1.1 A crise das vanguardas e a poesia da agoridade
A poesia vive em conflito com o tempo e o pensamento e manifesta essa tensão na
linguagem, construção estética que dialoga com a história, pessoal e coletiva,
ao mesmo tempo em que afirma sua própria identidade como artefato artístico.
Roman Jakobson, no livro Os problemas dos
estudos literários e lingüísticos, de 1928, já apontou essa dupla face do
texto literário: seu aspecto diacrônico, que se relaciona com o tempo e o
espaço, e o aspecto sincrônico, que diz respeito aos elementos formais da
escritura e sua relação com a tradição literária. Segundo o lingüista russo, “a
obra poética deve na realidade definir-se como uma mensagem verbal na qual a
função estética é a dominante”, embora também manifeste “estreita relação com a
filosofia, com uma moral social etc.” (JAKOBSON, 1990: XIX). A poesia
brasileira recente, e em especial aquela produzida na década de 1990, reflete
de maneira enfática essa tensão com o tempo, o pensamento e a tradição
criativa, e por esse motivo iniciaremos este ensaio com uma contextualização
histórica, sem cairmos na ilusão de um determinismo mecanicista. Nosso objetivo
é abordar as principais tendências do período (logo, é um estudo de poéticas, não de autores ou obras), mas
antes será útil fazermos uma pequena reflexão sobre a mudança de paradigmas
ocorrida a partir de 1989, que marcou o pensamento estético e cultural nas
últimas décadas, inaugurando o momento que Haroldo de Campos chamou de
“pós-utópico”. Com a queda do muro de Berlim e o posterior colapso da União
Soviética, ocorreu um esvaziamento da busca de políticas sociais alternativas,
o que levou Francis Fukuyama a declarar o “final da história”: a civilização
teria alcançado seu estágio último com a democracia liberal e a economia de
mercado globalizada, alimentada pela constante renovação tecnológica, como a
automação industrial e a informática, pela especialização da produção e
elevação das jornadas de trabalho. A concepção de “pós-história”, sem dúvida
controversa, por desconsiderar realidades nacionais desiguais, alimenta a
ideologia de um mundo unipolar, em que o Estado cede lugar ao capital e o
espaço público se confunde com o privado, tornando anacrônica a idéia de
utopia: não se trataria mais de mudar o mundo, mas de adaptar-se aos valores do
mercado, considerados eternos e universais. Nesse contexto cultural, o conceito
de vanguarda entrou em eclipse, já que o ideal de mudar a arte tem o seu
correlato no ideal de mudar o mundo; sem utopia, não há vanguarda (e lembremos
aqui o lema de André Breton: unir o “mudar a vida” de Rimbaud ao “mudar o
mundo” de Marx, equação em que está implícito o “mudar a arte” de Lautréamont).
A aceitação do projeto político hegemônico segue em linha paralela com o
conformismo de certas linhas estéticas atuais: enquanto a ciência e a tecnologia
buscam novos conhecimentos, técnicas e processos, necessários à própria
dinâmica industrial, alguns poetas de tendência neoclássica escrevem hoje
sonetos com rigorosa estrutura métrica e rímica, temas e metáforas tradicionais
da poesia lírica e um vocabulário arcaizante, por vezes com uma retórica
romântica; outros retomam o projeto modernista da década de 1930, com ênfase no
discurso sintático linear, na linguagem prosaica, no humor ingênuo e na
temática cotidiana, elementos já exauridos na década de 1970 pela “geração
mimeógrafo”, que reutilizou o poema-piada e o poema-crônica-de-jornal de Manuel
Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, sem acréscimo de informação estética
nova. Na prosa de ficção, alguns autores voltaram ao romance realista, cujo
modelo é Graciliano Ramos, ou ainda desenvolvem uma prosa midiática, que
parodia Charles Bukowski e a literatura beat,
em especial a sua aura de transgressão comportamental, traduzida como
pornografia (mas sem as preocupações políticas, ecológicas e espirituais de
autores como Allen Ginsberg, Michael MacClure e Gary Snyder). No caldeirão da
pós-modernidade, todas as formas do passado remoto ou recente tornaram-se
válidas, já que a categoria do novo
foi deslocada do pensamento artístico e a própria “noção de valor estético” foi
“desestabilizada”, conforme escreveu Heloísa Buarque de Hollanda no prefácio à
antologia Esses Poetas (HOLLANDA,
2001: 9). Segundo ela, “assistimos ao que poderia ser percebido como um
neoconformismo político-literário, uma inédita reverência ao establishment crítico” (idem, 16). Numa
era de acomodação estética e cultural, sem um projeto de futuro para a arte ou
para a sociedade, estaríamos condenados ao eterno retorno de linguagens
codificadas, sem nenhuma possibilidade de experimentação estética?
