Alice Ruiz pertence a uma
geração de poetas brasileiros que conviveu com a tradição literária do
modernismo, a contracultura, o concretismo e a tropicália, num momento
histórico de crise do regime autoritário e de retomada das lutas políticas e
sociais que desaguariam na campanha por eleições diretas já, em 1984, marco da reconquista
das liberdades democráticas, após duas décadas de arbítrio. O diálogo com a
música popular, a linguagem publicitária, a história em quadrinhos, o
zen-budismo e os temas do feminismo e da diversidade sexual está presente em diversas
obras publicadas por poetas dessa geração, como Polonaises, de Leminski, Zil,
de Duda Machado, Memórias de um pueteiro,
de Glauco Mattoso e os poemas de Antonio Risério, publicados esparsamente em
revistas independentes como Código,
Raposa e Muda (a poesia de
Risério seria reunida em livro apenas na década de 1990, com Fetiche e Brasibraseiro,
este último escrito em parceria com Frederico Barbosa). O livro de estreia de
Alice Ruiz, Navalhanaliga, publicado em 1980, está inserido nesse
caldeirão cultural, mas já revela uma voz bastante singular, pelo alto impacto
de suas imagens poéticas e referências biográficas e da realidade social da
época. O próprio título do livro já indica uma operação de violência contra o
lirismo e a sentimentalidade atribuídos por muito tempo à poesia de autoria
feminina: Alice Ruiz reivindica, como símbolo de sua poética, nada menos que uma
navalha, arma branca usada por garotas de programa para sua segurança pessoal.
A subversão poética da autora, se recusa a ingenuidade romântica, investe, ao
mesmo tempo, em composições de grande intensidade emocional, como a peça de
abertura do volume: “não era ainda pessoa / e já sonhava / não é mais pessoa /
e ainda sonha”, poema composto em homenagem ao filho Miguel Ângelo Leminski,
falecido com apenas nove anos de idade. Esta peça, assim como outras de Navalhanaliga, utiliza recursos visuais,
como a inserção de desenhos, fotos e símbolos de notação musical, com evidente
ressonância da poesia concreta, mas sem dependência epigônica: a estratégia
criativa de Alice Ruiz está mais próxima de um certo brutalismo que nos faz
pensar nas Antologias mamalucas de Sebastião
Nunes e nos poemas visuais do Jornal
Dobrábil de Glauco Mattoso. Em outra
composição, em que as palavras, dispostas verticalmente, são escritas em branco
sobre fundo negro (“elo / entre / olho / e / olho // espelho / rebelde /
reflete / o / estranho”), podemos pensar nos labirintos visuais do barroco
português e também na escrita ideográfica japonesa. Navalhanaliga, aliás, apresenta diversos haicais, gênero poético
que a autora vem praticando, com extrema originalidade, em todos os seus livros
publicados, especialmente Haitropicai (I985),
escrito em parceria com Paulo Leminski, Desorientais
(1996), Yuuca (2004) e o recente Jardim de haijin (2010). O haicai de
Alice Ruiz descende da dicção intimista e bem-humorada de Kobayashi Issa
(1763-1827), mas não se limita aos temas tradicionais, relacionados às estações
da natureza, investindo, também, na denúncia política: “nesse país sem greve /
só o relógio / faz o que deve” e no imaginário e vocabulário da cultura popular
brasileira (“presente de vênus / primeira estrela que vejo / satisfaça o meu
desejo”). Além de notável haicaísta, aliás, Alice Ruiz realizou traduções de
poetas japonesas como Chiyo-Ni e Chine-Jo,
reunidas no volume Dez haicais,
impresso em Santa
Catarina pela editora Noa Noa de Cleber Teixeira. Um belo
poema que testemunha o seu amor pela forma poética nipônica é esta composição:
“Francisco conseguia / entender / o que a ave dizia / Bashô enxergava / a
lágrima / no olho do peixe”.
UMA ERÓTICA DO
INUSITADO
Paixão xama paixão, o segundo livro de Alice Ruiz, publicado em 1983, incursiona
em releituras da lírica camoniana e dos mitos bíblicos, de modo paródico e
irreverente, e ainda no poema-piada, recorrente na produção dos autores da
chamada Poesia Marginal, em versos como estes: “a gente é só amigo / e de
repente / eu bem podia / ser essa mosca / perto do teu umbigo”, em que a
coloquialidade e informalidade somam-se a uma imagética própria dos mestres
japoneses. Em outra composição, que se avizinha do non sense, lemos: “o formigueiro que você olhava / voltou / ao seu
lugar // você volta / a ver as formigas / no meu olhar”. A paixão, na lírica de
Alice Ruiz, está sempre associada ao imprevisto, ao excêntrico, ao inusitado, expressando-se
em hipérboles (“noite / cadelas no cio / disputam a primavera”), paradoxos (“a
folha faz barulho / tenha ou não tenha letras // já o silêncio faz ver / todas
as coisas pretas”) e jogos de palavras (“sem saudade de você / sem saudade de
mim / o passado passou enfim”), trabalhados com aparente leveza e simplicidade.
Esta dicção insubmissa e inventiva atinge plena maturidade no livro Pelos pelos (1984), cujo título
evidencia, no trocadilho entre pelos
(substantivo) e pelos (preposição), a
conjunção entre o amor e a liberdade poética. Os poemas desse livro, de extrema
fluência e musicalidade (“você fica / muito louco / muito branco / muito magro
// o pó da estrada / que se afasta / é muito amargo // me sobra pouco / mas
esse amar / eu sempre trago”), já denunciam a letrista de música popular, que
compôs canções em parceria com músicos como Arnaldo Antunes, Alzira Espíndola e
Itamar Assumpção (seu livro Poesia pra
tocar no rádio, de 1999, reúne as
letras e poemas musicados de todas as suas parcerias). Notamos nesta obra,
apesar de sua erótica implícita, uma maior incidência de poemas logopaicos,
aspecto menos comentado da poesia de Alice Ruiz: “minha voz / não chega aos
seus ouvidos // meu silêncio / não toca teus sentidos // sinto muito / mas isso
é tudo que sinto”. Claro: a reflexão amorosa ou existencial sempre é expressa
com indisfarçada ironia e coloquialidade, com o uso freqüente da rima, que não
é acessória, mas um elemento musical que reforça o sentido do texto: “quero
fazer um verso / com todos os elementos / meus encantos / meus lamentos / que
atravesse / ares e mares / e te alcance / e te arranque / de todos os
pensamentos”. A poesia completa de Alice Ruiz (além dos títulos referidos,
devemos acrescentar o volume Vice versos,
de 1988) foi reunida no volume Dois em
um (2008),
publicado pela editora Iluminuras, iniciativa que não pode ser pouco elogiada,
por colocar à disposição dos leitores de agora uma obra coerente e inventiva, de
uma autora que está entre as vozes mais originais da poesia brasileira
contemporânea.
(Artigo publicado na edição de março da revista CULT, na coluna RETRATO DO ARTISTA.)
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