sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

CADERNOS BESTIAIS (segundo volume)

 










HINO À POLÍCIA

 Toca o terror —
cabeças de arimãs

reverberam féretros /
assanha-se histérica

turba de behemoths /
damballas / beherits /

capacetes / visores /
escudos / tonfas /

vidro moído / ferro
esturricado / pneus

incendiados / entre
balas de borracha /

rasgando / rasgando /
vielas / entrevértebras

fantoches toscos /
fantoches-ferrabrás /

com fuzis automáticos
de mira telescópica

escarnecidos espectros
em carros blindados

para a contra-insurgência
nas avenidas furiosas

de meu próprio país.


















HINO AO HOMEM DE BEM

O Homem de Bem coleciona esculturas
em dentes de leão-
marinho :
formas de antílopes
flamingos
lêmures intermitentes //
plantas 
que não se parecem 
com nada 
onde pedras lapidam
a paródia 
de um rosto. //
Caligrafias pintadas 
em minúsculas 
folhas
por uma tribo imaginária //
fósseis esqueletos 
de caranguejos //
entre patuás
açafates 
e uma onça empalhada
da Costa do Marfim //
para olhos que não vêem para olhos
que não ouvem para olhos
como estrelas 
decrépitas
sem matizes inertes inanes. //
O Homem de Bem
participa de marchas fascistas
pela volta da ditadura 
militar // 
e oculta seu ódio
em espátulas de marfim.

2014













HINO AO PREDICANTE

Putinhas-de-cristo vestem roupas de couro dark
e argolas de prata
nos mamilos.
Fachos de luz
banham a nave
do templo.
Flores brancas,
vitrais arqueados.
Massa sonora
de fêmures
cantantes.
Piolho metafísico
esbraveja
palavras-morteiros:
colérico, invoca
sua hórrida deidade:
— El Shaddai flagelador de sodomitas;
— El Elyon violador de feministas;
— Mikadiskim degolador de macumbeiros.
Trompetes-clavículas
acompanham
sua voz-de-candelabro:
imagens de um tríptico
de Hyeronimus Bosch.
Após o teatro teratológico
(transmitido via satélite
em 24 canais, para 69 nações)
o dízimo é recolhido
em metal sonante – para a glória
do Inefável Tetragrama
(YHWH Tzevaot).
Compras na lojinha
do sacro tabernáculo:
Bolsinhas Bereshit.
Sapatos Menorá.
Perfume Havdalá.
Gargantilhas Shemá Israel Eloheinu.

 













 
HINO AO HUMORISTA

Funambulesco;
cospe-às-frinchas;

escorço ao revés —
negror de escárnio;

borra-de-tranca-rua;
resvala-nádegas;

refugo, rebotalho;
regurgita lúmpen

parvoíce intermitente
em voz de batráquio;

símile de bonifrate:
baboso, linguarudo;

engole uma, duas,
três, quatro, cinco,

seis moscas e mergulha
atoleimado no atoleiro.

2014

















HINO AO GARGALHANTE

Outro entredentes degusta

Andrei Vozniessiênski[1]

Bocarra degusta lagostim
suavemente temperado
com dentes-de-alho
dedos-de-moça
folhas de alecrim
em minimorangas térmicas
térmitas afoitas
para o ruidoso desjejum.
Maxilares devoram cada lasca
brancovermelha
do esquelético
monstro marinho:
degustam e gargalham
emplumados com luxuosíssimas
gravatas italianas;
degustam e gargalham
descerebrados
trepidantes
obesos magérrimos
manequins hipocondríacos
degustam e gargalham
entre as mais sérias considerações
sobre o mercado financeiro
e a balança cambial;
degustam e gargalham
trepidantes
entre goles de vinho branco
intercalados por arrotos;
degustam e gargalham
com imensos pés inchados
mergulhados nas mais terríveis
meias de seda preta
e sapatos de couro lustrosos;
degustam e gargalham
hinos de babuínos
hinos monotemáticos
de babuínos
em altissonantes
gargalhadas nasais
gargalhadas fecais
de monocromáticos
monomaníacos símios.

2015


(1) Tradução: Haroldo de Campos (in Poesia Russa Moderna)
 
