sexta-feira, 28 de março de 2014

OS DISFARCES DO TEMPO NA LÍRICA DE NINA RIZZI



A duração do deserto, de Nina Rizzi (São Paulo: Patuá, 2014), lançado recentemente no I Festival Poesia Nova, realizado no Centro Cultural São Paulo, é o segundo título da autora, que reside em Fortaleza e também publicou Tambores pra n’zinga (Rio de Janeiro: Multifoco, 2012). Em ambos volumes, a lírica narrativa de matiz modernista soma-se a outras referências, como a fotografia, o cinema, a estética do fragmento e a cultura afrobrasileira (“as coisas continuam a me morrer / do barro se seca água, um todo imóvel, vodun”, lemos na composição candomblé pra nanã). Neste segundo livro, o leque é ainda mais plural, incorporando, de maneira bastante pessoal, ecos do futurismo russo e da paisagem expressionista, poemas construídos na forma de e-mail e casidas que dialogam com Federico Garcia Lorca. Todas essas referências revelam uma poeta culta, que dialoga com a tradição literária e os temas culturais, porém, sem afetação acadêmica ou pretensão erudita: o intertexto, na poesia de Nina Rizzzi, é um índice sentimental, uma pista da relação amorosa com o seu repertório de afinidades eletivas e uma exteriorização de seu imaginário, que dispensa citações e notas de rodapé. A voz da autora é lúdica e quase sempre com um timbre bem-humorado, irreverente, embora seja capaz também da solenidade da elegia, como no poema Na estrada de Sintra, dedicado ao jovem poeta Raul Macedo, falecido num desastre de automóvel.

A diversidade de estilemas, temas e timbres de A duração do deserto faz pensar – a princípio – na ausência de um foco narrativo, de uma unidade estrutural, mas a impressão se desfaz após uma convivência maior com esses poemas, que podem ser lidos como um diário cujo leitmotiv é o tempo, explícito já no título da obra.  A anotação epistolar (além do diário, podemos notar aqui a presença da carta, do e-mail) é mais evidente nos poemas lacônicos, que assumem por vezes a forma de dístico, como nesta composição: “lançar meu corpo ao cimo / e alcançar teu nome, abismo” (poema impossível, dionises variegada), um dos mais belos do volume, ou ainda nesta peça, que justifica o título da obra: “água e sal são meus olhos, / deserto é te esperar” (te amar, assombro). Impossível não recordar a microlírica de Safo, a poeta de Lesbos, especialmente a Safo dos poemas mais condensados, como este: “A lua já se pôs, / as Plêiades também: / meia-noite; foge o tempo, / e estou deitada sozinha” (tradução: Péricles Eugênio da Silva Ramos).

Em outra peça, a imagética surpreende o leitor como uma fotografia de Man Ray: “era uma vez uma folha atrás da orelha: / a pedra e a fala, araruama / toró, olvido” (cantilena). Simplicidade, economia verbal, imagens inusitadas de alto impacto. Assim também nesta peça: “solidão tem tamanho não, sinhô / vem da terra que a corcunda põe a olhar / até a única cor que não alcança o céu / azul” (solo pra rabeca e trompete). Os poemas mais ambiciosos do livro, porém, são os mais longos: Escrita aos ímpares (“Pedra ontem, pedra hoje e nunca”) e Contrapoema ao homem de meu tempo (“o homem do meu tempo em se punir, manso, me estrangula e ri”), que remete ao lirismo de Carlos Drummond de Andrade, ao mesmo tempo individual e cósmico. A poesia de Nina Rizzzi é um palimpsesto onde, camada após camada, lemos os diferentes disfarces assumidos pelo cruel deus do Tempo.

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