No ensaio Poesia: questão de futuro,
Eduardo Milán afirma que “A poesia latino-americana de hoje se debate numa
clara divisão: regressar de forma acrítica a um passado canônico ou continuar a
busca de novos meios de expressão” (MILÁN, 2002: 72). O retorno a um “passado
canônico”, segundo o poeta e crítico uruguaio, implica a “fuga de um presente
caótico” e seria uma “tentativa de buscar refúgio naqueles momentos históricos,
especialmente em sua aura, que auguravam uma tranqüilidade espiritual
dependente de um certo estado do mundo” (idem). A esse “estado do mundo”
corresponderiam formas tradicionais bem conhecidas na história literária, como
o soneto, a lira, o romance, cuja “carga crítica implícita” e “grau de
novidade” estariam “perdidos para sempre” (idem). O retorno a essas “formas
canônicas do passado”, prossegue o autor uruguaio, pela sua “perda de
atualidade”, supõe uma “a-formalidade” que só é possível “pelo estado atual do
mundo: perda da fé na história como motor de mudanças, derrocada das utopias,
tanto estéticas como históricas”. (idem). A conclusão do autor, porém, não é
pessimista: a busca do novo passaria por uma “revalorização” (não retorno) do
passado, vê-lo “com os olhos de hoje”, não para repeti-lo, mas para
aprender com ele e se pensar em novas estratégias de criação. A tese defendida
por Milán é similar à apresentada por Haroldo de Campos, que via na
“apropriação crítica” de uma “pluralidade de passados” o ponto de partida para
uma “pluralização de poéticas possíveis” (CAMPOS, 1997: 268-69) Renunciando ao
“projeto totalizador da vanguarda”, Haroldo de Campos propõe uma “poesia de
pós-vanguarda” ou da “presentidade”, que estaria “em dialética permanente com a
tradição” (idem). Essa poesia do agora não exclui a idéia de invenção, “que
continua sempre vigente”, conforme declarou em sua última entrevista, publicada
na revista Et Cetera. “O poema
pós-utópico nasce pontualmente nessa conjuntura dialetizada, onde são muitas as
possibilidades combinatórias do passado de cultura com a agoridade, a
presentidade, a imaginação criativa, a invenção”. (idem) O diálogo com o
“passado de cultura”, segundo Haroldo de Campos, deveria ser seletivo,
recuperando elementos ainda estranhos ou pouco assimilados ao nosso repertório
poético, e portanto com um grau ainda presente de novidade e surpresa (podemos
recordar aqui a recuperação da forma do labirinto poético, realizada por
Frederico Barbosa, ou ainda a recriação do oriki
iorubá por Antonio Risério e Ricardo Aleixo, no campo da etnopoesia).
Haroldo
de Campos aponta também a importância dos meios eletrônicos, que “podem trazer
um novo e fecundo instrumental para a criação (como já o estão fazendo, veja o
caso paradigmal de Augusto de Campos e as personalíssimas intervenções de
Arnaldo Antunes)” (idem). Heloísa Buarque de Hollanda aponta que, mesmo dentro
de um cenário literário em boa parte conservador, “a poesia articula-se em
várias realizações e performances,
com as artes plásticas, com a fotografia, com a música, com o trabalho
corporal” (HOLLANDA, 2001: 14), citando inclusive o “poema holográfico”, “o
poema clip”, a “vídeo-poesia tridimensional” e os “lançamentos programados de
CDs” (idem). A poesia mais inventiva realizada hoje não está apenas nos livros,
mas também nos meios eletrônicos, inclusive em revistas digitais como Artéria, Errática, Popbox, e nas
obras intersemióticas de autores como Lenora de Barros, João Bandeira, Elson
Fróes, Lúcio Agra e André Vallias, que investigam as possibilidades
combinatórias entre escrita, som, imagem e movimento. Ao mesmo tempo em que se
desenvolve uma poesia digital, surgem tendências de renovação do texto poético,
como o neobarroco, o minimalismo, o formalismo informal e a etnopoesia, como
veremos nos tópicos seguintes.