  
HINO AO JUIZ

O excelentíssimo juiz
Petrus Pithecanthropus
recorda o vampiro de Murnau:
nariz-funil, pescoço mínimo,
calvo como senador romano.
Seu passo é lento, pesadíssimo,
algo entre caracol e paquiderme.
Move as mãos em medonhos
mudras, rilhando os dentes:
novo Amon-Rá, ressurecto
da esfinge-catacumba.
Hábil nas artes da oratória,
recrocita, luciferino, em língua
cinerária de asura brahmânico,
sibilinas sentenças. Untuoso
na elegantíssima toga escura,
proclama, plenipotenciário,
a condenação das almas ao érebo:
réprobos insolentes, espúrios
dissidentes, lêmures do escarro.
Quando o réu reza em sua grei,
tudo muda de figura: arquiva-se
o processo, e fim de conversa.
Aos amigos, tudo; aos demais,
aplicam-se os rigores da lei,
com ou sem culpa no cartório.
Após o torpe ofício iracundo,
pluriocioso, Petrus Pithecanthropus
escreve nobilíssimos sonetos,
com métrica e chaves-de-ouro
ditadas pela Musa: o Minotauro
converte-se em Orfeu. Quimérico,
sonha com o pináculo da glória:
uma cadeira na Academia de Letras,
onde mudará a toga por rejubilante
fardão, ornado com fios dourados
de sol: baboso beletrista encapelado.
Estuda poses cinematográficas
para fotos nos jornais, exultante
pavão real encastelado no umbigo.
Empossado na egrégia arcádia,
sofre a sua final metempsicose:
cresce-lhe vasta floresta de cornos,
rabo espesso sai-lhe das nádegas,
cascos recobrem as solas dos pés
e põe-se a pastar, entre seus confrades.

2015

 














HINO AO MÉDICO

Cara-de-batráquio em elegantíssimo paletó grená
olhos vítreos de licantropo lituano
Doutor Amphibia
exibe ao visitante
sua clínica geriátrica:
poltronas provençais
em lápis-lazúli
cortinas de cetim tabaco chamousse
e mobiliário colonial
em jacarandá vermelho
mesas e cadeiras torneadas
com esbranquiçados detalhes em prata
no mais fino estilo
manuelino.
Sobre a cômoda indiana
taças de darjeeling
pasteis de queijo temperado
e um cesto com revistas de viagens
para a sua incauta
clientela:
aposentados viúvas
pensionistas.
Após cada brevíssima
consulta, Doutor Amphibia
distribui pequenos envelopes
com drogas experimentais
às cobaias septuagenárias.
Secretária de cabeleira leonina
— após pintar as unhas dos delicados pés —
agenda a data do retorno
para o acompanhamento clínico.
Relatórios minuciosos são enviados
por modernos aparelhos de fax
aos laboratórios de renome internacional
para o desenvolvimento de novos produtos.

2015













HINO AO TROTE

 Para Gottfried Benn
 
Estudantes de medicina torturam jovem negra
excitados com hematomas
na pele inerme
hieróglifos marcados
a cutelo
farejam vermelho farejam
relincham
escorrendo escorrendo
ante pinças
cordas atadas nos pulsos focinheira
ataraxia nas pupilas
retalham arimãs retalham
mulher-entulho
estirada
despida de seus farrapos
liliputiana menina de quinze dezesseis
depauperada ossuda
desnuda
derrisão pela pele
escura escrava
derme-refugo para a sova
mãos-espátulas relampejam incisões
bebem medo babam
ódio
ela enrodilhada monstrenga
gentalha ratazana
para o aço
baço
homenzarrão bem-nascido destripa
não-nascida
fungo
refugo
lacraia.
 2015

Poema inspirado nas sessões de trote-tortura dos estudantes burgueses da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.



 










ANTILABIRINTO

éstos mis alarmados compañones.

César Vallejo

À desordem de pensamentos escuros —
figuras foscas, restos roídos
nos escaninhos
da memória.
Este é o meu braço esquerdo
que por sua conta
recusou ser treva.
Este é o meu braço direito
avesso a considerações
indelineável como um pesadelo.

Absurdidade, minha fêmea
entulhada em meu desterro.
Tudo são retalhos,
figuras em folhas-de-flandres
refratadas em meu próprio minério.
Morde-se, minha memória.
Nenhuma similitude
com o lameiro do cotidiano.
Estamos quites. Ensarilhados
em nosso nevoeiro.

Absurdidade, minha fêmea
reverbera em meus ossos:
estas quinas sem remate;
estas quinas de um antilabirinto
que sozinho percorro.
Esta é a minha clavícula;
esta é a carantonha com que insulto
as febres no espelho. Porque nada
faz sentido. Estamos quites.
Ensarilhados em nosso nevoeiro.

Absurdidade, minha fêmea
esta é a minha língua deformante,
meus jogos dissuasórios.
Porque nada faz sentido, nada.
Anjos pictóricos de estranhas asas
anunciam o próximo massacre:
corpos carbonizados numa aldeia
da Nigéria. Dois mil mortos.
Nenhuma repercussão na mídia.
São apenas negros: quem se importa?

2015

4 comentários:

  1. demais; imenso - mesmo que "restos roídos"; cinema difícil.

    já tinha lido no face, muito bom ler e reler aqui. teus antimídia e cadernos bestiais têm urgência.

    ps - acho que tem um erro de digitação: "estes quinas"... ou viajei?

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  2. Vou corrigir, grato, querida! :)

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  3. Demais!!! Tem que colocar em livro!! ;-)

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  4. Grato, Chico! O primeiro volume dos Cadernos bestiais sairá neste ano -- com os dez poemas antimídia -- e o segundo volume, no ano que vem, com os hinos.

    Abração!

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