sexta-feira, 24 de maio de 2013

PROGRAMAÇÃO DE JUNHO DA CURADORIA DE LITERATURA DO CENTRO CULTURAL SÃO PAULO





Escritura e filosofia na poética de Luís Serguilha 

Palestra do poeta e filósofo Chiu Yi Chi sobre a poesia do autor português contemporâneo Luís Serguilha, abordando procedimentos poéticos e interrelações entre poesia e filosofia.

Quarta-feira, dia 05/06/13, das 20h30 às 22h 
Praça Mário Chamie


Palestra de Luciana Garcia sobre Edward Said

A pesquisadora de cultura árabe Luciana Garcia apresentará uma palestra sobre o escritor palestino Edward Said, autor do livro Orientalismo.

Quinta-feira, dia 06/06/13, das 19h30 às 21h 
Sala de Debates


Sarau do Binho 

Sarau poético com leituras, apresentação musical e lançamento de livros de novos autores organizado pelos poetas Binho e Patrícia Romiti, que realizam atividades de divulgação cultural na periferia de São Paulo.

Domingo, dia 09/06/13, das 18h às 20h30 
Praça Mário Chamie


Poetas de Cabeceira: Gregório de Matos

Frederico Barbosa fará uma palestra sobre o poeta barroco baiano Gregório de Matos, comentando a biografia do autor, sua época, características estéticas e, sobretudo, a sua experiência pessoal como leitor da poesia de Gregório de Matos, um dos autores mais importantes da literatura brasileira do século XVII.

Quinta-feira, dia 13/06/13, das 19h30 às 21h 
Sala de Debates


Menu de Poesia

Recital dedicado à obra do poeta Gregório de Matos organizado por Maria Alice Vasconcelos.

Sexta-feira, dia 14/06/2013, das 20h30 às 22h 

Praça Mário Chamie


Poemas à Flor da Pele

Sarau poético realizado pelo grupo Poemas à Flor da Pele, com a participação de músicos e atores. Haverá também o lançamento de livros de poesia de novos autores.

Sexta-feira, dia 21/06/13, das 19h às 20h30  

Sala Adoniran Barbosa

UM POEMA DE MARCELI ANDRESA BECKER


DAS IRMÃS


I


1

o fogo.


erguer-se dos desfiladeiros,

o corpo —


como se as partituras regressassem ao mistério

das mãos.


à quiromancia dos chamados.


2


boca, comei este pão e tomai este vinho anti-horário.

girai as fabulosas torneiras da vascularidade,

a cabeça exorcista da pequena regan,


180 graus


de febre: este é o meu corpo e este é o meu sangue.



II

por vezes minhas unhas crescem

mais que o habitual.


lembram as unhas dos mortos:

inoxidáveis —


ganchos onde eu poderia pendurar


tuas vísceras,

(o peso),


levá-las de lá para cá,

(o amor),


como uma espécie de açougue

ambulante.


sabes, sou assim.


tenho sonhos em que me transformo

em lady zumbi.


*


para cada homem deus ofertou um pedaço fálico

de sua ausência.


tu és um deles: não perdoo.


III


regressam à mansão com lamparinas gravitando

em torno da cabeça.


eixo dos satélites do fogo, da suprema

incandescência,


elas: minhas irmãs mortas, gravitando em torno de seus nomes vazios.

como se fossem dizê-los.


*


a luz se despede do sangue.


as minhocas descem para aquele continente

onde o silêncio se avoluma


e produz ecos.


*


"perdoa-nos", suplicam.

  
IV
  
queimam-se as pontas

dos cabelos.


o dossel se abre como as manhãs ou um pássaro enorme.


*

 é ela, a irmã que ama.

a irmã louca.


em algum lugar da última palavra que dirá

o vento devasta omoplatas


e fêmures.


um par de rosas brota nas órbitas

de sua caveira.


*


conheço homens que podem suspendê-la da vida e da morte

com seus guindastes, o canto.


os lábios oníricos.


*
  
prendem-na às cordas furiosas.

giram as roldanas de seu corpo.


puxam-na para o alto, para o alto — eternamente.

  
V

fala-se no espírito de uma mendiga.


somente os sexos conseguem

psicografá-lo.


*


fala-se num vale onde os mortos sobem em pernas de pau

e atingem alturas inconcebíveis.


a mediunidade paira sobre suas cabeças:

o enxame de moscas.


*


é tão triste apodrecer.


*


o pão se entrega à sarna noturna.

a fome se entrega à fome.


*

 minhas irmãs não suportam se ver nuas.


VI


gestos da criança que ela não teve se espalham pelo jardim

como uma missa de cinzas.


juntam-se à neblina.


*

 às cinco e meia, precisamente, os sinos da melancolia

fulminam a torre.


(nas cordas, as mãos frias

da irmã.)
  
*
  
ouvem-se suas badaladas

por toda a terra.

  
VII

ninguém pelos corredores a partir das nove

(regras de funcionamento):


o piso em madeira não absorve o impacto do caminhar.


seria impossível dormir com as noviças indo

e voltando do banheiro,


seus chinelinhos tristes,

suas camisolas de chorar pétalas.

 *
  
a ventania abre uma segunda noite entre as folhas do hinário, na mesa da sala.

já nos respectivos quartos, elas abrem as pernas

e se tocam longamente.


 VIII

lounge, lira. fertilização ao modo psytrance. minhas irmãs se dopam com as três partes do segredo de fátima e gargalham.

(um abutre vesgo enrodilha as pick-ups.)