1.2 A poética da “pérola irregular”
A poesia da Geração 90 tem como marcos fundadores os livros Rarefato (1990) e Nada feito nada (1993), de Frederico Barbosa; Collapsus linguae (1991) e As
banhistas (1993), de Carlito Azevedo;
Saxífraga (1993), de Claudia
Roquette-Pinto; Ar (1991) e Corpografia (1992), de Josely Vianna
Baptista. Todos esses livros, de elevado grau de elaboração de linguagem,
registram estilos e obsessões pessoais bem definidos; no entanto, é possível
identificarmos algumas similaridades formais, como o uso da metáfora, a riqueza
imagética, as referências à pintura, à fotografia e ao cinema, o vocabulário
erudito e a sintaxe fraturada, que não elimina o discurso mas o redimensiona de
maneira inventiva. São poemas que se afastam da espacialização gráfica e da
fragmentação léxica do concretismo e também da linguagem coloquial e prosaica
da “geração mimeógrafo”, aproximando-se de uma construção mais hermética ou
barroquizante que exige do leitor uma cumplicidade de repertório e uma não
menos árdua estratégia de leitura. O verso não é abolido, mas reconstruído para
além da camisa-de-força da métrica e das facilidades oferecidas pelo verso
livre, abrindo um campo de experimentação para a poesia enquanto elaboração
verbal. A presença do barroco, nesses poetas, é mais explícita na fase inicial
de Frederico Barbosa (leitor de A
experiência do prodígio, de Ana Hatherly e autor de um Labyrintho difficultoso) e em Josely Vianna Baptista,
tradutora de poetas latino-americanos neobarrocos como Lezama Lima, Severo
Sarduy e Nestor Perlongher; já em Carlito Azevedo e Claudia Roquette-Pinto, essa
presença é menos visível como referência direta, mas é verificável em seus
procedimentos estilísticos (que incorporam ainda recursos da poesia francesa e
norte-americana). Com certeza, não podemos afirmar que estes poetas formam uma
tendência no sentido de uma articulação voluntária de autores em torno de um
projeto específico, ao contrário do que aconteceu na poesia de língua
espanhola, em que o neobarroco é um movimento assumido por poetas como José
Kozer e Roberto Echavarren, autores de ensaios e antologias em que essa
proposta é apresentada em termos teóricos e conceituais. No caso brasileiro,
podemos falar em sincronicidade e coincidência de leituras e pesquisas
estéticas, sendo possível localizar uma linhagem barroquizante em poetas
anteriores, como Haroldo de Campos (Galáxias),
Paulo Leminski (Catatau), Wilson
Bueno (Mar Paraguayo) e Horácio Costa
(Satori). Entre os elementos que
permitem aproximar os autores brasileiros de seus pares latino-americanos
podemos citar a quebra de fronteiras entre os gêneros literários e a criação de
textos híbridos entre prosa e poesia (como ocorre nos textos de Josely Vianna
Baptista, por exemplo, em que a espacialização entre as letras e o alinhamento
“blocado” expande as linhas, simulando o andamento da prosa); a mescla de
referências cultas e populares, em especial da cultura de massa (como os poemas
de Frederico Barbosa que dialogam com o cinema e o jazz); e a colagem de
símbolos e referências extraídos de fontes ocidentais e orientais, do presente
ou de um passado remoto, conforme uma visão mais abrangente e sincrética da
cultura (o que distingue a escrita barroquista da concepção “nacional-popular”
dos anos 1960-70 que inspirou a poesia de participação política). A esse
respeito, escreveu o crítico Manuel da Costa Pinto, no livro Literatura brasileira hoje: “O
sincretismo americano de línguas, raças e civilizações foi elevado pelo
neobarroco à categoria de mito fundador, identidade trans-histórica à qual
podiam ser anexadas outras culturas”. (PINTO, 2004: 55) Na literatura
brasileira, porém, segundo o mesmo crítico, “o neobarroco ficou mais
circunscrito à dimensão de uma subjetividade que sobrevive ao naufrágio dos discursos
nacionais, recriando seu mundo através de uma mitologia pessoal que se apropria
de diferentes tradições literárias” (idem). Como exemplo dessa poética
sincrética que explora ao máximo os recursos lúdicos da linguagem, reunindo
efeitos sonoros e visuais para estimular a experiência sensorial e intelectiva
do leitor, citamos a terceira parte do poema Rarefato, de Frederico Barbosa:
Dominado pela pedra, insone,
descolorido, o crime principia
nas altas horas de noite vazia
ganha corpo no decorrer do dia.
