terça-feira, 30 de dezembro de 2014

RESUMO DE TUDO



 











Caros, 2014 foi um ano intenso, de importantes conquistas e transformações. A Copa do Mundo foi realizada com sucesso, trouxe investimentos para obras de infra-estrutura e mobilidade urbana, gerou milhares de empregos diretos e indiretos, estimulou o turismo e o comércio -- apesar da derrota de 7 a 1 para a Alemanha. O Brasil reelegeu Dilma Rousseff para a presidência da república, na quarta derrota consecutiva da mídia e do capital financeiro, apesar de sofrer uma campanha de difamação em todos os jornais de circulação diária do país (que pertencem a seis famílias de capitalistas midiáticos). Esta vitória se soma à de Evo Morales na Bolívia, Michelle Bachelet no Chile e Tabaré Vásquez no Uruguai. A América Latina reafirma o seu projeto de desenvolvimento autônomo com justiça social, cuja maior expressão, no campo da cooperação econômica, é o Mercosul, e no campo diplomático, a Unasul e a Celac (há exatos 12 anos a antiga OEA não é sequer mencionada na mídia, assim como o FMI). Os Estados Unidos, constatando o seu isolamento no continente, restabelecem relações diplomáticas com Cuba, em evidente tentativa de se contrapor à influência de Rússia e China na região (só se esqueceram de combinar o jogo antes com Raul Castro, que não é bobo).

Os BRICs realizaram um importante encontro que aprova a criação de um banco internacional, que em futuro próximo pode colocar em xeque o dólar como moeda comercial entre as nações e a atual ordem financeira, em uma nova correlação de forças – lembremos que a China já é a maior economia do planeta.  Acordos de cooperação bilateral realizados entre Rússia e China já apontam nessa direção, sobretudo no que diz respeito à distribuição e comercialização do gás. A Rússia retoma a agenda da antiga União Soviética no campo das relações internacionais e assina tratados de cooperação econômica e militar com Cuba, Nicarágua, Venezuela, Síria, Irã, Vietnã e Coréia do Norte. O imperialismo não assiste ao novo quadro político passivamente: fomenta o golpe de estado pró-nazista na Ucrânia, numa tentativa (infrutífera) de desestabilização da Rússia e estimula provocações em Hong Kong.

No Oriente Médio, os mercenários islâmicos patrocinados pelo Ocidente prosseguem em sua tentativa de destruição da Síria e do Iraque, situação que deve continuar nos próximos anos, com um custo elevado de mortes entre a população civil e as consequências inevitáveis da guerra – fome, miséria, doenças e o crescente número de refugiados para as nações vizinhas.

A entidade sionista invadiu novamente a Faixa de Gaza, numa operação militar cujo objetivo político era o de inviabilizar a unidade entre o Hamás e a Autoridade Nacional Palestina (ANP) e enfraquecer as lideranças desse heroico povo. A agressão custou dois mil mortos aos palestinos, em sua maioria civis, e a destruição de centenas de casas, hospitais, escolas, centrais elétricas, estradas, lojas, indústrias e da infra-estrutura hidráulica e de saneamento na Faixa de Gaza. Em todo o mundo, são realizadas grandes passeatas de protesto contra a agressão sionista e em São Paulo é realizada a I Semana e Fórum de Solidariedade ao Povo Palestino, do qual tive a honra de ser um dos organizadores. Do ponto de vista político, Israel saiu derrotada em sua guerra de rapina: não conseguiu minar a aproximação entre as principais lideranças e facções palestinas e o Parlamento Europeu reconheceu a Palestina como Estado, uma grande vitória diplomática da ANP.

