RELENDO MOI-MÊME (VII)

GAVITA, GAVITA (fragmentos)
escuro, escuro como um uivo - som de sombra - esquálido e fecal - voz miúda, no espaço espesso. gestos surdos, de pele tensionada - mãos fluidas que tateiam o ar. sim, está enfeitiçada. ginga, negra e cega, em voo tosco. vibra o torso, em vaivém, nas pontas dos pés. ginga e gira, com serpentes nos braços, e treme toda, torva e turva. não tem unhas, só garras; nem lábios, apenas gritos mudos. ela expande os passos, sem volúpia ou cisma, e s'incandesce, crestando o solo. é toda fera e fúria. está enfeitiçada, e me apavora. eu sorvo sua treva, e afundo em visões de salamandra. visitei as páginas de um livro de magia, e invoquei as figuras retorcidas da insânia: vêm, astaroth, asmodeus, sintam a carne que ofereço a seus caninos.

(eu sabia os nomes das flores, quando menino, das estrelas e insetos;) (juntava lagartas numa caixa de sândalo) (e rezava pelas almas das princesas suicidadas.) (um albino ensinava-me latim) (e apertava fortemente meus testículos.) (laos deo, laos deo.) (citações de cícero e da guerra da gália) (até soar a sineta para o desjejum.) (eu gostava dos turíbulos e ostensórios,) (dos saltérios e vitrais) (em que o filho do homem) (sangrava por nossas culpas.) (excitava-me com sua dor.) (amava ícones mal pintados,) (palavras arcanas,) (música de violoncelo) (e sonhava ser marinheiro) (ou alcoólatra.) (certo dia, fugi.) (oh estações, oh castelos.) (açoitei a delicadeza,) (fiz-me barro, besta, bruto;) (um selvagem, sim, selvagem,) (e toquei tambor) (na noite do sabá.)

(minha mãe tinha seios brancos) (e voz branca de medievo místico.) (ela foi a lua cheia,) (angélica e nivosa,) (oh monja da cela constelada.) (meu pai foi um rude fazendeiro,) (igualmente branco,) (cujo olhar tinha odor de antigas armaduras.) (recordo seu rosto de falcão,) (as pequenas mãos trigueiras,) (a voz pesada, de bacamarte.) (eles eram de diversa estirpe,) (mas eu os amei,) (em minha estranha epiderme,) (na nostalgia de outro reino,) (que não sei.) (dizem os juristas) (que no céu) (todos são brancos,) (como as velas dos santos,) (o linho,) (o algodão.) (é verdade que sou um deslocado,) (desbocado,) (excêntrica bizarria,) (rosa cúbica, talvez.) (vejam, aqui está) (o negrinho) (que fala francês,) (membro de uma raça impura,) (turba de pobres diabos,) (ratos depenados,) (pretos amaldiçoados.) (é verdade,) (confesso aos senhores,) (a minha escurez,) (mas guardo comigo) (a música das esferas.)

está enfeitiçada, e canta ladainhas. em nervosa mímica de punhos, move-se como a naja em sua caverna, o peito magro ornado com colares de crânios, os cabelos azuis cobertos de cinzas. ela dança, dança sobre o meu ventre, agitando as armas de suas múltiplas mãos, e beija-me a boca com os acres perfumes do crematório. delírio contorcido, convulsivo / de felinas serpentes, / no silamento e no mover lascivo / das caudas e dos dentes. (não há qualquer caminho) (ou via ideal) (com trigais e monjolos,) (apenas a rua) (tortuosa do grito,) (a vereda) (fantástica) (do absinto.)
(Do livro Romanceiro de Dona Virgo. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.)

sábado, 30 de janeiro de 2010

RELENDO MOI-MÊME (VI)

LETRA NEGRA (fragmentos)
XII

invento estranhos jogos, ó górgonas, busco uma saída para a insânia. crio nomes para as cores: azul é asmodeus, vermelho, belial, roxo, astaroth, branco, balam, violeta, astarté. alucino palavras até queimarem parietais, rótulas, tendões, nervos retorcidos em rude seqüência de mutações. renomeio teu corpo, matéria transfigurável, ao percorrê-lo de esperma: boca é amêijoa, dorso é fataça, vagina é lagamar, olhos são gavinhas, tetas são guantes, e assim até o extremo da pele. escrevo nomes para o teu nome: você é agramática majólica, replicante sexual, lince nervurada, ubíqua sulamita, ninfa alvaiade, náutila lupina, mielina menina da fronteira.

XXI

desofuscar difrações epidérmicas

vegetal noturno grafias de retráteis.

corrosão, sede nocaute de especulares

seqüência de mamíferos ao ignorado,

vegetal noturno atravessa buceta réptil.


XXII

descontínua realidade mandíbula de mamute ou mandala.


XXIII

águas coléricas
nas folhas,

esqueletos
de carros

convertidos
em rasuras,

cão desenterra
secas cabeças
de cogumelos

— fragmentos
de metáforas
podres:

paisagem
que se transfigura
e definha

entre uma
respiração
e um breve piscar
de pálpebras.


XXVIII

caranguejos da noite
arranham farpas
esfiapam silêncio
sem órbitas de vogais
parietais de esqueletos
investidos de ódios
em onde de nuncas:
noite é a ferida do nome
noite é queimam palavras
ferida é nunca de nunca mais


XXIX

esta é a maneira de sermos brutais,
com a aspereza
de quem caminha
pelas ruas,
mascando lascas.

não preciso dar explicações
com palavras de madeira,
porque sou impuro
e espontâneo
como a fera.

esta é minha sombra magra, confesso,
estes, os meus passos desordenados.

nenhuma estrela para definir o dramatismo da noite
ao longo da jornada,
nem os ramos
de uma árvore inclinada.

quem considere imprecisa a descrição,
que escreva o seu próprio
rascunho,
com a fúria
violeta
do escaravelho.

sem contar nove vezes
menos um eco,
sigo minha jornada bípede,
de energúmeno.

nada aqui faz sentido para os meus lábios
vociferantes;

e como não venero
deuses de esterco,
nem as clausuras
cíclicas da história,

sigo andando
com minhas omoplatas,
minhas axilas,
meu caralho,

minha testa
desenhada
com símbolos alquímicos,

e um poema
escrito para ninguém
nas linhas torcidas

de meus pulsos.
(Letra Negra. São Paulo: Arqueria Editorial, 2010)

RELENDO MOI-MÊME (V)


BETTY BLUE


I

Piano, tarântula;
punho ferido
e o globo ocular
pelo desmanche
da memória.

II

(Ofélia descentrada,
banha-se em prata
de céu abortado.)

III

Paraíso clorofórmio:
inscrever o exílio
dos lábios na pele,
metalizada e muda.

IV

(Flashback)

Nereida meretriz
na gravata epitáfio;
tufos de barba
da morta madre,
como um presságio.