Ganha corpo no decorrer do dia,
dominado pela pedra insone
dor de náusea delicada e infame,
das altas horas da noite vazia.
descolorido, o crime principia
nas altas horas de noite vazia
ganha corpo no decorrer do dia.
Ganha corpo no decorrer do dia,
dominado pela pedra insone
dor de náusea delicada e infame,
das altas horas da noite vazia.
Dor de náusea delicada, infame,
nas altas horas na noite vazia
ganha corpo no decorrer, no dia
dominada pela pedra, insone.
nas altas horas na noite vazia
ganha corpo no decorrer, no dia
dominada pela pedra, insone.
Ganha corpo no decorrer do dia,
dor de naúsea delicada e infame
descolorido, o crime principia
alia-se ao tédio impune e some.
dor de naúsea delicada e infame
descolorido, o crime principia
alia-se ao tédio impune e some.
Esta
seção do poema é formada por quatro quartetos, com versos de métrica próxima ao
decassílabo, que se repetem nas estrofes em diferentes posições, com poucas
variações e acréscimos, permitindo diferentes leituras e possibilidades
rítmicas, constituindo um labirinto de
versos, técnica combinatória e permutatória praticada no maneirismo
português e que ganhou impulso na época barroca. Já no Labyrintho difficultoso,
do livro Nada feito nada, Frederico
Barbosa faz um labirinto de palavras,
em que a distribuição espacial e geométrica das palavras na página permite
leituras na horizontal, na vertical, na diagonal e em seqüências livres,
multiplicando a geração de significados. É preciso ressaltar que essa tendência
barroquizante não acompanhou toda a trajetória dos poetas aqui citados;
Frederico Barbosa, por exemplo, inaugurou nova fase com os livros Contracorrente (2000) e
Louco no oco sem beiras (2001), em que concilia o artesanato da linguagem
com uma temática mais urbana, incorporando o uso da gíria, do palavrão e do
discurso coloquial livre; Carlito Azevedo renunciou à experimentação estética,
que obteve resultados mais radicais no livro As banhistas, assumindo outro projeto, que retoma a tradição
modernista de Bandeira e Drummond e a poesia marginal da década de 1970;
Claudia Roquette-Pinto buscou uma dicção mais lírica, intimista e discursiva em
livros como Corola (2001) e Margem de manobra (2005), que incluem também poemas sobre a
violência urbana no Rio de Janeiro e conflitos internacionais como os de
Sarajevo. Josely Vianna Baptista, por sua vez, manteve a dicção barroquizante
em Os poros floridos (2002), mas com
outra arquitetura poética, que abdica da visualidade e adensa o discurso com um
trabalho semântico que explora as possibilidades sensoriais da palavra, com
ênfase na relação entre a escritura e o corpo, recordando a metáfora de Sarduy
da poesia como tatuagem. A estética barroquizante, talvez a mais inventiva da
poesia brasileira contemporânea, teve continuidade criativa na obra de
autores mais jovens, como a paulista Adriana Zapparoli e o cearense Eduardo
Jorge, que estrearam em livro na presente década.