Em 2015, é provável que aumente a tensão política internacional, com ações mais violentas do imperialismo, na tentativa desesperada de evitar ou adiar a sua inexorável derrocada. No Brasil, as forças da direita, inconsoláveis com a derrota de Aécio Neves e Marina Silva, criarão toda sorte de dificuldades para que Dilma tenha condições de governar. Já realizaram passeatas ridículas pelo impeachment da presidente em São Paulo – reunindo não mais de cinco mil pessoas, num estado com 44 milhões de habitantes –, fizeram propaganda do golpe militar (algo anacrônico na atual conjuntura política), criaram lobby para que o Judiciário não aprovasse as contas da campanha de Dilma, para que não fosse diplomada (nova e fragorosa derrota) e agora articulam no Congresso Nacional a candidatura de Eduardo Cunha, do PMDB (mas da ala oposicionista) para a liderança da Câmara Federal, com o objetivo de dificultar a aprovação de projetos do interesse do Executivo. Dilma, com sabedoria, soube vencer todas essas batalhas, nomeando um ministério que contempla os vários partidos que integram sua coligação, para garantir a maioria parlamentar e a governabilidade – apesar do mi-mi-mi da “esquerda festiva” (PSOL, PSTU). Com certeza, teremos novas e importantes batalhas políticas pela frente, pela reforma política, regulamentação da mídia, redução da jornada de trabalho, reforma agrária, para as quais é essencial a mobilização popular nas ruas e a formação de uma frente de esquerda unindo as centrais sindicais, entidades estudantis, MST, MTST e outros movimentos sociais. 2015 será um ano de fortes emoções.



RESUMO DE MIM

Muita coisa aconteceu em 2014 em minha vida pessoal. Recebi o título de doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo, após defender tese sobre o tema “A recepção da literatura japonesa em Portugal”, concluindo um percurso de sete anos, em que cursei o mestrado e o doutorado nessa instituição. Fui afastado do Centro Cultural São Paulo, por motivos políticos (o ex-diretor era tucano), concluindo uma gestão de quatro anos à frente da Curadoria de Literatura e Poesia do CCSP, em que criei atividades periódicas de divulgação literária como os recitais do ciclo Poesia dos 4 Cantos, o programa de rádio web Poesia pra tocar no rádio e a coleção de plaquetes Poesia Viva, com tiragens de 2 mil exemplares e distribuição gratuita ao público. A última atividade que realizei no CCSP foi o Festival Poesia Nova, dedicado à pesquisa de novas linguagens poéticas, que contou com a participação de E. M. de Melo e Castro, Lúcio Agra, Marcelo Sahea, Elson Fróes, Nina Rizzi Omar Khouri, Edson Cruz, Paulo Hartmann, entre outros poetas, músicos e estudiosos. Ingressei na Subprefeitura da Sé, como coordenador de cultura, lecionei, por dois semestres, literatura portuguesa na UNIP e mantive a militância política no Partido Comunista do Brasil (PCdoB), no Comitê pelo Estado da Palestina Já e a colaboração mensal na revista CULT, onde assino a coluna RETRATO DO ARTISTA, dedicada à nova poesia brasileira. Prossigo o trabalho de edição da Zunái, Revista de Poesia e Debates, que comemorou dez anos de circulação no ciberespaço, e nas horas vagas (!) atualizo o blog Cantar a Pele de Lontra. Publiquei alguns livros em 2014 – as antologias Poemas para a Palestina (editora Patuá) e El ornittorinco naranja (Lumme Editor) e ainda a edição mexicana de meu segundo livro de poemas, Yumê, com tradução para o espanhol de Victor Sosa. Iniciei a redação de Cadernos bestiais, meu futuro livro de poemas, reflexão crítico-poética sobre a época em que nós vivemos. Amei, desamei. Agora, estou pronto para as batalhas de 2015. 

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

ÚLTIMO POEMA DO ANO



 LABORATÓRIO DO OUVIDO

Para Dziga-Vertov[1]

relampagueia

cirro-borrifo

nas ramagens //

caule requeimado

azul-ferrete

cemitério da lua //

espectrar lupino

arroxeado

assombra-cães //

misterioso

repactuado

escarabídeo //

formigas

avançam

no esterco //

lunares

arrefecem

nos buritis //

tentaculoso

remorde-se

enigma-de-ecos //

ventos desfolham

flores vermelhas

de cupuaçu //

igarapés

olhos-centúrias

medusa-das-águas //

escoiceadas 

despossuídas

de tudo


2014


[1] Poema pensado como se fosse um breve documentário de Dziga-Vertov (“cine-olho”) sobre a floresta amazônica.

domingo, 28 de dezembro de 2014

SAIU A EDIÇÃO DE DEZEMBRO DA ZUNÁI!



