V

(Finale):

Ele travestiu-se
para o ofício de Perséfone,
após domar a dor.
Repousa agora
o olho único da inquieta.


PARTITURA

Perplexidade, raios de um sol

que redesenha seu centro;

essa matéria tão delicada,

ferozes epitélios da flor;

deslizando das pupilas,

revoluta, para outro mar,

após tingir o flanco da noite.

Fosse apenas o perambular

em outra relva, seria tema

de chanson; dissociada de mim,

reclinada em lua minguante,

seria musa de retrato fauvista,

excedendo o rubro tigrino.

De todo modo, um dia vou

felinizá-la em partitura.


CARANGUEJO

Aquática paisagem, faixas de areia e uma seqüência de morros, horizonte simulando música. Quiosques vendem camarões e mariscos. Meninos magros e morenos jogam bola com uma cabeça decepada. A velha senhora inglesa lê o Herald Tribune com lentes bifocais. O sorveteiro anuncia profecias apocalípticas. Há um furacão nas ilhas Fidji. Esferas planas surgem no céu de Okinawa, como pegadas de urso. Um sargento aposentado em Kansas conversa com os peixes. Não há nada que seja realmente absurdo. Tudo está escrito em algum lugar, nas Tábuas de Esmeralda, no Popol Vuh, no Livro Tibetano dos Mortos. Há quem diga que a espuma no oceano é uma linguagem. Há uma lógica irrefutável no movimento dos astros. O destino foi escrito nas palmas de nossas mãos. Tudo isso ignoro, não me diz respeito; palavras são detritos como algas, conchas ou brincos oferecidos à deusa das águas. Eu só deslizo as pinças entre possibilidades. Invisto minha carapaça vermelho-marrom, que você tanto ama, até o centro da dúvida, para encontrar minha fábula. Eu sou a imagem deste enigma, a contradição de um crustáceo.


ANTICABEÇA (II)

Lona podre, nacos de carne, torsos caindo; escuras mariposas (stukas) caindo; sirenes, uma canção.

Bater nos cornos do céu, capricórnio adoece em luzes de urina; olhos blindados; cano de fuzil apontado para a lua.

Esferas ou cilindros de cérberos; o aço grunhe; rajadas de agni; fogos-fátuos; bocas lanhadas por detritos.

Há um pássaro de três cabeças, e um só canto; uma jovem nua flutua no céu.

Emily pediu um livro (borboleta voando) de gravuras coloridas (sonhada por um chinês), com capa veludosa (desejada por um gato) e marcador de páginas (com bigodes de mandarim).

Ela, que ama peônias, biombos, nanquins, e sonha ser enfermeira num grande hospital em Berlim.

Ela, que ama o verde mar de gaivotas, e a prata que cintila nas peças do aparelho de chá.

Isso foi há quanto tempo? Havia um piano de cauda e lenços brancos, pedaços de carneiro e o pôr-do-sol.

Agora, só há o verde-prata, ou verde-escuro, verde-panther; na boca do dragão.

(Como um livro) (de figuras) (metálicas;) (imagens) (d’esqueletos) (turvos;) (surdos) (espectros) (em sarabanda,) (invernal.)

Palavras zumbem na mente; difícil caminhar com o peso do mundo. Este é um tempo sombrio, tempo da impureza, do branco mesclado ao amarelo.

Lao Tzu rumou para o Sul, montado num touro, búfalo ou grou. O guarda da fronteira pediu-lhe sua inútil sabedoria.
(Poemas do livro Fera Bifronte. Bauru: Lumme Editor, 2009)

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

RELENDO MOI-MÊME (IV)

DIBUJO
(Abu Ghraib)

Uma figura
de enguia
-palavras
de carbono,
forma esquálida
de garra,
à maneira
simples
de tubérculo.
Dizer
o diamante?
Não, a demência
papilar
traçada
em rocha:
pintura
de mortos,
caligrafia
de grunhidos.
Assim
porque
ferrugem
ou azul-ferrete,
despetalar
os corvos
brancos
- tudo
é tumulto,
gritos
fanhos
na pupila.

TRAÇA

(Entre fólios de ciência antiga e espectros de monjas nuas desencarnadas.)

(Olhos opiados afundam em partituras da Outra Margem.)

(Ruge um leão hipnótico.)

(Letras sangradas na pele de carneiro. Figuras metálicas em expansão.)

(Palavras criam realidades.)

(Traças cavam sendas no papel.)

(Toda leitura é uma cicatriz.)


PULGA

Quando enlouquece na hora vermelha - surda e ascética, em gago contorcionismo - labora semeadura de pústulas, até saciar a fome.


BARATA

Seminuas vendem sabonetes e o mar azul-da-prússia de paisagens recortadas de cartão-postal. Movimentos sincopados de ancas revelam saliências epidérmicas ao som da música melíflua de oboés. Jatos d'água escorrem pela concha do umbigo sob o céu cocainado, longe de estrias e da micose que avança nos pés. O verde em alta definição da folhagem oculta o sulco espesso da cavidade e atrai suspiros plásticos, romanescos, fluindo como sangue menstrual. Súbito, assoma a logomarca com a inocência animal de uma máquina de calcular. Iates e sol jamaicano anunciam o novo capítulo da novela. Seminuas têm medo de barata.


PIOLHO

Barítono de carapaça e gravata quase lilás mergulha os olhos baços no copo de cerveja irlandesa entre cotações do mercado financeiro.(Passa uma sombra magra de seios fumantes.) Verde álcool, cogumelos e vozes graves de semblantes que suicidam a noite estrelada. Lady sings the blues para vocal e piano. Retrato de Wilde na parede e tapeçarias com toscos motivos de gnomos de barba pontuda. O business man engole nacos de carne vermelha entre chamadas ao celular e citações do Economist sobre a crise da balança comercial. Tabaco provoca câncer. Trabalho conduz à liberdade. Café com creme e canela. A metafísica do compromisso institucional. Todo homem de negócios é sério. Tem sapatos sérios de couro italiano e óculos sérios com aro de tartaruga. New York, New York. Bico de papagaio na coluna recurvada. Folders de lançamento do novo produto. Brieffings para a mídia. Um calor estival, quase Saara. Relógio digital marcando quinze minutos para Qualquer Tempo. Uma vaga sensação de arritmia (fadiga ou problemas coronários). Executivos sempre usam marcapasso, água-de-colônia e longas meias pretas.

(Poemas do livro Pequenas aniquilações, incluído na minha antologia pessoal Figuras Metálicas. São Paulo: Perspectiva, 2005.)

RELENDO MOI-MÊME (III)


EGITO

SOMBRA, nome
do que cala,
voz de papiro.
Esta é outra areia;
essa, não aquela
estrela. Estou nu
da face ao torso,
e danço outra vez
sobre os caninos.
Hora de dizer
a flor e o grito,
o que nasce em mim
é tua carne escura.
Egito, vem
de teu umbigo
ao meu segredo.