1.3 A poética da arquitetura concentrada
A construção poética concisa, fragmentária, que condensa os recursos da
linguagem e se choca com violência contra a sintaxe discursiva e a própria
noção de verso define a tendência minimalista, que teve um momento de expansão
na poesia brasileira na segunda metade da década de 1990, a partir da
publicação do livro Ossos de borboleta (1996), de Régis Bonvicino,
que também divulgou entre nós a poesia norte-americana de vanguarda, e em
especial a obra de Robert Creeley, expoente do Black Mountain College, e
dos autores ligados à Language Poetry
da década de 1970, como Michael Palmer e Charles Bernstein. O minimalismo
defendido por esse grupo, ao qual se ligaram inicialmente poetas jovens como
Kleber Mantovani (Sombras em relevo,
1998) e Tarso de Melo (A lapso,
1999), entre outros, pratica procedimentos facilmente identificáveis que, pela
excessiva repetição, logo se tornaram fórmulas fixas: o uso exclusivo da caixa
baixa, o espaço duplo, os verbos no infinitivo, a descrição elíptica de cenas
urbanas e a incorporação no vocabulário de termos como algum, ninguém, esse, talvez, entre, como, para reforçar uma imprecisão do
sentido — recurso que, como aponta Marjorie Perloff no texto de “orelha” a Ossos de Borboleta, advém da leitura de “mestres norte-americanos como
William Carlos Williams, Robert Creeley e George Oppen” (BONVICINO, 1996). O
principal recurso estilístico utilizado por essa tendência é a metonímia,
aliada à elipse, embora apareçam também metáforas de sabor surrealizante, que
derivam dos tender buttons de
Gertrude Stein. A esse respeito, Manuel da Costa Pinto fala em “justaposição de
frases nominais, refratárias às correlações lógicas”, e ainda de uma “língua
desconexa” (PINTO, 2006: 86-87). A reverberação das técnicas mais evidentes da Language Poetry, que não pode ser
reduzida a esses recursos, acabou estabelecendo um padrão que não causa mais
surpresas. Vale a pena ressaltar que a prática da concentração verbal, da fragmentação
e da síntese já estava presente na “poesia pau-brasil” de Oswald de Andrade,
que, no dizer de Paulo Prado, oferecia, “em comprimidos, minutos de poesia” (ANDRADE,
1978: 70). A experiência poética oswaldiana, que deriva das “palavras em
liberdade” do futurismo italiano, das técnicas de montagem do cinema e do
diálogo com as artes plásticas (em especial o cubismo), foi o ponto de partida
da Poesia Concreta, na década de 1950, que operou uma síntese radical das
vanguardas históricas, levando à desarticulação da sintaxe e da palavra, à
espacialização e reconfiguração visual do poema. A influência concretista é
visível em diferentes poetas que, nas últimas décadas, praticaram uma poesia
concisa, substantiva, focada na materialidade da palavra poética, como Carlos
Ávila, Duda Machado, Paulo Leminski e Júlio Castañon Guimarães, e está presente
em boa parte da produção poética mais recente. Um poeta minimalista da Geração
90 que merece atenção pela originalidade e voz pessoal é Ronald Polito, autor
de livros como Solo (1996) e Vaga (1997), entre outros títulos. A
angústia do deslocamento, o mal-estar no mundo e o desencontro de sentido entre
a linguagem e as coisas são algumas das obsessões do autor; ele cria uma tensão
entre o subjetivo e o objetivo numa escrita clara e de contornos mínimos, que
se contenta com a brevidade de um haicai para resumir a paisagem existencial.
Assim, por exemplo, no poema Muda,
publicado no livro Vaga:
silêncio
sem fim
um
grito em um estojo
— para
não esquecer —
entre
suspiros afora
rumores
de golpes
—
ruídos
Este
poema é construído a partir de oposições entre silêncio e grito, memória e
esquecimento, ausência e presença, com economia de metáforas e imagens; o
aspecto temático é sugerido, de modo impreciso, por termos como rumores, suspiros, ruídos. Numa
composição de apenas seis linhas (sugerindo a justaposição de dois haicais), o
autor conseguiu criar uma atmosfera de tensão (sintetizada na linha “um grito
em um estojo”) sem usar a voz em primeira pessoa e sem delimitar ações
externas; é um poema altamente sugestivo, que faz pensar na concentração da
poesia japonesa e na pintura de traços mínimos do sumi-ê. Outros poetas minimalistas que se destacam pela
originalidade, entre os que publicaram o primeiro livro após 2000, são Virna
Teixeira (Visita, 2001; Distância, 2005), Danilo Bueno (Fotografias, 2002; Crivo, 2004) e André Dick (Grafias,
2002; Papéis de parede, 2004).
