segunda-feira, 6 de maio de 2013

RETRATO DO ARTISTA





O CINEMA MENTAL DE RODRIGO GARCIA LOPES

Rodrigo Garcia Lopes é um dos mais expressivos poetas brasileiros que iniciaram sua jornada na década de 1990, ao lado de Claudia Roquette-Pinto, Carlito Azevedo, Ricardo Aleixo e Josely Vianna Baptista, para citar poucos nomes. Seu livro de estreia, Solarium, publicado em 1994,  é um registro de dez anos de trabalho poético do autor e apresenta poemas “dos mais variados estilos, com técnicas e texturas que seduzem e declaram a liberdade de evocar diferentes performances em seu discurso”, como escreve Maurício Arruda Mendonça na “orelha” do livro. Encontramos neste volume desde poemas que exploram o espaço em branco da página, a geometria e a variação tipográfica, com ecos da Poesia Concreta, até o haicai, gênero que praticou com o pseudônimo de Satori Uso, na época em que atuou como jornalista na Folha de Londrina (“formigas dragam / uma abelha / ainda viva”; “pombos se aquecem / num resto / de sol”). Os poemas mais característicos dessa fase de Rodrigo Garcia Lopes, no entanto, são as composições mais discursivas, com versos longos, próximos à prosa, imagens quase fotográficas da natureza e um intenso lirismo, escritos numa linguagem direta e coloquial, como O processo: “Música devorando plantas, nossas palavras. / Quer dizer, um ruído em você, a água irisando / entre pedras imóveis. / Como aqui: / vendo nuvens soprarem / chuvas para o sul, onde o deserto / parece tão perto / e continua a rolar suas areias / como num movimento decisivo / de um jogo de Go”. Visibilia, publicado em 1997, traz poemas mais concisos em que as rimas, aliterações e outros recursos sonoros são usados para construir os jogos do pensamento, numa unidade entre fundo e forma. Uma peça significativa desse volume é o poema Fugaz: “o outro é aquele que ficou à margem / no espanto de um pronome, / no corpo de uma brisa suave; / o outro é como uma fome / pluma à deriva, à distância, ou quase. // estranho em sua própria viagem, / garrafa com uma mensagem, / olhar durando numa flor, / sem nome, secreta, selvagem”.

É possível reconhecer afinidades entre a poética de Rodrigo Garcia Lopes e a de Paulo Leminski, que também conciliou a fala coloquial e o humor com as rimas e outros jogos de linguagem, mas são autores com projetos literários diferentes. Rodrigo Garcia Lopes tem vocação para escrever poemas longos, polifônicos, que incorporam cenas do cotidiano misturadas a referências literárias, cinematográficas e mitológicas de diferentes idiomas e culturas, fazendo do próprio tecido poético a imagem do mundo caótico em que vivemos.  Esse projeto alcançou o seu nível de maior radicalidade inventiva com Polivox, publicado em 2001. Como o próprio título indica, este é um livro plural, onde encontramos desde um sutil e delicado lirismo, que recorda a canção popular, até o impacto visual de certas imagens e a violência tonal de farpas vocais. O poeta fratura a lógica narrativa e sequencial do discurso, operando o corte imprevisto e a montagem de frases, como se o volume fosse um cinema em versos. A metáfora está presente, até com fúria barroca ("Céus de cristal líquido. / Limalhas de ferro formam uma rosa imantada"), mas o que predomina é a reflexão crítica, via linguagem, sobre a época ruidosa em que vivemos, época de violência e banalidade em que o mercado, hostil ao artista e à obra de arte, se sobrepõe a qualquer esforço de reconstrução da ética e do humanismo, impondo a hegemonia do lugar-comum.

Em vez de entoar um coral melancólico, porém, Rodrigo registra imagens da aldeia enlouquecida, com sátira e ironia, usando inclusive, de maneira paródica, recursos do videoclipe e o vocabulário digital. Assim, por exemplo, na peça de abertura do livro, que recorda um jogo alucinado ("On line. Psiu: 'Épico é poema / contendo história'. / E se um Plano de Saúde / Pudesse expressar / sua / Individualidade?"). Em contraste com o Leviatã midiático, que intenta o exílio do refinamento pela imposição de caricaturas alienantes, Rodrigo compõe sua sinfonia com símbolos vivos de múltiplos territórios e culturas. Ao longo de Polivox, vamos encontrar referências a mitologias, poéticas e religiões, como o budismo e o xamanismo, concepções mais orgânicas do que pode ser o humano e o estar no mundo, superando fronteiras espaciais e temporais e também balizas de repertório. Na seção do livro chamada Thoth, o autor dissolve as noções de prosa e poesia, razão e onirismo, para compor uma elegia egípcia ao deus dos escribas e da linguagem ("Sou Thoth, deus dos dizeres, senhor dos sentidos / o que assimila o semblante / de todos os deuses"). Em outra peça de boa fatura, nesta mesma seção, o autor diz: "A deusa lua entra no salão de espelhos, em transe: / para onde olha, linguagem (vibrátil), estranhos / estilhaços de um corpo que mutua / mente se reflete: até o infinito. / E feitos da mesma imagem / (que se rebate) / até o infinito".

O movimento alucinado de imagens também comparece em Nômada, livro mais recente de Rodrigo Garcia Lopes, publicado em 2004, onde encontramos insólitas composições como esta: “Levamos mapas que modificam e se estendem a cada passo sobre a língua do arvoredo ou universo plano de pétala pensada por um animal, céu virando o rosto, a curvatura de sua mente, esse mais longo dos dias” (Fragmentos em movimento).  Maria Esther Maciel, a propósito desse trabalho, escreve: “Nômada se aproxima tanto da música quanto do cinema. Seus trânsitos se evidenciam por blocos rítmicos sem ponto de origem, sempre no meio da linha ou da página e por imagens em movimento. Travellings, closes, avanços, recuos, velocidades e lentidões marcam sua temporalidade, seu devir. (...) Aliás, todo o livro se estrutura como uma totalidade aberta, uma montagem rítmica e visual”. Rodrigo Garcia Lopes, que também é músico e compositor, lançou ainda dois CDs, Polivox e Canções do Estúdio Realidade e já se apresentou no programa Poesia pra tocar no rádio, do Centro Cultural São Paulo, participou do I Seminário de Ação Poética e publicou uma plaquete pela coleção Poesia Viva, editada pela Curadoria de Literatura e Poesia do Centro Cultural São Paulo.

Artigo publicado na edição de maio da revista CULT, que também traz fotos e poemas inéditos do autor.

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