“Onde a
montanha encontra a água / nasce a flor”, diz a peça de abertura do livro Sumi-ê, de Nydia Bonetti (São Paulo: Patuá,
2014), coleção de poemas que dialogam com a pintura tradicional japonesa, que
remonta ao século XIV. Assim como outras artes inspiradas pelo zen-budismo – a
técnica de arranjos florais (ikebana),
a caligrafia (shodo), a cerimônia do
chá (cha-no-yu), o tiro com arco (kyudo) –, o sumi-ê valoriza a leveza, o despojamento, a concisão, a
espontaneidade, a precisão que cria o movimento. Todos esses elementos são
verificáveis nos poemas de Nydia, que conciliam sensibilidade, delicadeza e
notável delineamento formal: “há um jardim qualquer / em qualquer / canto /
onde uma flor qualquer / brotou / de qualquer / cor / de qualquer forma, flor /
e eu a oferto / a quem souber cuidar”, diz uma composição sem título que remete
à deliberada imprecisão e ao ocultamento presentes em haicais de mestres
japoneses como Shiki: “No meio do mato / a flor
branca / seu nome desconhecido” (tradução: Maurício Arruda Mendonça). É
inevitável fazermos uma aproximação entre a poesia de Nydia e um princípio
essencial da filosofia da arte japonesa, o yugen, palavra geralmente
traduzida como “charme sutil”. Os dois ideogramas que compõem essa palavra
significam, respectivamente, mistério e obscuridade. Segundo Darci Yasuco
Kusano, “yugen possui um significado além das aparências (...). Os fatores
primordiais que constituem o yugen são a beleza e a elegância, aliadas à
suavidade; o refinamento físico e espiritual (...). São igualmente expressões
de yugen a beleza ideal, sublime, com uma aura de mistério”. Um haicai tem yugen se ele consegue
abordar um assunto de maneira inusitada, mas com sutileza, sem ostentação ou
vulgaridade. Assim, neste belíssimo micropoema de Nydia: “agora vazios – os
campos de algodão / depois do vento”, que podemos comparar com um haicai de
Nenpuku Sato: “sementes de algodão / agora são de vento / as minhas mãos” (tradução: Maurício Arruda Mendonça). Em ambas
composições, o universo laboral está presente, em harmonia com o ritmo das
estações e com os estados de espírito despertados pela condição sazonal, tópico
imprescindível no terceto tradicional japonês, onde são incluídas palavras que
fazem alusão às estações -- “vento de
primavera”, “lua de outono” etc. Claro: Nydia não escreveu
um livro apenas com haicais, nem pretende fazer um diálogo “exótico”,
superficial, com a cultura japonesa: o que nos surpreende é a maneira como ela
incorpora elementos desse repertório e os reelabora em sua poética minimalista,
com graça e simplicidade. O olho
imagista ocidental, que alimentou a fanopeia de Ezra Pound, está presente aqui:
“no imenso jardim povoado de verdes / uma só / flor / que de tão só – vermelha
/ destoa”, em que os espaços em branco entre as linhas e a composição exclusiva
em caixa baixa reforçam a visualidade do texto, assim como a palavra “flor”
isolada no meio do poema, denotando solitude. Há na poesia de Nydia – nascida
em Piracaia, no interior de São Paulo – uma presença viva das paisagens da
infância, que constroem pensamentos, lembranças e sensações, numa espécie de
diário imagético: “tronco / retorcido em securas / restam / folhas miúdas / num
cacho / único / flores rosas / pendem / e denunciam: -- a vida / resiste”. Em
outra composição, a temática existencial se apresenta de forma ainda mais
enigmática: “o não lugar – onde habita / a não / vida / e o não sonhar – morada
/ de tantos”. Extrema economia formal, reforçada pela linguagem substantiva e
pela sintaxe fraturada, elíptica, que se adensa nas últimas peças do volume,
culminando na necessária quietude: “peço silêncio / há uma flor: -- se abrindo
/ no jardim”.
quinta-feira, 27 de março de 2014
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belos poemas, análise bela
ResponderExcluirGosto imensamente. A beleza no simples.
ResponderExcluirA beleza no simples. Gosto imensamente.
ResponderExcluirMuito boa nota sobre a Nydia Bonetti, poeta do equilíbrio de simples palavras suaves e vivas.
ResponderExcluir...nydia, uma das vozes poéticas femininas mais densas e sutis da geração 00...
ResponderExcluirSenti daqui o cheiro das pétalas do livro.
ResponderExcluirSenti daqui o cheiro das pétalas do livro!
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