ÍNDIA

SÓ A LOUCURA.
Vem, do púbis
às omoplatas,
canta o antigo
sol, sua face
de flama animal
raiando desejosa.
Flor de sândalo,
diz ao tempo:
agora é sempre,
fecha tua asa,
expira em fumo
e cobre. Vêm,
Lakshmi-Naráyana,
flagelar o medo,
fustigar a sílaba
muda, para o
tempo de cristal.

GRÉCIA

UM JOGO
de centauros.
Inflama
o trigo da pele;
grita teu olho,
dos pés à cabeça;
teu olho é pele,
teu olho é sol
de sêmen, desfaz
o rosto na água,
acasala tuas éguas.
Depois, lacera-te,
lapida tua boca,
bebe tua urina.
Arde a terra,
arde a carne.
Então, cala bílis
e fleuma; despido
como um deus,
abraça a deusa
do silente mistério.

PÉRSIA

E NÃO TER mais fim.
Noite é espelho
de teu ventre,
bebe dessa fonte,
cessa toda água;
dança outra música,
nem há cordas
ou sopros, então
rasga tua roupa,
nem há trapos;
chora, não há mais
lágrimas. Fogo, arde
o que me queima;
terra, engole-me
num trago. Só canto
e danço os noventa
e nove nomes
de Allah, e rodopio.
Para que fermente
o vinho; e enlouqueça
em seios brancos;
e não diga nada; nem
saiba onde ou quando,
só amor de amor.
Sei,eu sou tu;
agora,sou eterno.

(Poemas do livro A Sombra do Leopardo. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2001.)

RELENDO MOI-MÊME (II)


NOITE-OCEANO

ondulosamente

a noite

azul-turquesa

oceânica

perpassa

em tuas

pupilas

— seda

azeviche

jaspe

negro

pele de

jaguar:

a comum

cegueira


NOITE-SEIOS

luazulada

alvíssima

deslinda-se

no céu

finíssima

auréola:

pó de luz

que cintila

nos róseos

mamilos

desnudados

— lua

em luas

refletida,

prata

em prata

lucilada


TABI

o vento
açoita
bambus:

dançam
sombras.

no caule
da vagem,
o orvalho

resvala
na lua.

o gato
imita
o tigre:

rumor
de aves.

brancas
geleiras
lácteas:

o colo
do cisne.

o fuji
apunhala
a névoa:

fiapos
de branco.

no sonho,
o monge
em viagem:

tudo
é miragem.

(Poemas do livro Yumê. São Paulo: Ciência do Acidente, 1999.)

RELENDO MOI-MÊME (I)


KNAAT

sépala
fibra de cristal
reflexo
de ouro branco
o musgo
na concha opala
e
o canto
oblíquo
do gafanhoto

tudo isso
— e nada disso —
é o Knaat

AKMA

é
o sílex-
lírio-marfil-cimitarra,
gárgula
do incompreensível
silêncio:
é
a nãoverbena, o nãodiamante, o nãopolifemo
o não
anão
(sombra infracta)
o não
(sim!)
a sós

OS CÂNONES DA DOR

unhas nos sulcos
da pele, em todos
os poros da dor:

a dor que é pedra
no limiar da fala
que verte em suor.

o som do inaudível
uivo — uivo ósseo,
uivo epidérmico —

instila, inflama
todas as suturas
e corre, abissal

em verdes glóbulos
de sonora náusea
e dolorosa repulsa.

(Poemas do livro Sutra, edição do autor, 1992)

UMA CONVERSA COM REYNALDO JIMÉNEZ (III)

RJ: Você mencionou há pouco a imaginação como um componente de tua poética. Numa época de todo tipo de “realismos”, não é frequente escutar esta reivindicação. Como opera em tua prática criativa esse elemento aglutinante e por sua vez proliferante da imaginação?

CD: Acho interessante a proposta de romper, na escritura poética, com as normas e limites de uma suposta “realidade” objetiva, incorporando referências simbólicas e culturais, conteúdos e fatos de outras “realidades”, presentes em mitologias, filosofias, sonhos, filmes, poemas e demais experiências. Como já fizeram, séculos antes de Dali ou Breton, pintores como Bosch e Brueghel ou escritores como Dante e Shakespeare (para não falar do Sousândrade do Inferno de Wall Street). Discordo, no entanto, de aspectos básicos da estética e do pensamento surrealistas; minha poesia é planejada, calculo os efeitos, os recursos, a linguagem, ainda que incorporando sugestões da intuição e do acaso. Por outro lado, os surrealistas conservaram intacto o “verso”, embora como verso livre (unidade melódico-sintática do poema), a gramática e a linearidade do discurso; todo meu esforço vai no sentido oposto, ou seja, rumo à fragmentação da sintaxe e desarticulação da lógica discursiva, por meio de outras formas de associação entre as palavras. claro que, em alguns textos, mesclo de maneira deliberada objetos banais como arames, garrafas, botas de borracha, a imagens de jaguares ou minaretes. Para quê? Para provocar estranhamento e subverter a suposta “normalidade” do cenário (e da escritura), numa espécie de ação de desmascarar o cotidiano, mostrar seu absurdo, sua tênue fronteira com a “irrealidade”. São caricaturas, sátiras verbais, com todo o exagero sugerido pela própria loucura do “real”.

O poeta, para mim, é um criador de outras realidades; pelas relações inusitadas entre as palavras, ele articula novas formas de pensamento e, logo, novos modelos de mundo. Esse é o potencial subversivo da linguagem, é, digamos, sua ação política. O artista questiona as formas viciadas de viver, sentir e pensar, reflete criticamente sobre a lógica do poder estabelecido, e não se pode cumprir esta missão com formas estéticas convencionais. É preciso criar sempre novos instrumentos de guerrilha cultural, pois não é possível questionar estruturas sociais sem colocar em xeque também o mecanismo de pensamento e a linguagem que são produzidos por essas mesmas estruturas. Quando alguém recorre a formas de escritura tradicionais, ainda que aborde temas “sociais”, não estará fazendo nada além de reproduzir os modelos de ideias vigentes na sociedade. Ao romper com estes padrões e propor outros modelos de comunicar ideias e sensações, o poeta não está conduzindo uma insubordinação aparente, mas uma transformação profunda, que produz novos conteúdos, em uma rebelião contra o banal imediato e o lugar-comum. Tal é o papel da imaginação e da renovação estética: ser também uma ruptura com padrões rotineiros de consciência.
(Continua)

UMA CONVERSA COM REYNALDO JIMÉNEZ (II)


RJ: Você caracterizou a tua poesia pela “brevidade de linhas” e “concisão de imagens”, mas, por outro lado, mencionou a paixão barroca. Ao contrário do que se supõe, o barroco permanece mais como um conceito arquitetônico em suas composições, inclusive as verbais, que a mera dispersão acumulativa ou horror ao vazio que se lhe atribui. Agora, segundo percebo, as práticas contemplativas se concentram também no vazio. O que isso te sugere?

