sexta-feira, 7 de junho de 2013

RETRATO DO ARTISTA


A POESIA INSUBMISSA DE FREDERICO BARBOSA

Claudio Daniel

A poesia de Frederico Barbosa é um antídoto à docilidade, à ficção ingênua do lirismo, tão fora de foco em meio às ruínas de qualquer certeza estável. Nascida em meio à perplexidade e à dúvida, é regida por uma dupla estratégia, uma no campo do engenho léxico e sintático, e outra na seara do pensamento: busca o impacto da forma inusual, imprevista, jogando com todos os recursos da função poética, mas sempre com uma visada crítica, não raro sarcástica e corrosiva. Seu anjo tutelar é menos um serafim da pureza vocabular que um daimon apaixonado pela impureza, pela mescla do erudito com o coloquial, vivificando o idioma, em vez de petrificá-lo. A escrita poética de Frederico Barbosa é o registro de uma paisagem de confusão e tumulto, e a violência verbal iconiza com voz enfática o presente barroco, fraturado, em que vivemos. Na lata – Poesia reunida, publicado pela editora Iluminuras, reúne poemas escritos ao longo de 35 anos de trabalho criativo e publicados em seis livros: Rarefato (1990), Nada feito nada (1993), Contracorrente (2000), Louco no oco sem beiras (2001), Cantar de amor entre os escombros (2002) e Brasibraseiro (2004), este último escrito em parceria com Antonio Risério. Não é tarefa fácil resumir, em poucas linhas, todos os acidentes geográficos dessa pátria insólita. Conforme escreveu Sebastião Uchoa Leite, o poeta mistura “Camus e o jazz, Beckett e filmes noir, João Cabral e os faróis de automóveis”.  Longe de ficar estanque no âmbito verbal, Frederico Barbosa incorporou procedimentos de montagem e sequência do cinema, os movimentos melódicos da canção, a rapidez informativa do jornal, entre outros códigos da aldeia enlouquecida, dinamizando a narrativa poética, que ganha agilidade e força de impacto. Herdeiro da tradição do rigor construtivo da poesia concreta, evidente sobretudo em seus dois primeiros livros, Rarefato e Nada feito nada, Frederico Barbosa dialoga também com a tradição barroca, como acontece no poema Labyrintho difficultoso (“cada dia de novo cada dia / mais insone / mais / mas não vem”), em que o poeta faz um labirinto de palavras, onde a distribuição espacial e geométrica das palavras na página permite leituras na horizontal, na vertical, na diagonal e em sequências livres, multiplicando os significados. Já no poema Rarefato, que nomeia seu livro de estreia, o poeta utiliza o labirinto de versos, técnica combinatória e permutatória em que as mesmas linhas se repetem nas estrofes em diferentes posições, com poucas variações e acréscimos, permitindo diferentes leituras:

 Dominado pela pedra, insone,  
descolorido, o crime principia   
nas altas horas de noite vazia   
ganha corpo no decorrer do dia.   
      
Ganha corpo no decorrer do dia,   
dominado pela pedra insone   
dor de náusea delicada e infame,   
das altas horas da noite vazia.   

Dor de náusea delicada, infame,   
nas altas horas na noite vazia   
ganha corpo no decorrer, no dia   
dominada pela pedra, insone.   

Ganha corpo no decorrer do dia,   
dor de naúsea delicada e infame   
descolorido, o crime principia   
alia-se ao tédio impune e some.


A escrita labiríntica é um dos temas da poeta portuguesa Ana Hatherly, autora da antologia de poemas visuais barrocos A experiência do prodígio e do romance experimental O escritor, construído com imagens, letras e números em vez da usual prosa narrativa. Leitor atento de Ana Hatherly e do poeta barroco baiano Gregório de Matos, Frederico Barbosa assimilou de modo pessoal e inventivo os aspectos lúdicos da poética barroca, somando efeitos visuais e sonoros para estimular a experiência sensorial e intelectiva do leitor.

Desconfiando sempre de suas próprias conquistas, e após sete anos de silêncio, Frederico Barbosa mudou de timbre em Contracorrente, optando por uma fala próxima à dicção de rua, embora fragmentária e metonímica, incorporando a gíria e o palavrão, flashes da cidade caótica e incursões no âmbito erótico-amoroso. Um poema notável desse livro é Desexistir, de arquitetura concentrada, elíptica e não menos incisiva: “Quando eu desisti / de me matar / já era tarde. / Desexistir / já era um hábito. / Já disparara / a auto-bala: / cobra-cega se comendo / como quem cava / a própria bala”. Uma outra composição, de tonalidade sensual, porém não menos elaborada formalmente é Memória se: “A mais íntima / memória se / desdobra cega / e surda: / a presença tátil / de suas dobras / incrustadas / nas marcas linhas / das minhas mãos”. O timbre corpóreo se torna ainda mais explícito em Paulistana de verão, onde o poeta reimagina a passante de Baudelaire, numa cena que nos faz pensar na célebre foto de Marylin Monroe: “O vento leva-lhe a quase / saia / e vê-se a jóia / surpresa lapidada / que desaparece na boca quente / do metrô”. 