1.4 A poética do formalismo informal
A influência do cinema, da música popular, da filosofia oriental, da mitologia beat e das histórias em quadrinhos é
visível em autores como Ademir Assunção (LSD
Nô, 1994; Cinemitologias, 1998; Zona branca, 2001), Maurício Arruda
Mendonça (Eu caminhava assim tão distraído, 1997), Ricardo Corona (Cinemaginário, 1999; Tortografia, 2003; Corpo sutil, 2005) e Rodrigo Garcia Lopes (Solarium, 1994; Visibilia,
1997; Polivox, 2001; Nômada, 2004). São poetas que mesclam
referências cultas às linguagens da comunicação de massa, explorando também o
imaginário e as formas estéticas de culturas não-ocidentais, como os mitos
indígenas e a poesia chinesa e japonesa. Eles criaram revistas literárias como Medusa, Coyote, Oroboro e
realizaram shows e performances artísticas, levando a
poesia para fora de seu ambiente exclusivamente literário. Ademir Assunção
organizou o ciclo de música e poesia Outros
Bárbaros, no Itaú Cultural, e lançou o CD Rebelião na Zona
Fantasma, onde faz um interessante cruzamento de linguagens com o blues, o rock e o poema falado; Ricardo Corona gravou os CDs Ladrão de fogo e Sonorizador, onde dialoga com a música contemporânea de vanguarda,
e Rodrigo Garcia Lopes lançou o CD Polivox,
explorando os recursos da poesia vocalizada com os ritmos da música popular
brasileira. A criação de Ricardo Corona abrange também o campo da poesia
visual, em que conta com a parceria da artista plástica Eliana Borges (em Tortografia). Apesar do interesse de
todas essas formas de experimentação com o som, a imagem e a expressão
corporal, vamos nos ater, neste tópico, à produção textual dos autores. No
livro Cinemitologias, composto de
pequenos poemas em prosa que dialogam com desenhos indígenas, Ademir Assunção
faz um diário de sonhos, construídos com recursos da linguagem cinematográfica,
como nestas passagens:
13.05
É como se um pássaro pousasse na pálpebra
do Dragão Adormecido. É como se o Dragão Adormecido sonhasse um planeta
habitado por flores de oxigênio. É como se as flores de oxigênio roçassem a têmpora
de um samurai enlouquecido. É como se o samurai enlouquecido só existisse no
sonho de um poeta que sonha com um dragão sonhando. É como se nada disso
existisse. É como se fosse pintura de Matisse. É como se fosse cena de um filme
de Kurosawa. Sonhos.
18.11
Cacos de vidro rasgando a superfície da
água. Um peixe-miragem mergulha no espelho, crispa as escamas em seu próprio
reflexo, engole-se a si mesmo, desaparece no lago profundo de seu avesso.
No
prefácio a Cinemitologias, Ademir
Assunção diz que buscava, “nesta pequena aventura literária”, obter “um fluxo
vertiginoso de imagens, como os processos oníricos, reciclados e transformados
em linguagem escrita” (ASSUNÇÃO, 1998: 10). Citando Glauber Rocha, que
“comparava a estrutura de montagem da linguagem cinematográfica com a estrutura
dos sonhos” (idem), Ademir procurou não apenas fazer “referências explícitas a
sonhos e filmes”, mas “incorporar elementos implícitos do cinema em suas
próprias estruturas — cortes, fusões, seqüências, closes, flashbacks,
silêncios, ruídos (idem). O diálogo de Ademir Assunção com o cinema, iniciado
em Cinemitologias, fica mais evidente
no livro seguinte Zona branca, onde
encontramos, no poema O Sacrifício, versos como estes: “doce aroma de
tâmaras / apodrecidas / : borboletas de vidro / asas-navalha / no ar pesado /
da câmara mortuária / onde volto / para morrer mais um pouco” (ASSUNÇÃO, 2001:
14). Aqui, a elipse funciona como um corte de câmera, e a aglutinação de
substantivos, como montagem. A visualidade é reforçada pela espacialização das
palavras na página, que cria uma estrutura para o movimento rítmico e fanopaico
do poema, e ainda por closes como
estes: “unicórnio de chifre amputado” (idem), “leões famintos no zoológico
urbano / mordem as próprias orelhas” (idem, 41), “strippers que após a roupa / arrancam a própria pele” (idem, 48). Ricardo
Corona também realizou um interessante cruzamento de linguagens no livro Cinemaginário, onde encontramos poemas
como A lua finje mas já reflete sóis: “lascas
de zinco refletindo / um sopro quente passa / do solo sobe um hálito quente /
um vento mantra passa / o rubro horizonte roça a pele da pedra / a lua finje
mas já reflete sóis”. Este poema é construído com versos roubados de outras
peças do livro, numa operação de montagem e colagem, que dialoga com as
técnicas do cinema e também das artes plásticas (lembremos aqui de Kurt
Schwitters, aplicando bilhetes de metrô e outros impressos da sociedade
industrial em suas telas). Em Rodrigo Garcia Lopes, vamos encontrar
procedimentos da linguagem cinematográfica em diversos momentos de sua obra,
como na série Seis movimentos de câmara,
do livro Nômada. Este poeta, assim
como Maurício Arruda Mendonça, assimilou influências de Paulo Leminski e da
Poesia Concreta, mas também de autores norte-americanos como Walt Whitman,
Gertrude Stein, John Ashbery, William Burroughs e da poesia chinesa e japonesa.