CD: Creio que a minha escritura se situa em uma zona fronteiriça entre a concisão e o excesso, a geometria e a vertigem, o equilíbrio e a fúria. Gosto de explorar estruturas, formas de composição, sonoridades, sem permanecer fixo em único ponto. Quando conquisto uma forma poética, ela perde todo o interesse para mim, e saio em busca de outra forma. É o meu código de conduta pessoal, o meu bushido: não repetir o que já fiz (neste caso, é preferível permanecer em silêncio), mas intentar outras formas de escolha e combinação entre as palavras. Minha formação literária inicial esteve marcada pela leitura dos simbolistas, como Baudelaire, Mallarmé, Rimbaud; com eles, aprendi a alquimia verbal, a sinestesia, o gosto pela estranheza das imagens. A poesia não como cópia mimética do cotidiano, o registro fotográfico de circunstâncias, mas como criação de outras realidades pela palavra (nesse ponto, podemos recordar Huidobro e sua defesa da poesia como um universo “com sua própria fauna e flora”). Sem dúvida, esses pontos luminosos estão presentes até hoje no que escrevo; no entanto, o descobrimento de João Cabral, da Poesia Concreta, já na adolescência, mudou a minha maneira de ver a construção do poema, disciplinando a seleção e associação dos vocábulos, de um modo planejado. Não acredito em uma poesia puramente intuitiva, à maneira da escrita automática dos surrealistas, mas tampouco ambiciono uma pura matemática ou arquitetura impessoal. Há em meus textos muitos elementos da subjetividade, das obsessões do imaginário, ainda que tudo seja modulado segundo uma lógica estrutural precisa: alucino com método.

Creio que meus primeiros poemas aceitáveis nasceram desse matrimônio entre céu e inferno, a exuberância sensorial dos simbolistas e o artesanato rigoroso da vanguarda. A leitura posterior dos neobarrocos latino-americanos me abriu outras portas, mostrou outras possibilidades de investigação poética, com uma luxúria semântica bizarra, ainda que bem ordenada. Comecei a estudar e traduzir esses poetas, como José Kozer, Eduardo Milán, Victor Sosa, Reynaldo Jiménez, e sem dúvida há ecos da pérola irregular transplatina em meus escritos. No entanto, nunca quis ser um poeta “neobarroco”, assim como não sou “concretista” ou “pós-simbolista”. Tento criar uma linguagem própria a partir dessas leituras díspares, inclusive contraditórias, sem restringir-me a um único discurso.

Minha poesia é algo como um jazz fusion, uma mescla programada de referências (e poderia acrescentar o muito que devo a Herberto Helder e Paul Celan, além dos diálogos com a pintura e o cinema). Não quero filiar-me a nenhum conceito estanque. Por outro lado, não vejo contradição entre o “artesanato furioso” do barroquismo e certa economia de recursos: a riqueza imagética, a invenção sintática e outros rituais da religião de Lezama podem estar presentes em estruturas concisas. O que me fascina no barroco moderno é a síntese que opera entre diferentes repertórios culturais e linguísticos, desobedecendo limites impostos pela história e pela geografia, fazendo da atualidade um momento de encontro de culturas. Isto me interessa muito, já que sou um admirador da música clássica européia e também dos cantares chineses, tibetanos, africanos. Tudo isso me alimenta. Se logrei formar uma voz pessoal, ela será uma reverberação de vozes, de ecos, um mosaico composto de tudo aquilo que minha imaginação foi capaz de reunir e combinar, a partir de um repertório escolhido e de minha experiência de vida (que inclui os fatos ocorridos e os sonhados). Não creio ser possível escrever sem dialogar de algum modo com a tradição (claro, aquela tradição pessoal, que nós escolhemos). Por outro lado, a tradição não é mais do que uma sucessão de rupturas, de rebeldias contra os cânones estabelecidos (Dante é clássico hoje, mas não o foi em seu tempo). Seguir a tradição, assim, é traí-la, reinventá-la, de acordo com a nossa capacidade de traduzir em palavras aquilo que o duende nos sugere.

(CONTINUA)

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

UMA CONVERSA COM REYNALDO JIMÉNEZ

RJ: Começarei perguntando sobre a tua experiência, no ano passado, em um mosteiro budista e, se você achar interessante, a partir daí entrar em teu conceito de escritura de poesia.

CD: O meu interesse pela filosofia budista começou em 1990, quando estive no mosteiro zen Morro da Vargem, no Espírito Santo. Esta viagem foi motivada pelo descobrimento da poesia japonesa, e em especial Bashô, que me encantou com suas imagens precisas, breves, imprevistas: pequenas paisagens verbais construídas com poucas palavras, mas de grande intensidade e concentração (tal como acontece na pintura sumi-ê ou nos arranjos florais). Para entender melhor o que era o haicai, fui estudar o zen, primeiro nos livros (Suzuki, Herrigel), que é a maneira inadequada de compreender esta filosofia, e depois pela meditação. Esse contato mais próximo com o zen foi breve, mas trouxe-me benefícios, na vida e na poesia (não pratiquei muito o haicai, mas os meus poemas ficaram impregnados pela brevidade das linhas e pelas imagens concisas). Confesso que o tema espiritual sempre foi delicado para mim. Durante minha juventude, fui ateu e tive completa aversão a tudo o que se relacionasse com a questão religiosa; isso aconteceu devido à minha recusa da fé cristã (por sua história de inquisições, cruzadas, apoio a regimes autoritários e falso moralismo), e também pela leitura de autores como Nietzsche, Freud, Marx, que me entusiasmaram. No entanto, após a queda do Muro de Berlim e o surgimento do consenso neoliberal, senti a necessidade de buscar outros modelos de ética e humanismo, como contraponto ao processo de robotização (ou idioditazção) do ser humano.

Nessa busca, estudei muitas coisas, além do zen-budismo: doutrinas da Índia (Shankara, Ramakrishna), da China (Lao Tzu, Chuang Tzu), místicos ocidentais (Plotino, San Juan de la Cruz), alguns filósofos pouco convencionais (Montaigne, Schopenhauer), com espírito aberto, sem preconceitos. Foi o descobrimento de um oceano, de um universo com argumentos que satisfaziam minha racionalidade (muitas coisas da física, da astronomia e da psicologia remontam a este pensamento ancestral: está tudo ali nos Vedas!) e o desejo de uma ética profunda, baseada na compaixão e no cultivo da paz. Para encurtar a conversa: depois de conhecer um pouco dessas diferentes tradições, escolhi como caminho pessoal a via do budismo tibetano, o Vajrayana (talvez por ser mais “barroco”, em sua iconografia, cerimônias e práticas mântricas; brinco, o que me seduziu aqui foi o seu modo de exposição do dharma, em harmonia com a vida ocidental, e o charme irresistível de Lama Gangchen Rimpoche).

