DO MEU CADERNO DE EXPERIMENTAÇÕES, LXXXVII
1.
luz,
o que se esvai:
o que se esvai:
ver-
melha, desce,
molha,
(lava-pés).
ei-lo: este frágil, finíssimo
espelho —
a noite ateia fogo
nos seus próprios
tornozelos:
sobe, pelo meio de si,
furiosa,
pela terrível escultura
da sua vulva.
sim — posso ouvi-la;
posso
premeditar o avc
das rosas
e a delicada arritmia dos
pássaros,
prestes
a derramar o
voo,
(céu, seiva — sim,
santa sangre).
2.
o braço:
-ar-
busto.
a mulher levanta-o e atira
neste espelho
o inviolável fruto da sua
anorexia.
(no cardume de vulvas que se abrem e se fecham
como piranhas
por dentro do espelho.)
como piranhas
por dentro do espelho.)
come-
se,
o caroço — o osso:
vê-lo cair,
(nenhuma imagem e
semelhança).
só um anel emerge,
o estremecimento inaugural
das bocas,
(centrífugas),
despet-
aladas.
voos,
sim — posso ouvi-los:
porque há noites
em que a mulher desata a dizer
"pássaros"
para além do seu diâmetro.
o corpo especular,
miraculoso,
(quebra-se):
depois sangra,
pelo meio de si,
pela abertura das bicadas
nos seus pulsos.
No poema da Marceli, dividido em duas partes, o discurso, fragmentado, descontínuo, é trabalhado de maneira geométrica e apresenta imagens de mutilação, de simbiose monstruosa, de deformação intencional de corpos e objetos. É um poema sobre a sexualidade, mas não apenas isso, aborda também o problema da identidade, como o ser é visto pelo outro, como vê a si mesmo, e a morte como única realidade. Não há uma lógica linear discursiva no poema – ao contrário do que acontece em Herberto Helder, por exemplo – mas uma lógica caleidoscópica, combinatória, mais próxima talvez de Mallarmé e Roubaud. A maneira como os signos apresentam-se, aproximam-se, transformam-se, distanciam-se, obedece a um ritmo não apenas referencial, mas também sonoro e imagético: nisso está a sua unidade. Admirável pelas sinestesias e metáforas como “a noite ateia fogo / nos seus próprios /tornozelos”, “a delicada arritmia dos / pássaros”, a luz vermelha que molha e muitas outras.
ResponderExcluirNós, os habitantes das margens, desprezadores dos poetas encartados, epecializados e grosseiros, porque vemos na poesia a verdadeira liberdade livre, gostamos dos seguintes versos da poeta Marceli Andresa Becker:
ResponderExcluir[ ... ]
premeditar o avc
das rosas
e a delicada arritmia dos
pássaros,
prestes
a derramar o
voo
[ ... ]
Luís Costa
Belíssimo poema. Que imagens brilhantes. A Marceli sempre nos surpreende, é impressionante. *.*
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