O resultado desse sincretismo é uma poesia de dicção coloquial, melódica e
fluente, com o uso eventual de rimas, aliterações e do verso longo, próximo à
prosa, mas sem desprezar o uso espacial das linhas na página. A imagem é um
elemento importante para a articulação do seu pensamento, com o uso de closes e
cortes metonímicos para a descrição de cenários da natureza, como neste
fragmento de Stanzas in meditation,
do livro Visibilia: “Folhas negras
caem, rufam em profusão. O
vento encrespa a / Água, Tempo enruga / faces. Um vale revela / cannyons, grutas” (LOPES, 1997: 31).
1.5 A poética da miscigenação transistórica
A recriação de formas poéticas de culturas antigas e
não-ocidentais, como o oriki
africano, o sijô coreano ou os cantos
xamânicos de tribos esquimós corresponde a uma tendência conhecida como
etnopoesia, cujo principal representante é o poeta e ensaísta norte-americano Jerome
Rothenberg. Conforme diz Pedro Cesarino, a etnopoesia não é uma “estética dos
excluídos” (ROTHENBERG: 2006: 7), ou seja, uma valorização da poesia praticada
por autores de determinados grupos sociais marginalizados historicamente, como
mulheres, negros ou gays, ação
afirmativa de caráter mais político ou sociológico do que estético. Também não
se trata de “exotização” (idem), nem de um exercício de arqueologia literária
que trata os textos de povos antigos como linguagem arcaica ou morta. Estamos
diante de uma noção mais radical da literatura, que olha para o passado sem
perder de vista o momento presente e os desafios do processo de criação.
Rothenberg afirma que a etnopoesia nasce da suspeita de que “certas formas de
poesia, assim como certas formas de arte” que “permeavam as sociedades
tradicionais”, geralmente com um sentido religioso, “não apenas se
assemelhavam, mas há muito já haviam realizado
o que os poetas experimentais e artistas estavam tentando fazer” (idem, 6).
Como exemplo dessa afirmação, o autor norte-americano cita os rituais indígenas
em que “música & dança & mito & pintura” faziam parte da obra
artística coletiva, algo similar ao que entendemos como happening. Nessas manifestações poéticas ancestrais, em que sonho,
mito e arquétipos coletivos estão presentes, dando uma dimensão sagrada ao fato
artístico, o próprio corpo faz parte da encenação poética, pelo uso de
determinadas vestes, tatuagens e adornos, pela prática da dança individual ou
coletiva, por práticas sexuais. Rothenberg percebeu que a poesia ancestral não
é apenas uma construção verbal, mas
multimídia. Por isso mesmo, dialogar com tais formas de manifestação artística
por meio da tradução intersemiótica ou da criação de novos textos poéticos não
significa buscar uma suposta “pureza” ou “autenticidade” de culturas arcaicas,
mas transgredi-las para trazê-las ao presente como formas vivas, pulsantes, e
não convertê-las em peças de museu. Enquanto nos Estados Unidos o
tema da etnopoesia tem sido pesquisado desde a década de 1950, despertando o
interesse de autores da geração beat
como Gary Snyder, este é um fenômeno literário “quase amortecido na
poesia brasileira contemporânea”, segundo Pedro Cesarino (idem, 8). Sem dúvida,
podemos recordar os diálogos criativos com as culturas indígena e africana
realizados ao longo de nossa história literária por Gonçalves Dias (I Juca-Pirama), Sousândrade (O guesa errante), Mário de Andrade (Macunaíma), Raul Bopp (Cobra Norato) e outros poetas, mas
estudos sérios de etnopoesia no Brasil são ainda raros; podemos citar o livro Oriki orixá, de Antonio Risério, conjunto de ensaios sobre a poesia
ritual iorubá acompanhado de recriações inventivas dos textos africanos; a
tradução do Popol Vuh por Sérgio
Medeiros e Gordon Brotherston; a antologia de poesia guarani chamada Kosmofonia mbya guarani, com traduções
de Guillermo Sequera e Douglas Diegues; os Cadernos
de Ameríndia, com traduções de Josely Vianna Baptista; e sobretudo a poesia
de Ricardo Aleixo, que buscou inspiração no oriki num livro notável
chamado A Roda do Mundo (1996), de onde citamos o poema Mamãe grande, dedicado à Iemanjá, em que
o andamento anafórico e reiterativo iconiza o movimento das ondas:
todas
as
águas do mundo são
Dela,
fluem
refluem
nos ritmos
Dela,
tudo que vem,
que
revém, todas
as
águas
do
mundo são
Dela,
fluem
refluem
nos
ritmos Dela.