Quem ler isto talvez pense em mim como um monge, lunático ou excêntrico, o que é parcialmente verdade. Confesso, no entanto, que sou um péssimo budista, relaxado, desordenado, rebelde, indisciplinado; não recuso o vinho nem o tabaco, nem deixo de sentir paixão e fúria. Sou, desde sempre, obsessivo, contraditório, ambíguo. Estou muito longe de ser um boddhisattva. Porém, considero que estou melhor hoje do que antes, por saber conviver melhor com as confusões da mente, e tenho a esperança de seguir mais profundamente a jornada espiritual. Respondendo (finalmente!) a sua pergunta: não estive em um mosteiro, no ano passado, e sim num retiro de meditação em Tara Verde, realizado num belíssimo sítio em Minas Gerais. Foi uma pequena epifania, um breve instante de deslumbramento, e momentos como este são sempre raros, profundos e indispensáveis para seguir suportando a dor.

(Entrevista publicada na revista argentina Tsé-Tsé n. 17, em 2006)

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

DIÁRIO DE UM EX-FUMANTE


Caros, eu deixei de fumar há exatamente um ano e três semanas. “Existe vida após o cigarro?”, perguntou-me um amigo, certa vez. Sim, existe. Você pode viver, e bem, sem nicotina no pulmão. Porém, é preciso substituir o vício por outra coisa (os primeiros quatro meses de abstinência são os mais dolorosos). Em meu caso, troquei o velho Benson and Hedges mentolado, que consumi durante quase 30 anos, por duas trufas de chocolate por dia, e um número incalculável de pudins de baunilha com calda de caramelo, toda semana. Engordei quase quinze quilos (como sou magro por formação genética, isso não foi nenhum problema). Porém, acredito que eu teria voltado a fumar, se não praticasse regularmente Espada de Tai Chi Chuan e Aikidô, artes marciais que exigem um certo preparo físico. Sou apaixonado por Wushu desde criança, tenho fascínio pela coreografia dessas técnicas, por sua beleza rítmica, pela construção de cada movimento, que se transforma em outro num jogo sensível e inteligente que envolve todo o corpo, não só os pés e as mãos. O objetivo de me desenvolver nessas artes foi mais forte do que o desejo de fumar; eu tinha, afinal, uma motivação. Isto nada tem a ver com a vontade de viver mais (75 anos para mim está de bom tamanho, nunca gostei de fazer hora extra), com o culto à saúde (nesse caso, sou mais favorável ao princípio do prazer) ou obsessão pelo corpo (conheço minhas limitações e sei que nunca terei músculos de Bruce Lee). Também não se deve a convicções religiosas ou filosóficas (o budismo condena o tabagismo, mas é tolerante com quem não consegue abandonar o vício), e muito menos devido à pressão imbecil do politicamente correto (sou do contra, logo, a minha predisposição natural seria a de fumar constantemente em locais públicos para contrariar a norma. Como dizia o outro, “é proibido proibir”). O motivo real de minha desistência do tabaco é este: gosto de praticar artes marciais; tenho prazer em executar esses movimentos, que imitam os gestos dos animais, os fenômenos da natureza e se relacionam a uma visão de mundo mais profunda do que se imagina (leiam os comentários de Confúcio ao I Ching, e depois me contem o que entenderam). Sou mais feliz hoje, sem o cigarro. Mas não quero fazer sermão para convencer ninguém. Todo mundo tem o direito de se matar em paz (e eu respeito isso; cada vez encontro menos motivos para continuar aqui). Porém, se você quer parar de fumar e não consegue, dou apenas essa dica: troque o cigarro por outra coisa mais prazerosa. Caso contrário, será extremamente difícil abandonar o vício.

VAMOS FALAR DE POLÍTICA?

Caros, o Programa Nacional de Direitos Humanos, apresentado pelo governo federal, apresenta uma série de propostas avançadas para o país, como a união civil entre pessoas do mesmo sexo, a descriminalização do aborto, a punição dos crimes de tortura praticados durante o regime militar, a taxação das grandes fortunas, a revisão das regras dos planos de saúde (mais interessados no lucro fácil e rápido do que na proteção da saúde dos associados), entre outras medidas. O texto é volumoso, com mais de 500 propostas, e certamente merece discussão aprofundada na sociedade. A mídia vem atacando duramente o programa, assim como os militares, a cúpula católica e os grandes proprietários de terras, e por conta dessa pressão das camadas mais retrógradas da sociedade (com o apoio de partidos como o PSDB), o presidente Lula abrandou o texto do programa, deixando vago o artigo sobre crimes de tortura e retirando a questão do aborto. Se a sociedade civil não reagir, posicionando-se a favor do Programa Nacional de Direitos Humanos, corremos o risco de perder uma chance histórica. Não se trata de apoio ao PT, ao Lula ou à candidatura de Dilma, mas sim a propostas específicas que são positivas para a maioria da população do país. Enquanto nós ficamos quietos e calados, a direita entra em ação, e ela sabe muito bem defender os seus interesses.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

LANÇAMENTO DE LETRA NEGRA





Caros, no dia 16 de janeiro, sábado, às 20h, na Casa das Rosas, será realizado o lançamento da minha plaquete Letra Negra, publicado pela Arqueria, durante o evento Sarau da Casa, aguardo vocês lá! O endereço é Avenida Paulista, 37, próximo à estação Brigadeiro do metrô. Quem reside em outra cidade pode encomendar a plaquete pelo site http://arqueria.wordpress.com/

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

UM POEMA DE CESÁRIO VERDE

CONTRARIEDADES

Eu hoje estou cruel, frenético, exigente;
Nem posso tolerar os livros mais bizarros.
Incrível! Já fumei três maços de cigarros
Consecutivamente.

Dói-me a cabeça. Abafo uns desesperos mudos:
Tanta depravação nos usos, nos costumes!
Amo, insensatamente, os ácidos, os gumes
E os ângulos agudos.

Sentei-me à secretária. Ali defronte mora
Uma infeliz, sem peito, os dois pulmões doentes;
Sofre de faltas de ar, morreram-lhe os parentes
E engoma para fora.

Pobre esqueleto branco entre as nevadas roupas!
Tão lívida! O doutor deixou-a. Mortifica.
Lidando sempre! E deve conta à botica!
Mal ganha para sopas...

O obstáculo estimula, torna-nos perversos;
Agora sinto-me eu cheio de raivas frias,
Por causa dum jornal me rejeitar, há dias,
Um folhetim de versos.