ZUNÁI, REVISTA DE POESIA E DEBATES

Volume 2, n. 1, dezembro de 2014

Homenagem a Wilson Bueno, o caçador de esmeraldas vivas

Traduções de Paul Celan (Romênia), Yosa Buson (Japão), Sylvia Plath (EUA), Soleida Rios (Cuba), Tawfiq Az-Zayyad (Palestina), Sujata Bhatt (Índia), Amarjit Chandan (Índia), Pablo Baler (Argentina)

Celan e mais Celan – Yvette Centeno

Apontamentos de leitura: Helder e Celan – Claudio Daniel

Poemas de Maria Teresa Horta (Portugal), Manuel Gusmão (Portugal), José Luís Mendonça (Angola), Célia Abila, Fabrício Slaviero, Rosana Piccolo, Evelyn Blaut Fernandes, Edson Bueno de Camargo, Stefano Calgaro, Vênus Couy


Narrativas de Evandro Affonso Ferreira, Rodrigo Garcia Lopes, Micheliny Verunschk, Priscila Merizzio

Galeria: imagens de Santiago Caruso, poemas visuais de Herberto Helder

Cadernos da Palestina: A destruição das antigas civilizações e a criação do império israelense – Thomas de Toledo

Zunái, Revista de Poesia & Debates:  www.zunai.com.br

Preço: Inefável; inconcebível.

Onde encontrar: no ciberespaço, essa “Gran Cualquierparte” (Vallejo).

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

DEZ LIVROS QUE GOSTEI DE LER EM 2014



 

 1) A Segunda Guerra Fria, de Moniz Bandeira

2) A Invenção do Povo Judeu, de Shlomo Sand

3) O País dos Cegos e Outras Histórias, de H. G. Wells

4) O Clube do Suicídio e Outras Histórias, de R. L. Stevenson

5) Os Piores Dias de Minha Vida Foram Todos, de Evandro Affonso Ferreira
 
6) Liberdade ou amor!, de Robert Desnos

7) Retornaremos das Cinzas para Sonhar com o Silencio, de Marcelo Ariel

8) Pagu: Vida-Obra, de Augusto de Campos

9) Onze Duodécimes, de Horácio Costa

10) Grimório de Gavita, de Andréia Carvalho


(Publicados em 2014 no Brasil)

FALHA DE S. PAULO CENSURA CARTA DE AUGUSTO DE CAMPOS




CARTA DE AUGUSTO DE CAMPOS NÃO PUBLICADA PELA FOLHA DE SÃO PAULO (13-12-2014)

AO PAINEL DO LEITOR

MICRÓBIOS NA MINHA CRUZ

(a propósito da resenha publicada na Folha de São Paulo (Ilustrada) sobre PAGU: VIDA-OBRA, em 13/12/2014)

Queria agradecer a crônica sobre o meu livro PAGU: VIDA-OBRA que o Otavinho Frias, Diretor da Folha de São Paulo, estomagado com os meus reclamos pelo fato de a Folha ter publcado um poema meu sem minha autorizacão e sem me pagar direitos autorais, e por eu ter denunciado a parcialidade política do jornal contra a presidente Dilma nas últimas eleições, encomendou a Marcia Camargos, beletrista, autora do romance “Micróbios na Cruz” e co-autora, entre outros, dos livros “Yes, nós temos bananas: histórias e receitas com biomassa de banana verde” e “Monteiro Lobato: furacão na Botocúndia”, além de receptora de prêmios da Câmara Municipal de São Paulo e da Academia Paulista de Letras.

Os títulos falam por si mesmos. Vai direto para engordar o tolicionário do meu THE GENTLE ART OF MAKING ENEMIES. Piada pronta, apud Josephus Simmanus. Meu livro é tão ininteligível que serviu de roteiro ao longa de Norma Bengell e a várias outras pagusetes. Como a obtusa professora fala em Patrícia Galvão, sabotada durante 50 anos pela candidíase das cadeiras de letras da USP, a cujo corpo docente pertence, e sobre a qual ninguém sabia ou falava nada antes do meu livro, que é de 1982 (!!!), sinto-me no direito de incluí-la também na classe dos que Décio Pignatari chamava de “chupins desmemoriados“.

Aproveito para denunciar a perseguição que a Folha de São Paulo move contra mim, chegando a solicitar vários dos meus últimos livros às editoras e omitindo qualquer notícia sobre eles.