tudo
que
vem,
que revém,
todas
as águas
do
mundo
são
Dela, fluem
refluem
nos
ritmos Dela, tudo
que vem
que
revém.
Essa
forma de composição poética, que pertence à tradição oral africana, conforme
diz o poeta e antropólogo Antonio Risério no livro Oriki orixá, era utilizada para louvar os deuses, reis e
personalidades ilustres (a palavra ori
quer dizer “cabeça”, e ki significa
“canto”). O oriki, poema cantado e
dançado em cerimônias sociais e religiosas, não tem “medida métrica fixa,
armação estrófica ou número de ‘versos’ previamente estabelecidos” (RISÉRIO,
1996: 42). Não se trata de uma “forma fixa”, mas de uma “forma orgânica”, que
“opera pela justaposição de blocos verbais” e “pelo princípio da montagem”,
excluindo a linearidade de tipo aristotélico; a estrutura do texto é
paratática, com as proposições se sucedendo “numa colagem de unidades, sem que
se providenciem nexos discursivos para uni-las num encadeamento lógico e/ou
cronológico” (idem, 44). O próprio Risério realizou interessantes recriações de
orikis, traduzidos diretamente do
iorubá, respeitando as aliterações, assonâncias e outros jogos fônicos dos
poemas, como neste Oriki de Xangô:
“Xangô oluaxó fera faiscante olho de orobô / Bochecha de obi. / Fogo pela boca,
dono de Kossô, / Orixá que assusta.” (RISÉRIO, 1996: 133). A produção poética
de Ricardo Aleixo e de Antônio Risério, diga-se de passagem, não se resume ao oriki; Aleixo é autor de poemas visuais
e sonoros, realizou eventos multimídia e performances
com a Sociedade Lira Eletrônica Black Maria, além de publicar livros de versos
notáveis como Festim (1992), Trívio (2001) e Máquina zero (2004). Risério, por sua vez, além da obra ensaística
(Textos e tribos, Ensaio sobre o texto poético em
contexto digital, entre outros títulos), publicou dois livros de poemas: Fetiche (1996) e Brasibraseiro (2004, em parceria com Frederico Barbosa). Todas as
experiências inventivas que citamos neste ensaio retomam e desenvolvem
processos e técnicas das vanguardas, mas sem um projeto único e totalizador,
sem um caráter militante, com sua ortodoxia e guerra declarada às instituições;
são “revoluções solitárias”, para citarmos Octavio Paz, inseridas dentro do
campo de possibilidades do presente, mas sem renunciar à pesquisa estética e à
busca da inovação formal, sem o que teríamos de declarar, à maneira de Francis
Fukuyama, o “fim da poesia” como arte.
Referências bibliográficas:
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mundo (com Edimilson de Almeida Pereira). Belo Horizonte: Mazza edições,
1996.
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PINTO, Manuel da Costa. Literatura
brasileira hoje. São Paulo: Publifolha, 2004.
PINTO, Manuel da Costa. Antologia
comentada da poesia brasileira do século 21. São Paulo: Publifolha, 2006.
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Ed. do autor, 1997.
RISÉRIO, Antonio. Oriki
orixá. São Paulo: Perspectiva, 1996.
ROTHENBERG, Jerome. Etnopoesia
no milênio. Rio de Janeiro: Azougue editorial, 2006.
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