Que mau humor! Rasguei uma epopeia morta
No fundo da gaveta. O que produz o estudo?
Mais uma redação, das que elogiam tudo,
Me tem fechado a porta.

A crítica segundo o método de Taine
Ignoram-na. Juntei numa fogueira imensa
Muitíssimos papeis inéditos. A imprensa
Vale um desdém solene.

Com raras exceções, merece-me o epigrama.
Deu meia-noite; e a paz pela calçada abaixo,
Um sol-e-dó. Chovisca. O populacho
Diverte-se na lama.

Eu nunca dediquei poemas às fortunas,
Mas sim, por deferência, a amigos ou a artistas.
Independente! Só por isso os jornalistas
Me negam as colunas.

Receiam que o assinante ingênuo os abandone,
Se forem publicar tais coisas, tais autores.
Arte? Não lhes convém, visto que os seus leitores
Deliram por Zaccone.

Um prosador qualquer desfruta fama honrosa,
Obtém dinheiro, arranja a sua "coterie";
E a mim, não há questão que mais me contrarie
Do que escrever em prosa.

A adulação repugna aos sentimento finos;
Eu raramente falo aos nossos literatos,
E apuro-me em lançar originais e exatos,
Os meus alexandrinos...

E a tísica? Fechada, e com o ferro aceso!
Ignora que a asfixia a combustão das brasas,
Não foge do estendal que lhe umedece as casas,
E fina-se ao desprezo!

Mantém-se a chá e pão! Antes entrar na cova.
Esvai-se; e todavia, à tarde, fracamente,
Oiço-a cantarolar uma canção plangente
Duma opereta nova!

Perfeitamente. Vou findar sem azedume.
Quem sabe se depois, eu rico e noutros climas,
Conseguirei reler essas antigas rimas,
Impressas em volume?

Nas letras eu conheço um campo de manobras;
Emprega-se a "réclame", a intriga, o anúncio, a "blague",
E esta poesia pede um editor que pague
Todas as minhas obras...

E estou melhor; passou-me a cólera. E a vizinha?
A pobre engomadeira ir-se-á deitar sem ceia?
Vejo-lhe a luz no quarto. Inda trabalha. É feia...
Que mundo! Coitadinha!

(De O Livro de Cesário Verde)

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

UM POEMA DE CAMILO PESSANHA

POEMA FINAL

Ó cores virtuais que jazeis subterrâneas,
- Fulgurações azuis, vermelhos de hemoptise,
Represados clarões, cromáticas vesânias -,
No limbo onde esperais a luz que vos batize,

As pálpebras cerrai, ansiosas não veleis.
Abortos que pendeis as frontes cor de cidra,
Tão graves de cismar, nos bocais dos museus,
E escutando o correr da água na clepsidra,

Vagamente sorris, resignados e ateus,
Cessai de cogitar, o abismo não sondeis.
Gemebundo arrulhar dos sonhos não sonhados,

Que toda a noite errais, doces almas penando,
E as asas lacerais na aresta dos telhados,
E no vento expirais em um queixume brando,

Adormecei. Não suspireis. Não respireis.

(Do livro Clepsidra)

UM POEMA DE MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO

DISPERSÃO

Perdi-me dentro de mim
Porque eu era labirinto,
E hoje, quando me sinto,
É com saudades de mim.

Passei pela minha vida
Um astro doido a sonhar.
Na ânsia de ultrapassar,
Nem dei pela minha vida...

Para mim é sempre ontem,
Não tenho amanhã nem hoje:
O tempo que aos outros foge
Cai sobre mim feito ontem.

(O Domingo de Paris
Lembra-me o desaparecido
Que sentia comovido
Os Domingos de Paris:

Porque um domingo é família,
É bem-estar, é singeleza,
E os que olham a beleza
Não têm bem-estar nem família).

O pobre moço das ânsias...
Tu, sim, tu eras alguém!
E foi por isso também
Que te abismaste nas ânsias.

A grande ave doirada
Bateu asas para os céus,
Mas fechou-as saciada
Ao ver que ganhava os céus.

Como se chora um amante,
Assim me choro a mim mesmo:
Eu fui amante inconstante
Que se traiu a si mesmo.

Não sinto o espaço que encerro
Nem as linhas que projeto:
Se me olho a um espelho, erro —
Não me acho no que projeto.

Regresso dentro de mim
Mas nada me fala, nada!
Tenho a alma amortalhada,
Sequinha, dentro de mim.

Não perdi a minha alma,
Fiquei com ela, perdida.
Assim eu choro, da vida,
A morte da minha alma.

Saudosamente recordo
Uma gentil companheira
Que na minha vida inteira
Eu nunca vi... Mas recordo

A sua boca doirada
E o seu corpo esmaecido,
Em um hálito perdido
Que vem na tarde doirada.

(As minhas grandes saudades
São do que nunca enlacei.
Ai, como eu tenho saudades
Dos sonhos que não sonhei!...)

E sinto que a minha morte —
Minha dispersão total —
Existe lá longe, ao norte,
Numa grande capital.

Vejo o meu último dia
Pintado em rolos de fumo,
E todo azul-de-agonia
Em sombra e além me sumo.

Ternura feita saudade,
Eu beijo as minhas mãos brancas...
Sou amor e piedade
Em face dessas mãos brancas...

Tristes mãos longas e lindas
Que eram feitas pra se dar...
Ninguém mas quis apertar...
Tristes mãos longas e lindas...

Eu tenho pena de mim,
Pobre menino ideal...
Que me faltou afinal?
Um elo? Um rastro?... Ai de mim!...

Desceu-me n'alma o crepúsculo;
Eu fui alguém que passou.
Serei, mas já não me sou;
Não vivo, durmo o crepúsculo.

Álcool dum sono outonal
Me penetrou vagamente
A difundir-me dormente
Em urna bruma outonal.

Perdi a morte e a vida,
E, louco, não enlouqueço...
A hora foge vivida,
Eu sigo-a, mas permaneço...

............................................

Castelos desmantelados,
Leões alados sem juba...

..........................................

