terça-feira, 7 de maio de 2013

ESQUELETOS DO NUNCA



“Este livro é construído por suas obsessões”
— Henri Meschonnic, a propósito do Eclesiastes


CONFISSÃO

No apodrecer de mim, caranguejos copulam em minhas órbitas.

(Mademoiselle Mélancolie)


LAFORGUE


"Praia de ossos", mamilo que traduz a lua; minúsculo esqueleto branco, Schopenhauer, música essa flor que saboreia minha língua.

(Quando?)


PROUST


Cabeleira leonina, multiplicação de prismas, tanto deserto, Renée, música nenhuma, contornos que se desfazem, gravuras de bonecas espanholas, Renée, o movimento das falanges, palavras secas na fotografia, desmembrando.

(Atibaia, após 1985)


AEROPORTO


Roubava revistas de jardinagem e culinária japonesa com a tranquilidade de um colecionador de térmitas.

(Congonhas, s/d)


JEUNESSE


Renée gostava de revólveres, conhaque, música de Bach, jogos de memória, lenços de seda indiana, livros de Jung.

(Sabiá, 1985)


INFÂNCIA


Caveira de macaco com rubis nas órbitas. Reprodução de mapa do século XVI. Estátuas dos sete sábios da China. Espátula de bronze na forma de demônio. Brinquedos de infância.

(Moema, s/d)
  

OBSCURO

O sempre fascínio por essa gargalhada, essa fome, essa lâmina, música que destroi a floresta dos peixes.

(Universidade, 2011)

MALLARMÉ
Ce Conte s’adresse à l’Intelligence du lecteur, qui met lês choses em scène, elle-même.
(Igitur, en se tombeau)

ÓBVIO


O desprezo ao óbvio de anúncios, epitáfios, crônicas, bilhetes, memorandos, maus poemas, sociologias, cartões-postais.
(Universidade, 2011)

DOMINGO
Vitrais; estátua africana; cúpula-cogumelo; o cheiro do cachimbo; voz monótona; fatias de alcatra; um pão sem gosto de nada; relógio de pulso; imobilidade; súbito, enormes tetas brancas, sob o decote verde.

(Casa do Quem?, 1972)

  
MÃE


Concerto para cordas, flores sintéticas, rosário nas mãos magras, caixão desce pelo fosso, no centro da plateia mal iluminada, até virar cinzas.

(Vila Alpina, 2005)
  

PAI

Pele fina como folha de papel. Grossas veias. Dedos amputados, barba por fazer. Um sorriso implorando pela desmemória.
(Hospital, 2005)


BILHETE

Madame La Mort passou por aqui.

(Allemonde, s/d.)


?

 Esfiapasse até a ruptura, quando os dragões vivos.

(Destempo, desespaço)


FIBRA

Drenavam seus fluidos, não sua fúria.
(Terra do Não, s/d)

  

POE

A mulher que matou os gatos da vizinha nunca leu Edgar Allan Poe.
(Curitiba. Hoje, ontem?)


PESSANHA (I)

Releio Clepsidra. “Oh cores virtuais que jazeis subterrâneas”. Sem ópio ou cápsula para abolir a percepção do tempo. “Fulgurações azuis, vermelhas, de hemoptise”. Numa autópsia de mim, mapas aloprados que não conduzem a parte alguma.

(Aqui, 2011)


PESSANHA (II)

 “Abortos que pendeis as frontes de cidra”. Formigas saem de meu olho esquerdo. Penso num verso com esquifes e sequóias. A página em branco rasura minha completa falta de imaginação.  

(Ali, 2011)


AUTORRETRATO

Funambuslesco, funâmbulo, volantim, burlantim, volteador, aramista, equilibrista, fazedor de bicos.

(Toujours, all the time)



VISION OF PARADISE
Botas de cano longo. Meias de seda preta. Saia curta xadrez. Trança marrom jogada para um lado. A passante de Baudelaire, que nem olha para mim.
(MASP, s/d.)


VISION OF HELL

Botas de cano longo. Suspensórios. Cabeça raspada. Cruz de ferro tatuada no braço. Longo mergulho até espaço prisional.
(MASP, s/d.)
  

ARIADNE (I)

 Papila, vermelhidão, nunca de corvos, qual é a palavra? (lontra ou testículos), vontade cíclica de beber um chá com a Morte.

(Início da página, 1994)


ARIADNE (II)

Desfolhá-la até os maxilares, ao me transformar em Labirinto.


(Fim da página, 1984)

ARIADNE (III)

 Quem é a Fera?

(Fora da página, 1987)


PALAVRA (I)

Mercurial, palavra para um poema que nunca escrevi.

(Agora)

PALAVRA (II)

Já que não desprezo nenhuma palavra, encanta-me pergaminho onde estranhos cães da fala.

(Antes)


PALAVRA (III)

Homem atravessa a rua, veias escuras no antebraço, como letras confusas. Nenhuma palavra é possível, nem mesmo em sânscrito. Não há o que dizer: este é o tempo do corvo e da gargalhada.

