domingo, 23 de março de 2014

A LÍRICA IMPREVISTA DE ALICE RUIZ



Alice Ruiz pertence a uma geração de poetas brasileiros que conviveu com a tradição literária do modernismo, a contracultura, o concretismo e a tropicália, num momento histórico de crise do regime autoritário e de retomada das lutas políticas e sociais que desaguariam na campanha por eleições diretas já, em 1984, marco da reconquista das liberdades democráticas, após duas décadas de arbítrio. O diálogo com a música popular, a linguagem publicitária, a história em quadrinhos, o zen-budismo e os temas do feminismo e da diversidade sexual está presente em diversas obras publicadas por poetas dessa geração, como Polonaises, de Leminski, Zil, de Duda Machado, Memórias de um pueteiro, de Glauco Mattoso e os poemas de Antonio Risério, publicados esparsamente em revistas independentes como Código, Raposa e Muda (a poesia de Risério seria reunida em livro apenas na década de 1990, com Fetiche e Brasibraseiro, este último escrito em parceria com Frederico Barbosa). O livro de estreia de Alice Ruiz, Navalhanaliga, publicado em 1980, está inserido nesse caldeirão cultural, mas já revela uma voz bastante singular, pelo alto impacto de suas imagens poéticas e referências biográficas e da realidade social da época. O próprio título do livro já indica uma operação de violência contra o lirismo e a sentimentalidade atribuídos por muito tempo à poesia de autoria feminina: Alice Ruiz reivindica, como símbolo de sua poética, nada menos que uma navalha, arma branca usada por garotas de programa para sua segurança pessoal. A subversão poética da autora, se recusa a ingenuidade romântica, investe, ao mesmo tempo, em composições de grande intensidade emocional, como a peça de abertura do volume: “não era ainda pessoa / e já sonhava / não é mais pessoa / e ainda sonha”, poema composto em homenagem ao filho Miguel Ângelo Leminski, falecido com apenas nove anos de idade. Esta peça, assim como outras de Navalhanaliga, utiliza recursos visuais, como a inserção de desenhos, fotos e símbolos de notação musical, com evidente ressonância da poesia concreta, mas sem dependência epigônica: a estratégia criativa de Alice Ruiz está mais próxima de um certo brutalismo que nos faz pensar nas Antologias mamalucas de Sebastião Nunes e nos poemas visuais do Jornal Dobrábil de Glauco Mattoso.  Em outra composição, em que as palavras, dispostas verticalmente, são escritas em branco sobre fundo negro (“elo / entre / olho / e / olho // espelho / rebelde / reflete / o / estranho”), podemos pensar nos labirintos visuais do barroco português e também na escrita ideográfica japonesa. Navalhanaliga, aliás, apresenta diversos haicais, gênero poético que a autora vem praticando, com extrema originalidade, em todos os seus livros publicados, especialmente Haitropicai (I985), escrito em parceria com Paulo Leminski, Desorientais (1996), Yuuca (2004) e o recente Jardim de haijin (2010). O haicai de Alice Ruiz descende da dicção intimista e bem-humorada de Kobayashi Issa (1763-1827), mas não se limita aos temas tradicionais, relacionados às estações da natureza, investindo, também, na denúncia política: “nesse país sem greve / só o relógio / faz o que deve” e no imaginário e vocabulário da cultura popular brasileira (“presente de vênus / primeira estrela que vejo / satisfaça o meu desejo”). Além de notável haicaísta, aliás, Alice Ruiz realizou traduções de poetas japonesas como Chiyo-Ni e Chine-Jo, reunidas no volume Dez haicais, impresso em Santa Catarina pela editora Noa Noa de Cleber Teixeira. Um belo poema que testemunha o seu amor pela forma poética nipônica é esta composição: “Francisco conseguia / entender / o que a ave dizia / Bashô enxergava / a lágrima / no olho do peixe”.

UMA ERÓTICA DO INUSITADO

Paixão xama paixão, o segundo livro de Alice Ruiz, publicado em 1983, incursiona em releituras da lírica camoniana e dos mitos bíblicos, de modo paródico e irreverente, e ainda no poema-piada, recorrente na produção dos autores da chamada Poesia Marginal, em versos como estes: “a gente é só amigo / e de repente / eu bem podia / ser essa mosca / perto do teu umbigo”, em que a coloquialidade e informalidade somam-se a uma imagética própria dos mestres japoneses. Em outra composição, que se avizinha do non sense, lemos: “o formigueiro que você olhava / voltou / ao seu lugar // você volta / a ver as formigas / no meu olhar”. A paixão, na lírica de Alice Ruiz, está sempre associada ao imprevisto, ao excêntrico, ao inusitado, expressando-se em hipérboles (“noite / cadelas no cio / disputam a primavera”), paradoxos (“a folha faz barulho / tenha ou não tenha letras // já o silêncio faz ver / todas as coisas pretas”) e jogos de palavras (“sem saudade de você / sem saudade de mim / o passado passou enfim”), trabalhados com aparente leveza e simplicidade. Esta dicção insubmissa e inventiva atinge plena maturidade no livro Pelos pelos (1984), cujo título evidencia, no trocadilho entre pelos (substantivo) e pelos (preposição), a conjunção entre o amor e a liberdade poética. Os poemas desse livro, de extrema fluência e musicalidade (“você fica / muito louco / muito branco / muito magro // o pó da estrada / que se afasta / é muito amargo // me sobra pouco / mas esse amar / eu sempre trago”), já denunciam a letrista de música popular, que compôs canções em parceria com músicos como Arnaldo Antunes, Alzira Espíndola e Itamar Assumpção (seu livro Poesia pra tocar no rádio, de 1999, reúne as letras e poemas musicados de todas as suas parcerias). Notamos nesta obra, apesar de sua erótica implícita, uma maior incidência de poemas logopaicos, aspecto menos comentado da poesia de Alice Ruiz: “minha voz / não chega aos seus ouvidos // meu silêncio / não toca teus sentidos // sinto muito / mas isso é tudo que sinto”. Claro: a reflexão amorosa ou existencial sempre é expressa com indisfarçada ironia e coloquialidade, com o uso freqüente da rima, que não é acessória, mas um elemento musical que reforça o sentido do texto: “quero fazer um verso / com todos os elementos / meus encantos / meus lamentos / que atravesse / ares e mares / e te alcance / e te arranque / de todos os pensamentos”. A poesia completa de Alice Ruiz (além dos títulos referidos, devemos acrescentar o volume Vice versos, de 1988) foi reunida no volume Dois em um (2008), publicado pela editora Iluminuras, iniciativa que não pode ser pouco elogiada, por colocar à disposição dos leitores de agora uma obra coerente e inventiva, de uma autora que está entre as vozes mais originais da poesia brasileira contemporânea.    

(Artigo publicado na edição de março da revista CULT, na coluna RETRATO DO ARTISTA.)


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