Augusto de Campos

P.S. – O título do livro, adulterado e banalizado pela resenhista, com a cumplicidade da Ilustrada, não é PAGU, VIDA E OBRA, mas PAGU: VIDA-OBRA.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

RETRATO DO ARTISTA



 
 
AS MITOLOGIAS INACABADAS DE SÉRGIO MEDEIROS

 Sérgio Medeiros constroi discursos poéticos híbridos, que incorporam elementos da prosa narrativa, da notação musical, do aforismo, da peça teatral, dos jogos infantis, do roteiro de cinema e da música ouvida em concerto, especialmente as composições experimentais de Pierre Boulez e John Cage, que incorporam a variação, o improviso e o acaso em suas obras. A escrita que resulta dessa miscelânea de referências – às quais é preciso acrescentar o imaginário de diferentes tradições ameríndias – é deliberadamente “impura”, assimétrica, descontínua, permitindo múltiplas leituras. Em cada um de seus livros, Sérgio Medeiros propõe um pacto lúdico ao leitor, que é desafiado a interagir com os textos – mitologias inacabadas –, decifrando-os e recompondo-os, mentalmente, fazendo a sua própria narrativa (o que nos faz recordar o teatro mental criado por Mallarmé em Igitur, destinado à imaginação do leitor, “que monta ele mesmo as coisas”, e também o conceito de “obra aberta” de Umberto Eco). O título de estréia do poeta, Mais ou menos do que dois (2001), realiza, na própria distribuição dos textos no volume, um espaço de jogo: o livro é estruturado a partir de índices paródicos incluídos ao longo da obra que desorientam em vez de sinalizar um percurso linear de leitura, sugerindo a hipótese de que o livro, como o tempo, não tem começo ou fim. A própria identidade ou “pureza” do livro é abalada pelas várias versões reunidas fora de ordem cronológica (a esse respeito, o próprio autor declara: “O mito indígena não tem uma versão definitiva, ele dá origem a uma série de versões – ou seja, se desloca, muda, acidenta-se, desarticula-se...”). A sátira da organização e das listas remissivas permeia todo o volume, em um ambiente de non sense similar ao das peças curtas de Gertrude Stein e do teatro do absurdo de Beckett e Ionesco, com os quais compartilha o tema da incomunicabilidade. Sérgio Medeiros renuncia ao lirismo e eleva o ruído à dimensão de mensagem, buscando intencionalmente o fragmentário, o inacabado, o desfeito: o texto-ruína, que se corporifica, nas páginas finais do livro, na desarticulação léxica. O livro é pensado como performance, ou ainda como ritual, que presentifica um mito (no caso, o episódio de Cástor e Pollux, metamorfoseados na constelação de Gêmeos. O tema do duplo reaparece em diversos momentos da obra do autor, com todas as implicações simbólicas, psicanalíticas e míticas). Em Alongamento (2004), seu segundo livro publicado, Sérgio Medeiros dialoga com as técnicas de combinação e permutação da música erudita de vanguarda, apresentando uma série de poemas curtos, escritos à maneira futurista, elaborados a partir de apenas nove palavras. Os recursos da linguagem cinematográfica – closes, planos, sequências  – estão presentes aqui,  como nestas passagens, de evidente teratologia: “uma piscina / esvaziada / à noite; / as cadeiras brancas / crescem / nas bordas / como aranhas” e “a nuvem caminha com patas de inseto e barriga negra de paquiderme”. No caderno intitulado Paisagens imaginárias dum jardineiro doudo, o autor apresenta aforismos, numerados por asteriscos, compostos de apenas três linhas, como se fossem haicais em prosa; já em O passo do macaco, ele constroi o poema como se fosse obra musical, em que as letras, números e sinais gráficos são utilizados na composição de textos visuais abstratos. É enorme a riqueza inventiva da poesia de Sérgio Medeiros, que não pode ser resumida no curto espaço desta coluna. Convidamos o leitor disponível a conhecer sua obra poética, que inclui também, O sexo vegetal (2009), Totens (2012) e O choro da aranha etc. (2013). 

(Artigo publicado na edição de dezembro/2014 da revista CULT, na coluna RETRATO DO ARTISTA)

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

CADERNOS BESTIAIS (IX)

 

DEIR YASSIM

Nenhuma lápide
para os mortos
em Deir Yassim

episódio rasurado da história

suas casas demolidas
suas ruas desfiguradas
renomeadas em hebraico

120 homens e mulheres
executados

pela garra curva de Moloch
o que tudo devora

na esquina dos ventos
formigas míopes avançam
em sentido anti-horário.


