivo (o objeto observado), o movimento para dentro e o para fora, numa "excentricidade focal". O resultado desse enquadramento de miragens é um discurso tecido em sequências de plástica desordem, que inserem na página estranhas composições de "animais anormais", "plantas que comem carne", "uma jibóia que é só borboletas" e outros quadros da terra brasilis, borrados ou deformados à maneira cubista, mas de um cubismo antropofágico, que transfigura os contornos e o sentido das coisas, convertidas em realidades verbais. A pupila alucinada do personagem, que rege o ritmo da narrativa, opera recortes súbitos, colagens de figuras fragmentárias, ecos e espelhismos de um mundo recriado no romance impossível. Há toda uma floresta de citações e provérbios, de signos ocultos em signos, como camadas geológicas de leitura, que exigiriam o esforço de um exegeta com o fôlego e a tenacidade de um Indiana Jones. No breve espaço deste ensaio, não iremos nos iludir com a exploração metódica do fabulário, o que demandaria obra de amplo escopo. Nosso único intento foi o de registrar, de modo sucinto e impreciso, algumas impressões de leitura do multifacetado "romance-idéia" de Leminski, em paralelo com as suas outras prosas, que formam algo como uma trilogia (7), onde cada livro dialoga com os demais, em seu acabamento e visão estratégica.

NOTAS

(1) O presente ensaio enfoca as três narrativas longas em prosa de Leminski na ordem inversa em que foram publicadas. Metaformose, texto de publicação póstuma, saiu em 1994; Agora é que São Elas é de 1984, e Catatau, de 1975. Esta inversão deliberada deve-se ao método crítico adotado pelo autor, que não tem um viés diacrônico.

(2) Metaformose é um neologismo criado por Leminski a partir da palavra metamorfose, parodiando o famoso poema de Ovídio. É também o título de um poema concreto que o autor publicou na revista Invenção, composto de variações morfológicas como "amor", "mater", "morte", "amorfo" e "feto".

(3) A menina aparece ao mesmo tempo como personagem e possível autora do romance, em novo lance metalinguístico: "Essa casa é toda minha. As pessoas que estão lá dentro são meus brinquedos. Alguns, eu inventei. Alguns, meu pai comprou." Seu nome é Norma, assim como o da heroína, numa curiosa relação especular de ousider, remetendo novamente a Poe e a seu conto Wlliam Wilson.

(4) A presença do neobarroco no Brasil ainda não foi estudada de modo amplo e satisfatório, mas é possível incluir, dentro desta vertente, livros como Galáxias, de Haroldo de Campos; Catatau, de Paulo Leminski; Satori, de Horácio Costa; Mar Paraguayo, de Wilson Bueno; Ar e Corpografia, de Josely Vianna Baptista.

(5) Monstro semiótico que assombra o livro, interferindo na própria escritura. Occam é um nome derivado de um personagem lendário do século XVI, William of Ockham.

(6) Já na segunda linha de Catatau, Renatus Cartesius diz: "vejo o mar, vejo a baía e vejo as naus ", e um pouco abaixo: CONTEMPLO A CONSIDERAR O CAIS, O MAR, AS NUVENS, OS ENIGMAS E OS PRODÍGIOS DE BRASÍLIA". Essa reiteração do olhar se multiplica ao longo da narrativa, culminando na expressão "Ver é uma fábula".

(7) Uma investigação mais rigorosa da fabulação leminsqueana deveria incluir também, a nosso ver, o seu ciclo de biografias de Jesus, Bashô, Trotsky e Cruz e Sousa, reunidas no volume Vida, e a inventiva recriação do Giacomo Joyce, de James Joyce, sem esquecer do insólito O Gozo Fabuloso.

Nenhum comentário:

Postar um comentário