AS MITOLOGIAS INACABADAS DE SÉRGIO MEDEIROS
Sérgio Medeiros constroi
discursos poéticos híbridos, que incorporam elementos da prosa narrativa, da
notação musical, do aforismo, da peça teatral, dos jogos infantis, do roteiro
de cinema e da música ouvida em concerto, especialmente as composições
experimentais de Pierre Boulez e John Cage, que incorporam a variação, o
improviso e o acaso em suas obras. A escrita que resulta dessa miscelânea de
referências – às quais é preciso acrescentar o imaginário de diferentes
tradições ameríndias – é deliberadamente “impura”, assimétrica, descontínua,
permitindo múltiplas leituras. Em cada um de seus livros, Sérgio Medeiros
propõe um pacto lúdico ao leitor, que é desafiado a interagir com os textos –
mitologias inacabadas –, decifrando-os e recompondo-os, mentalmente, fazendo a sua
própria narrativa (o que nos faz recordar o teatro mental criado por Mallarmé
em Igitur, destinado à imaginação do
leitor, “que monta ele mesmo as coisas”, e também o conceito de “obra aberta”
de Umberto Eco). O título de estréia do poeta, Mais ou menos do que dois (2001), realiza, na própria distribuição
dos textos no volume, um espaço de jogo: o livro é estruturado a partir de
índices paródicos incluídos ao longo da obra que desorientam em vez de
sinalizar um percurso linear de leitura, sugerindo a hipótese de que o livro,
como o tempo, não tem começo ou fim. A própria identidade ou “pureza” do livro
é abalada pelas várias versões reunidas fora de ordem cronológica (a esse respeito,
o próprio autor declara: “O mito indígena não tem uma versão definitiva, ele dá
origem a uma série de versões – ou seja, se desloca, muda, acidenta-se,
desarticula-se...”). A sátira da organização e das listas remissivas permeia
todo o volume, em um ambiente de non
sense similar ao das peças curtas de Gertrude Stein e do teatro do absurdo de
Beckett e Ionesco, com os quais compartilha o tema da incomunicabilidade. Sérgio
Medeiros renuncia ao lirismo e eleva o ruído à dimensão de mensagem, buscando
intencionalmente o fragmentário, o inacabado, o desfeito: o texto-ruína, que se
corporifica, nas páginas finais do livro, na desarticulação léxica. O livro é
pensado como performance, ou ainda
como ritual, que presentifica um mito (no caso, o episódio de Cástor e Pollux,
metamorfoseados na constelação de Gêmeos. O tema do duplo reaparece em diversos
momentos da obra do autor, com todas as implicações simbólicas, psicanalíticas
e míticas). Em Alongamento (2004), seu
segundo livro publicado, Sérgio Medeiros dialoga com as técnicas de combinação
e permutação da música erudita de vanguarda, apresentando uma série de poemas
curtos, escritos à maneira futurista, elaborados a partir de apenas nove
palavras. Os recursos da linguagem cinematográfica – closes, planos, sequências –
estão presentes aqui, como nestas
passagens, de evidente teratologia: “uma piscina / esvaziada / à noite; / as
cadeiras brancas / crescem / nas bordas / como aranhas” e “a nuvem caminha com
patas de inseto e barriga negra de paquiderme”. No caderno intitulado Paisagens imaginárias dum jardineiro doudo,
o autor apresenta aforismos, numerados por asteriscos, compostos de apenas três
linhas, como se fossem haicais em prosa; já em O passo do macaco, ele constroi o poema como se fosse obra musical,
em que as letras, números e sinais gráficos são utilizados na composição de
textos visuais abstratos. É enorme a riqueza inventiva da poesia de Sérgio
Medeiros, que não pode ser resumida no curto espaço desta coluna. Convidamos o
leitor disponível a conhecer sua obra poética, que inclui também, O sexo vegetal (2009), Totens (2012) e O choro da aranha etc. (2013).
(Artigo publicado na edição de dezembro/2014 da revista CULT, na coluna RETRATO DO ARTISTA)
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