2014 (ano 66 da Nakba)


quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

CADERNOS BESTIAIS (VIII)



  









FÓSFORO BRANCO

Para Emir Mourad

Fósforo branco ácido ilumina escombro escárnio nos céus do Líbano.
Talhos retalhos de torsos retorcidos
ossos negrume carcaças.
Corpos enfileirados peles requeimadas
de carne sucata
nos campos de refugiados
em Sabra e Chatila.
Esta é a hora do morticínio.
Farpas fiapos nacos de membros desmembrados
e o aroma escuro escuro da hora lenta lenta de um dia que nunca termina.
Nenhum Kaddish para os filhos da escrava Agar
nenhuma lágrima para Ismael.
Apenas o silêncio de talhos retalhos peles farpas fiapos
e o escuro escuro.
Esta é uma história
exilada da história,
que eu e você não devemos saber:
por isso cala o escombro cala o negrume cala a sucata do morticínio.
É preciso calar
a matraca dos jornais;
sim, é preciso fechar os livros, fechar para sempre os livros
e condenar os mortos à perene desmemória
(em algum sítio
mefistofáustico
de Tel Aviv,
que moveu a macabra máquina da morte,
a estrela de David
se converte
em nova suástica).
Porém, eu e você não nos calamos,
eu e você não iremos esquecer,
eu e você somos o cedro do Líbano, a oliveira da Palestina,
o pão fresco nas mesas da Síria.
Houve aqui uma página infame da história,
mas eu e você recusamos o silêncio,
recusamos o esquecimento,
recusamos o perdão.
2013

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

SIONISMO É UMA FORMA DE RACISMO













"Israel" não é um país -- nunca foi, nem nos tempos bíblicos -- mas uma rede de grandes empresas capitalistas, incluindo os maiores bancos, indústrias armamentistas e companhias de petróleo do mundo, que para a defesa de seus interesses mantém uma base estratégica no Oriente Médio, no território que historicamente é habitado pelo povo palestino. "Israel" mantém a sua hegemonia pelo poder financeiro, militar, pela chantagem imposta à comunidade internacional e pela segregação racial e genocídio do povo palestino. Por todos esses motivos, como diz a minha camarada Bernadette Siqueira Abrao, a causa palestina é uma causa de toda a humanidade.

(Foto: colonos sionistas -- aqueles que vieram de países europeus e hoje moram em propriedades roubadas dos palestinos -- saem às ruas com fuzis e metralhadoras. Que tipo de "país" é esse?)

CADERNOS BESTIAIS (VII)



BREVE HISTÓRIA DO FABRICANTE DE CERVEJA

Cabeça com tentáculos de harpia,
obeso como grávido
escaravelho,
despreza (deliberadamente)
as leis
que o desagradam.
Contrata paraguaios, chilenos, bolivianos,
hondurenhos, guatemaltecos,
haitianos
para trabalharem
em sua fábrica,
sem identidade 
ou carteira de trabalho.
Tudo é número
no anguloso inferno fabril.
Multiplica as horas
para a moagem do malte,
a maceração,
a fervura do mosto,
a adição dos lúpulos de aroma,
a decantação.
Com olhar imóvel de um porco morto,
contabiliza os ganhos
de sua rapinagem
clandestina,
como quem conta cordeiros
ou estrelas.
Um dia, cinco musculosos haitianos
pegaram o pilantra
pelas orelhas,
surraram-no
e jogaram-no
no meio da fervura.
Após o expediente,
reuniram todo o pessoal
no quintal da fábrica
e beberam muita, muita, muita cerveja.

2014

CADERNOS BESTIAIS (VI)















JAMAIS

Para Fabrício Slaviero

bichos de verde-muco proliferam
nos entalhes do tapume;
antiaranhas deslizam
nas ramagens,
tramam teias e resíduos
de uma dor vermelha,
recíproca.
há um plasma em cada fenda,
em cada vão
de madeira apodrecida.
há um acre açafrão
em cada veio
do reboco, com seu ácido.
tateiam algo, quem, aqui –
ou apenas arrulhos, crostas, escaras,
ninguém com óculos de aro fino,
breve gravata lilás e uma refinadíssima
sensibilidade no olfato; não, ninguém,
nunca houve, jamais.