(Durante)

DIFAMAÇÃO
Bombas de fósforo branco sobre Gaza – e a difamação dos mortos.
(Palestina, até agora)


JERUSALÉM
Al-Quds. Pequenos restaurantes, lojas de roupas, chá, tabaco. Não é permitido fotografar o espancamento.
(Ethos, 2007)


AL-NAKBA
Feras aladas relincham, relincham (oh filhas de Jerusalém!), enquanto se espalham cabeças.
(Ethos, 2007)


PAISAGEM

Flores amarelas. Sentado no banco do jardim, vejo a dança das três meninas e não escrevo nenhum poema.
(Num setembro qualquer)

METAFÍSICA

Ombro tatuado. Sapatos baixos, escuros. Pele muito clara. Leque madrilenho. Dança de passos breves, curtos, infinitos.
(Idem)


RUÍDOS

Flores primitivas, tetas são ruídos na brancura.
(Buenos Aires, s/d. )


ONDE

Onde o verde da palavra, onde o asco da palavra, caranguejo devora o espaço em branco da página.
(?)


LUTA DE CLASSES

“Semeei dragões, colhi pulgas”, salmodiava Marx (antevisão do deserto).

(Num cemitério londrino)

 

LIRISMO (I)

Noite reinventa estrela, estuque, escaravelho: permaneço vivo por uma questão de etiqueta. 
(São Paulo, a Horrível)


LIRISMO (II)


Só acredito na ferocidade do corpo, na música epidérmica, quando você me desnasce.
(Apócrifo de Restiff de la Bretonne)
  

REPLICANTE

 Anfibiamente — ou talvez lupino, retrátil, sombra, lacraia (...). Monstro que devora seus pedaços, como um espelho que comesse o próprio vidro.

(Refabulando Ridley Scott)

 

CRASH

Pernas mecânicas. Saia de couro preta. Um mapa da Lua desenhado nas costas, à maneira de cicatriz.
(Refabulando Cronenberg)


GOTHIC

Dama inglesa desoculta olhos nos mamilos. Toda paisagem é uma ficção?
(Refabulando Ken Russell)


DOGVILLE

A compaixão dispara balas calibre .45
(Refabulando Lars von Trier)


DIFRAÇÃO
Difração é o tempo em que viajamos entre palavras e coisas, memórias e ressentimentos. Nossos focinhos avançam para além dos retratos e nada encontramos além de fungos, fiapos, fêmures.
(Do Dicionário Pessoal de Bolso)


SOMBRA (I)

Mortos habitam meu poema. Defraudam a sombra. Esqueletos do nunca, mastigam cada palavra, depois lambem os ossos.
(Entre as pálpebras, cuándo, mi señora?)


SOMBRA (II)

Paul Celan veio aqui, fumou um cigarro, depois jogou-se no rio Sena.
(Paris, a cidade das luzes)


VOLUME, COR

Navega-me, hidrófoba, acende linhas e planos, com a paleta da língua; coxas expandem-se, laboriosas, quando tudo é pele, volume e cor, quando tudo é estrondo.
(Do Diário Sentimental)


AMIGAS

Mordiam-se nos mamilos, durante o banho; unhavam-se, lambiam-se, como gatas.
(Ao sul do Equador)


DISPERSÃO

Dispersão é o tempo em que répteis assistem a noticiários de TV enquanto garotos primitivos como as flores saqueiam supermercados e os incendeiam.
(Do Dicionário Pessoal de Bolso, II)

PROFECIA

Quando chegar a Mulher Toda Nua, com a sua pose criselefantina, o poeta dirá as coisas mais terríveis; tirará dos bolsos as cartas dos quatro naipes e exigirá um Sentido que não seja o da mera trama do acaso, mas ela rirá de sua face nervurada e o pisará com o mais puro desprezo.
(Do Livro das Profecias )


LA ISLA (I)

Pianos em toda parte. A ilha é tão musical. Lezama Lima contava os fragmentos da noite, enquanto a Minerva definia o mar. Que viva Cuba, hombre!

(Havana Sobrenatural)


LA ISLA (II)

Pianos em toda parte. Fatias de carne vermelha, garrafas de rum sobre a mesa, busto de Lênin contempla morenas colegiais que cavalgam bicicletas como valquírias.
(Havana Sobrenatural)


PALAVRA INCÓGNITA

I

Replicando cacos, desentranhado, com fome de lobo: indecifra-me, desatina-me, desvirtua-me, desacerta-me, escurece-me, ilumina-me.

II

Aracnídea, tantaliza-me.

(Do Pequeno Tratado de Intertextualidade)


NO RESTAURANTE AZUL

Autópsia de uma saudade: máscaras japonesas, delicadas taças de laca, olhos que se afastam, aéreos, até se tornarem palavras.
(03/12/2011)

ENIGMA

“É preciso me amar até os ossos.” Com a intensidade da cremalheira, com o silêncio de um enigma que nunca se completa.


(Delfos, era mítica)


DE UM MANUSCRITO APÓCRIFO DE CÉSAR VALLEJO

Você não acredita sinceramente no silêncio da madeira, na fala dos ocos. Impossível decifrar a violência do amor: teu olho, minha carne, relógios, pêlos púbicos, realidade feita de líquidos e alarme.

(Textos apócrifos de poetas célebres, 1974)


RIMBAUD, MON FRÈRE

Oisive jeunesse / A tout asservie / Par délicatesse / J’ai perdu ma vie. O comércio na Abissínia foi um esplendido disfarce para o retorno ao anonimato.

(Madame Désolation) 


Um comentário:

  1. Estes quadros-em-nunca são excelentes. Desfragmentação, a palavra quando se debruça sobre as fissuras de seu asco.

    Gosto muito.

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