Paris, maio, 1913

(Do livro Dispersão)

UM POEMA DE VIELIMIR KHLÉBNIKOV

O ÚNICO LIVRO

Vi que os negros Vedas,
o Evangelho e o Alcorão
mais os livros dos mongóis
em suas tábuas de seda
— como as mulheres calmucas todas as manhãs —
ergueram juntos uma pira
de poeira da estepe
e odoroso estrume seco
e sobre ela pousaram.
Viúvas brancas veladas numa nuvem de fumo,
apressavam o advento
do livro único,
cujas páginas maiores que o mar
tremem como asas de borboletas safira,
e há um marcador de seda
no ponto onde o leitor parou os olhos.
Os grandes rios com sua torrente azul:
— o Volga, onde à noite celebram Rázin;
— o Nilo amarelo, onde imprecam ao Sol;
— o Yang-tze kiang, onde há um denso lodo humano;
— e tu, Mississípi, onde os ianques
trajam calças de céu estrelado,
enrolando as pernas nas estrelas;
— e o Ganges, onde a gente escura são árvores de ciência;
— e o Danúbio, onde em branco homens brancos
de camisa branca pairam sobre a água;
— e o Zambeze, onde a gente é mais negra que uma bota;
— e o fogoso Obi, onde espancam o deus
e o voltam de olhos para a parede
quando comem iguarias gordurosas;
— e o Tâmisa, no seu tédio cinza.
O gênero humano é o leitor do livro.
Na capa, o timbre do artífice —
meu nome, em caracteres azuis.
Porém tu lês levianamente;
presta mais atenção:
és por demais aéreo, nada levas a sério.
Logo estarás lendo com fluência
— lições de uma lei divina —
estas cadeias de montanhas, estes mares imensos,
este livro único,
em cujas folhas salta a baleia
quando a águia dobrando a página no canto
desce sobre as ondas, mamas do mar,
e repousa no leito do falcão marinho.

Tradução: Haroldo de Campos

MAIS LEZAMA

CHAMADO DO DESEJOSO

Desejoso é aquele que foge de sua mãe.
Despedir-se é cultivar um orvalho para uni-lo com a secularidade da saliva.
A profundidade do desejo não vai até o seqüestro do fruto.
Desejoso é deixar de ver sua mãe.
É a ausência do acontecido de um dia que se prolonga
e é à noite que essa ausência vai afundando como uma faca.
Nessa ausência se abre uma torre, nessa torre dança um fogo oco.
E assim se alarga e a ausência da mãe é um mar tranquilo.
Porém, o fugidio não vê a faca que lhe pergunta,
é da mãe, dos seguros postigos, de quem se foge.
O descendido em sangue antigo soa vazio.
O sangue é frio quando desce e quando se espalha em círculo.
A mãe é fria e está perfeita.
Se é pela morte, seu peso é duplo e não mais nos solta.
Não é pelas portas onde se assoma nosso abandono.
É por uma clareira onde a mãe segue andando, mas já não nos segue.
É por uma clareira, ali se cega e então nos deixa.
Ai do que não anda esse andar onde a mãe já não o segue, ai.
Não é desconhecer-se, o conhecer-se segue furioso como em seus dias,
mas segui-lo seria queimarem-se os dois em uma só árvore,
e ela gosta de olhar a árvore como uma pedra,
como uma pedra com a inscrição de antigos jogos.
Nosso desejo não é alcançar ou incorporar um fruto ácido.
O desejoso é o fugitivo
e das cabeçadas com nossas mães cai o planeta centro de mesa
e de onde fugimos, se não é de nossas mães que fugimos,
que nunca querem recomeçar o mesmo naipe, a mesma noite de
igual ilharga descomunal?


AH, QUE VOCÊ ESCAPE

Ah, que você escape no instante
em que já tinha alcançado sua melhor definição.
Ah, minha amiga, não queira acreditar
nas perguntas dessa estrela recém-cortada,
que vai molhando suas pontas em outra estrela inimiga.
Ah, se fosse certo que, à hora do banho,
quando, em uma mesma água discursiva,
se banham a imóvel paisagem e os animais mais finos:
antílopes, serpentes de passos breves, de passos evaporados,
parecem entre sonhos, sem ânsias levantar
os mais extensos cabelos e a água mais recordada.
Ah, minha amiga, se no puro mármore das despedidas
tivesse deixado a estátua que poderia nos acompanhar,
pois o vento, o vento gracioso,
se estende como um gato para deixar-se definir.

Traduções: Claudio Daniel

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

UM POEMA DE LEZAMA LIMA


OS FRAGMENTOS DA NOITE

Como isolar os fragmentos da noite
para apertar algo com as mãos,
como a lebre penetra em sua escuridão
separando duas estrelas
apoiadas no brilho da relva úmida.
A noite respira em uma intocável umidade,
não no centro da esfera que voa,
e tudo vai unindo, esquinas ou fragmentos,
até formar o inviolável tecido da noite,
sutil e complexo como os dedos unidos
que apenas deixam passar a água,
como um cestinho mágico
que nada vazio dentro do rio.
Eu queria separar minhas mãos da noite,
porém se ouvia uma grande sonoridade que não se ouvia,
como se meu corpo inteiro tivesse caído sobre uma serafina
silenciosa na esquina do templo.
A noite era um relógio, não para o tempo
mas para a luz,
era um polvo que era uma pedra,
era uma teia como uma piçarra cheia de olhos.
Eu queria resgatar a noite
isolando seus fragmentos,
que nada sabiam de um corpo,
de um tubo de órgão
somente da substância que voa
desconhecendo o pestanejar da luz.
Queria resgatar a respiração
e se alçava em sua solidão e esplendor
até formar o pneuma universal
anterior à aparição do homem.
A soma respirante
que forma os grandes continentes
da aurora que sorri
com as pernas de pau infantis.
Eu queria resgatar os fragmentos da noite
e formava uma substância universal,
então comecei a mergulhar
os dedos e os olhos na noite,
soltava todas as amarras da barcaça.
Era um combate sem fim,
entre o que eu queria arrancar da noite
e o que a noite me presenteava.
O sonho, com contornos de diamante,
prendia a lebre
com orelhas de trevo.
Momentaneamente tive que abandonar a casa
para dar passagem à noite.
Que brusquidão quebrou essa continuidade,
entre a noite projetando o teto,
sustentando-o como entre duas nuvens
que flutuavam na escuridão submergida.
No início que não anota os nomes,
a chegada do diferenciado com sinetas
de aço, com olhos
para a profundidade das águas
onde a noite repousava.
Como em um incêndio,
eu queria recolher as recordações da noite,
o tilintar até o golpe de misericórdia
como quando, com a palma da mão,
batemos a massa de pão.
O sonho voltou a prender a lebre
que arranhava meus braços
com pauzinhos de aguarrás.
Rindo, repartia grandes cicatrizes em meu rosto.

Tradução: Claudio Daniel e Luiz Roberto Guedes

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

LETRA NEGRA NA CASA DAS ROSAS

Caros, no dia 16 de janeiro, sábado, às 20h, estarei na Casa das Rosas, participando do Sarau da Casa. Na ocasião, farei uma leitura de alguns trechos do poema-livro Letra Negra, cujo lançamento será nessa mesma data. A edição é do selo Arqueria, e o projeto gráfico ficou impactante. Endereço: Avenida Paulista, 37, próximo à estação Brigadeiro do metrô. Aguardo vocês lá!