2014


ARAMES, RETALHOS

esqueletos do nunca
onde o áspero da palavra,
brutais de dezembro.
porque esta não é a minha língua:
retorcidos de mistério,
caranguejo onagro.
onde se desdobra a pedra, onde se
desdobra o nojo desse nunca,
que se anuncia indesejoso:
são palavras em seu verde, em seu asco;
são vértebras de escárnio,
entulhos-de-orelhas à procura da mulher-dos-gatos.
porque nada faz sentido, eu sei,
neste reverso em que me falas,
primitiva, reverberante,
com a nudez que me calam os arames, os retalhos;
com a nudez de um estuque de plantas,
ruidosa, em expansão — e só me resta confessar
os fumos de aranha, inconcluso,
quando indagas sobre o meu labirinto.

2011 

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

CADERNOS BESTIAIS (V)











 ANÔNIMOS
Há um louco solto na rua.

(Os livros dos uigures foram escritos para serem esquecidos.) 

Um policial pede os seus documentos.

(Há três ou quatro especialistas em língua suméria.) 

O louco entrega-lhe um tijolo.

(Uma tribo na Ásia Central escreve seus livros sagrados nos ventres de mulheres-anãs.)

O policial fica furioso porque queria um sapato.

(Um miniaturista persa escreveu um longo poema épico numa pena de faisão.)

Eles começam a discutir e logo aparece uma mulher gorda que entra na confusão.

(Sobre o que conversam as abelhas?)

O louco declara o seu amor pelos incêndios.

(Nuvens serão letras de um alfabeto cabalístico?)

O policial é apaixonado por boxeadores e telepatas.

 (Os melhores poemas ainda não foram escritos, disse para mim um asceta tuaregue.)

A mulher gorda ataca o louco com a sola de um sapato.

(Quem conhece um grande romancista da Lituânia?)

O Cinegrafista do Grande Telejornal filma todo o episódio para exibir no horário nobre.

(Há indícios de vogais e consoantes em teus pequenos lábios.)

 Logo surgem legiões de publicitários, jornaleiros e vendedores de apólices de seguros e tem início uma pancadaria.

(Poucos são capazes de ler as mensagens ocultas no interior das nozes.)

s/d

CADERNOS BESTIAIS (IV)











FIM DO MUNDO
À memória de Jakob van Hoddis

Loba ensandecida rumina vermes de escuro escárnio.
Alguém-ninguém atravessa a rua
e em todos os cantos 
ouvem-se gritos 
feito guinchos
de um porco amarelo.
Cai um aguaceiro
na cidade esquálida
e os bairros alagados atingem as estrelas. 
Banqueiros obesos caem do telhado 
e se despedaçam.
Numa placa de rua, 
lemos: cuidado.
Quase todos têm secreções nasais;
os ônibus correm nas avenidas 
a toda velocidade,
entram nos viadutos
e se chocam contra as paredes.
Todas as palavras não são mais que uma superfície de cacos de vidro à entrada de uma cidade maldita.

2014


PAISAGEM
Árvores saqueiam o arco-íris.
Três banqueiros atiram-se
ao rio e morrem afogados.
Nuvens piscam o olho para o sol,
que enfurece os dentes-de-leão.
Ninguém me oferece uma estrela.
Quando eu morrer, me enterrem
na tua voz.

2014


CADERNOS BESTIAIS (III)



















CANTIGA

Je n’était que son ombre

Tristan Tzara

Penso em você eroticamente.
Até a fabulação
de outra margem,
na estranha habitação onde os números,
pares e ímpares, enlouquecem.

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Um minúsculo leão branco habita a sua fenda.


***

a ferocidade
no limiar da noite,
quando a pele —
desmedida, irremissível,
se projeta em outra pele:
nenhum destino além do nervo tumultuário.


* * *

todas as mulheres
são tigres desenhados
em teus olhos, que se desdobram
na noite estrelada: olhos pés, olhos-mãos,
olhos-boca, olhos-peitos, olhos-nada


***
cada letra
de teu nome
tem sua própria cabeleira,
denso alfabeto que incita à iniciação
no segredo de teu Segredo.
tua sombra segue minha sombra
em cada passo mínimo.


* * *

há uma letra
em cada pétala,
mas nenhuma
para traduzir estrela.
há uma pétala em cada seio,
e um seio em cada lábio
que morde cicatrizes.


* * *

há uma cicatriz
em cada imagem que
não cala, em cada memória
que recusa o esquecimento.


* * *

porém,a delícia
de caminharmos lado a lado,
sem destino, nessa terra ignorada,
quando lagartos devoram cicatrizes.
e então, mais uma vez,
você é para mim um anjo, e eu a sua sombra.


Poema dedicado a Juliana Brittes