SINFONIA POLIFÔNICA
Mantenham as
crianças na sala. Tragam os velhos sem esperança, os homeless tentando dormir debaixo de nuvens carregadas, vira-latas uivando
na janela e poetas com um pé no hospício. Afugentem publicitários, políticos,
banqueiros e otários neochics: eles que façam sua suruba capitalista em outro
lugar. Aqui, não.
É claro que
não se trata de mera divisão esquemática, mocinhos versus bandidos. Mas o poeta é aquele que faz linguagem, que nomeia
as coisas e precisa demarcar seu território. O poeta está sempre de porta
aberta para alguém na tormenta, no precipício, no meio da tempestade.
O
espaço, neste livro, está bem delimitado: a urgência da vida. A indignação no
rodopio desse mundo, em que nada faz sentido nessa névoa de bosta e ninguém
responde ao chamado. Ainda assim – a descarga reativa
de meter o pau nessa joça –, é preciso escrever. Principalmente se se é um
poeta que não lida com palavras mortas. Essas palavras, as vivas, são nossas,
precisamos tomar posse delas.
Acho que é por isso que, ao ler os poemas deste livro, me
lembrei do Drummond de “Os bens e o sangue”: “Meu sangue é dos que não
negociaram, minha alma é dos pretos,/ minha carne dos palhaços, minha fome das
nuvens,/ e não tenho outro amor a não ser o dos doidos.[F1] ”
Era
preciso um poeta como o Ademir Assunção para dar conta dessa falta de sentido, desse
mundo que não deu certo. Numa troca
de e-mails, o poeta me disse: “Talvez
isso que chamamos de poesia seja uma grande sinfonia, polifônica, regida por um
maestro desconhecido. Totalmente insano, talvez. Uma polifonia dissonante, às
vezes. Convergente, outras vezes”.
Um
poeta, talvez, seja esse maestro. Ou, quem sabe, alguém que exerce a arte milenar
da ventriloquia, o ato de projetar a voz dando a ilusão de que é um outro quem
fala. Para alcançar essa capacidade de falar por várias personas, é fundamental manter o fôlego.
O maestro-ventríloquo Ademir é bem sucedido ao articular os tons
das séries de poemas. Muitos chegam sujos de coloquialidade e
oralidade daqueles que “ainda não abandonaram o barco e insistem/ em beber
sozinhos no canto mais escuro do balcão”. Sou testemunha dessa persona: em novembro de 2010, no Circuito Interações Estéticas, Ademir esteve em
Belo Horizonte com sua banda, dizendo seus textos, arrancando-os do fundo da
alma. Você terá a sensação de que muitos poemas, como “Armadura em carne mole”,
estão pedindo pra virar canção.
Esse
tom se alterna com outros mais contundentes, chutando o pau da barraca. Nesses,
a narrativa aproxima a violência, em diversas formas, com a violência do mundo
financeiro (oscilações da bolsa), destroçando tudo em nome do capital e da
propriedade.
E
há ainda outros momentos mais líricos, como em “A canção dos peixes” (a imagem
inesperada de os peixes cantando blues), “Billie Holiday na porta dos fundos” e
“Polaroide”, para destacar alguns.
Representando
uma encruzilhada desses tons todos, o irretocável “O fim e o início”, que fecha
o livro.
Ao
reger referências das mais diversas faturas, do noticiário ao mundo pop, sem
hierarquizá-las, o ventríloquo está em nenhuma parte, está em todo lugar;
talvez não volte nunca – ele chegou pra ficar.
(Apresentação de Fabrício
Marques ao livro A Voz do Ventríloquo, de Ademir Assunção.)
[F1]No
original, o ponto encerra o verso. Portanto, na literalidade da citação, o
ponto deve constar.
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