Pouco propenso à abstração metafísica, Frederico Barbosa se volta às questões da existência, ao ácido estar no mundo, tema desenvolvido, com especial atenção, no poema-livro Louco no oco sem beiras, em que ele define, num verso lapidar, sua angústia intelectual: “Vivi torto porque quis, felizmente infeliz”. Este é o poema mais pessoal do autor; em linhas breves e ferinas, registra o non sense da rotina laboral e doméstica, sem cair no fácil prosaísmo do cotidiano ou na lírica confessional narcísica. A vida pulsa no  sistema sanguíneo da linguagem poética: “começo-me / como quem grita sem / luz sem voz sem vis sem vez sem mais / desfocado / fora de faro / formigando em / câmera lenta / sem coragem / sem o que me dispare”. Sinceridade e engenho criativo explodem a cada página do poema, que ganha ainda mais força quando lido em voz alta, pela forte dissonância: “linhas cores correm horrores o / desencontro sem ritmo pacto / decomposição do abstrato / acordava absurdo / ouvido amplificado / distante das coisas / todas / do ar de mim”. No exorcismo de seus pesadelos, Frederico Barbosa recupera demônios medievais e inventaria uma fauna de fungos, vermes, moscas e outros insetos, transfigurando-se, ele próprio, em um “monstro voador”. Após essa dolorosa descida ao Hades, o poeta reinvoca a utopia possível, a redenção em Eros, no livro Cantar de amor entre os escombros, um dos pontos altos de sua lírica. O livro é uma antologia que reúne todos os poemas amorosos do autor, desde peças concisas e de aparente simplicidade como Jeans (“A carne forçada / sob a calça jeans / quase explode / querendo sair. / O tecido vibra / fibra a fibra / trêmula grade / implodido jardim. / Enquanto a carne / flora pura / implora em si.”) até composições mais longas e experimentais como Nós / paisagens. Cantar de amor entre os escombros reúne também os poemas que Frederico Barbosa escreveu dialogando com o jazz, como Moonlight in Vermont, Blue moon e Star Dust, peças de escrita mais conversacional, em que o poeta trabalha com a variação e o improviso, como se as palavras fossem notas de um saxofone. A renovação temática da poesia de Frederico Barbosa aconteceu no volume Brasibraseiro, escrito a quatro mãos com Antônio Risério. O livro é uma viagem pelo imaginário africano e indígena, pelos mitos e acontecimentos da história brasileira e pelo pensamento em torno de nossa cultura, sinalizando a possibilidade utópica, num mundo cada vez mais caótico e destroçado. Uma peça que chama a atenção nesta série é o Oriki de Ori, em que o cético Frederico Barbosa rende-se aos encantos dessa forma poética de origem nagô-iorubá, o oriki (canto em louvor a um orixá): “meu ori meu deus / meu e só meu / meu deus meu destino / que escolhi / eu / mesmo (sem sabê-lo) / meu”. O poema faz referência a uma tradição africana, segundo a qual cada espírito humano escolhe uma cabeça e um destino antes de encarnar em um corpo (tema abordado por Risério em seu livro Oriki orixá).

O espaço desta resenha é insuficiente para mergulharmos em tantos aspectos de uma arte de assombros, onde podemos ver ressoarem ecos da tradição modernista brasileira e portuguesa (sobretudo João Cabral de Melo Neto e Mário de Sá-Carneiro), do simbolismo, do barroco e ainda dos grafitis e anúncios publicitários, sintetizados no dialeto de pedrada, para “desafinar o coro dos contentes”, como queria Sousândrade. Sendo assim, na falta de síntese adequada para falarmos, de modo satisfatório, dessa escrita insubmissa, que vai na contramão do Parnaso e do marketing do milkshake, nada melhor que fecharmos este texto com palavras de Haroldo de Campos: “Frederico Barbosa (...) situou-se logo na linha de frente da melhor poesia brasileira jovem, cujos representantes se contam pelos dedos”.    

(Artigo publicado na edição de junho da revista CULT)


Um comentário:

  1. O Professor Claudio Daniel, em uma abordagem objetiva posiciona-se de maneira construtiva
    Descrevendo com domínio, todo trabalho do Poeta Frederico Barbosa

    descrevo o sentimento que sinto com relação a obra do poeta
    Citando o trecho de um poema do poeta : José Maria Souza Costa

    Cidade e rua, tudo se mistura, em prantos ou galanteios.
    Tem os ternos, e, as gravatas, desfilando em pleno dia.
    Tem as noites, em dançantes-lenta, ao som de devaneios.
    Tem as rimas em utopias, poesias e, o áureo do dia a dia.

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