UM POEMA DE PAUL CELAN


RETRATO DE UMA SOMBRA

Os teus olhos, rastro de luz dos meus passos;
a tua testa, lavrada pelo brilho dos punhais;
a tua sobrancelha, orla pelo caminho da tragédia;
as tuas pestanas, mensageiros de longas cartas;
os teus cabelos, corvos, corvos, corvos;
as tuas faces, campos de armas da madrugada;
os teus lábios, hóspedes tardios;
os teus ombros, estátua do esquecimento;
os teus seios, amigos das minhas serpentes;
os teus braços, alámos à porta do castelo;
as tuas mãos, tábuas de juras mortas;
as tuas ancas, pão e esperança;
o teu sexo, lei do fogo na floresta;
as tuas coxas, asas no abismo;
os teus joelhos, máscaras da tua altivez;
os teus pés, campos de batalha dos pensamentos;
as tuas solas, criptas em chamas;
as tuas pegadas, olho da nossa despedida.

Tradução: João Barrento

(Do livro A morte é uma flor. Lisboa: Cotovia, 1998.)

UMA PROSA DE HERBERTO HELDER


TEORIA DAS CORES

Era uma vez um pintor que tinha um aquário com um peixe vermelho. Vivia o peixe tranquilamente acompanhado pela sua cor vermelha até que principiou a tornar-se negro a partir de dentro, um nó preto atrás da cor encarnada. O nó desenvolvia-se alastrando e tomando conta de todo o peixe. Por fora do aquário o pintor assistia surpreendido ao aparecimento do novo peixe.

O problema do artista era que, obrigado a interromper o quadro onde estava a chegar o vermelho do peixe, não sabia que fazer da cor preta que ele agora lhe ensinava. Os elementos do problema contituíam-se na observação dos fatos e punham-se por esta ordem: peixe, vermelho pintor – sendo o vermelho nexo entre o peixe e o quadro através do pintor. O preto formava a insídia do real e abria um abismo na primitiva fidelidade do pintor.

Ao meditar sobre as razões da mudança exatamente quando assentava na sua fidelidade, o pintor supôs que o peixe, efetuando um número de mágica, mostrava que existia apenas uma lei abrangendo tanto o mundo das coisas como o da imaginação. Era a lei da metamorfose.

Compreendida esta espécie de fidelidade, o artista pintou um peixe amarelo.

(Do livro Os passos em volta. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2005.)

UM POEMA DE YAO FENG

DIMNESS

when the fish close their eyes
streams of rivers
dyed, now black ribbons

the love in my heart
like a blind man
looking up in the dark
to see your face

time is invented
to torture good things

you close your eyes
using up all the salt
to wait for two lines of tears

on the piano
white keys
crash
like waves
on the rocks


Translated by Jenny Lao e Christopher Kelen

(Do livro When the fish close there eyes. Association of Stories in Macao, 2007)

TRÊS POEMAS DE YAO JINGMING

OS OLHOS

Sem dizer que são a destruição do mundo,
ou dois cestos cheios de nada.

São sempre uma casa, atrás do horizonte,
e muito maior do que a noite.

Mas sem a porta
pinto-a, com o vento cego;
sem palavras.


O SEU MAR DE LÁGRIMAS

Ao seu mar de lágrimas,
quantas pessoas vão com uma colher?

Só eu, por ser peixe.


CADA UM À ESPERA DO OUTRO

Cada um à espera do outro...
Sempre.

Eu, disposto
já parti para uma espera certa
à minha maneira...
Ando em cantar.

O que sai da minha garganta é canção.
O que se sufoca na minha garganta é também canção.
Com elas, estrangulo a distância
e faço dela uma porta aberta
para uma história.

Cada um à espera do outro
sempre
sempre.

(Do livro Nas asas do vento cego. Lisboa: Átrio, 1991)

MAIS JOYCE MANSOUR

GRITOS

Me deixa te amar
Amo o gosto do teu sangue espesso
Por longo tempo o conservo em minha boca sem dentes
Seu ardor me incendeia a garganta
Amo o teu suor
Amo acariciar tuas axilas
Banhadas de alegria
Me deixa te amar
Me deixa lamber os teus olhos fechados
Me deixa furá-los com a minha língua pontuda
E lhes encher as órbitas com a minha saliva
Me deixa te cegar

* * *
Queres o meu ventre para te nutrires
Queres meus cabelos para te fartares
Queres meus rins meus seios minha cabeça raspada
Queres que eu morra lentamente lentamente
Que eu mumure morrendo palavras de criança

Tradução: José Paulo Paes

TRÊS POEMAS DE JOYCE MANSOUR


A amazona comia seu derradeiro seio
À noite antes da batalha final
Seu cavalo calvo respirava o ar fresco do mar
Escoiceando de ódio relinchando seu medo
Pois os deuses desciam dos montes da ciência
Traziam consigo os homens
E os tanques

***
Febre teu sexo é um caranguejo
Febre os gatos mamam em tuas tetas verdes
Febre a rapidez do movimento de tuas ancas
A voracidade de tuas mucosas canibais
O abraço de teus tubos que estremecem que bradam
Despedaçam meus dedos de couro
Arrancam meus pistons
Febre esponja morta inchada de moleza
Minha boca breve ao longo de tua linha do horizonte
Viajante sem medo em um mar de frenesi

* * *

Quero partir sem bagagens para o céu
Meu desgosto asfixia-me porque a minha lingua é pura
Quero partir para longe das mulheres com mãos gordas
Que acariciam meus seios nus
E que cospem sua urina em minha sopa
Quero partir silenciosa à noite
Hibernar nas brumas do esquecimento
Penteada por um rato
Estapeada pelo vento
Tentando crer nas mentiras de meu amante

Tradução : Roberto Bessa

A POESIA BRASILEIRA VISTA NOS ESTADOS UNIDOS

Caros, o poeta, professor e estudioso da cultura brasileira Charles Perrone acaba de publicar o livro Brazil, Lyric, and the Americas, um estudo das relações entre a poesia brasileira contemporânea e as Américas. São abordados, entre outros autores, Ricardo Corona, Ademir Assunção e Rodrigo Garcia Lopes. Charles Perrone, que leciona na Universidade da Flórida, é um dos maiores conhecedores de nossa poesia nos Estados Unidos e já publicou outras obras instigantes, como Letras e letras da MPB. Assim que eu receber o meu exemplar do livro, voltarei ao assunto aqui, contando mais detalhes. O fato é que a poesia brasileira é hoje vista de maneira mais objetiva, imparcial e rigorosa no exterior, por exemplo nas antologias Alguna Poesia Brasileña, de Rodolfo Mata, que acabou de sair no México (e que foi violentamente atacada por certos escribas míopes por não reproduzir de maneira automática os precários modelos canônicos de uma crítica local comprometida com grupos de poder na universidade e na mídia), Pindorama, 30 Poetas de Brasil, publicada há uns dez anos na revista argentina Tsé Tsé pelo poeta Reynaldo Jiménez ou Cetrería, Once Poetas Brasileños, que saiu em Cuba, em 2003, entre outros títulos.