*

não se sabe exatamente quantas há.

você vê larvas de procedência rara saindo do umbigo do poema. lounge, lira,
três vezes autópsia:

psy, psy, psycadáver de fátima.

*

litros de loção e cera depilatória descem pelas ruas de ibiza.
elas se ajoelham e oram.


 IX

não levantarás

não estarás vivo

para ver


meu sexo descende da hélice anti-horária, a palavra de judas

o meu e o das irmãs


sei que um dia esses sexos girarão infinitamente

e nós subiremos com o peso


todo o peso do mundo

inclusive o teu

inclusive o teu


tuas pernas de coliseu elétrico

tua outra artilharia

de senhas


as 33 vozes que nasceram e se puseram como um sol

nos teus cabelos


este será o dia, amor

o único dia que terá havido sobre a terra


não levantarás

estarás morto

quinta-feira, 23 de maio de 2013

FRANÇOIS TRUFFAUT -- SEMPRE ATUAL



UMA VOZ DISSONANTE NO PANORAMA DA POESIA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA


Suplemento Literário de Minas Gerais publicou um dossiê sobre a nova poesia brasileira na forma de depoimentos em que poetas escrevem sobre poetas. Eu escolhi escrever sobre uma jovem autora que venho acompanhando há alguns anos e que sempre me surpreende pela ousadia e criatividade temática e formal: 


Marceli Andresa Becker é a voz mais interessante que surgiu na poesia brasileira nos últimos anos. Gaúcha, professora de filosofia e editora da revista eletrônica Mallarmargens, a autora vem publicando em seu blog, De ter de onde se ir (http://deterdeondeseir.blogspot/. com.br/), fragmentos de um poema longo, assimétrico e descontínuo chamado Das Irmãs, composição a meio fio entre o relato confessional e a mais pura abstração, em que sons e imagens formam uma estranha e sinestésica pintura semântica. O poema apresenta cenas de mutilação, de simbiose monstruosa, de deformação ou transfiguração intencional de corpos e objetos: é um relato sobre a sexualidade, mas não apenas isso, aborda também o problema da identidade (duplicada na irmã misteriosa), da efemeridade da vida (a morte como única realidade inescapável). Não há uma lógica linear discursiva no poema, mas uma ratio caleiodoscópica, combinatória, mais próxima talvez de Mallarmé e de Rimbaud do que de Herberto Helder. A maneira como os signos apresentam-se, aproximam-se, transformam-se, distanciam-se, obedece a um ritmo não apenas referencial, mas também plástico: nisso está a sua unidade. Admirável pelas sinestesias e metáforas como “a luz se despede do sangue. / as minhocas descem para aquele continente / onde o silêncio se avoluma / e produz ecos”, pelo brutalismo hellraiser de outras passagens -- “ganchos onde eu poderia pendurar / tuas vísceras, / (o peso), / levá-las de lá para cá, / (o amor), / como uma espécie de açougue / ambulante”, o poema incorpora ainda a ironia, o humor negro, o non sense e a teratologia, numa síntese de radical originalidade. A poesia de Marceli Andresa Becker é uma droga pesada, que nada tem a ver com milkshakes, jujubas ou patinhos de borracha. É uma vodka com alto teor alcoólico, para aqueles que amam a poesia como a mais radical experiência sensorial criada pela mente humana.

segunda-feira, 20 de maio de 2013

sábado, 18 de maio de 2013

DOIS POEMAS DE RAUL BOPP


IV

  
Esta é a floresta de hálito podre
parindo cobras.

Rios magros obrigados a trabalhar
A correnteza se arrepia
descascando as margens gosmentas

Raízes desdentadas mastigam lodo

Num estirão alagado
o charco engole a água do igarapé

Fede
O vento mudou de lugar

Um assobio assusta as árvores
Silêncio se machucou

Cai lá adiante um pedaço de pau seco:
Pum

Um berro atravessa a floresta
Chegam outras vozes

O rio se engasgou num barrento

Espia-me um sapo sapo
Aqui tem cheiro de gente
— Quem é você?

— Sou a Cobra Norato

Vou me amasiar com a filha da rainha Luzia.


VII 

Ai! Tenho pressa. Vou andando
Furo tabocas
Onde estou?

Árvores de galhos idiotas me espiam
Águas defuntas estão esperando a hora de apodrecer

Escorrego por um labirinto
com árvores prenhas sentadas no escuro
Raízes com fome mordem o chão

Carobas sujas levantam os vestidos
como cachos de lama pingando

Açaís pernaltas
movem as folhas lentas no ar pesado
como pernas de aranha espetadas num caule

Miritis abrem os grandes leques vagarosos

Sapo sozinho chama chuva

No fundo
uma lâmina rápida risca o mato
Trovãozinho roncou: já vou

Vem de longe
um trovão de voz grossa resmungando
Abre um pedaço do céu
Desabam paredões estrondando no escuro
Arvorezinhas sonham tempestades...

A sombra vai comendo devagarzinho uns horizontes inchados

(Poemas de Raul Bopp, do livro genial Cobra Norato)

segunda-feira, 13 de maio de 2013

DOIS POEMAS DE GUIMARÃES ROSA



AMARELO

Kuang-Ling,
pintor chinês de máscara de cera,
feliz de ópio, e ébrio de dragões,
molha o pincel na água de ocre
do Huang-Ho,
e, entre lanternas de seda,
pinta e repinta,
durante trinta anos,
sulfúreos e asiáticos girassóis,
na incrível porcelana
de um jarrão
dos Ming...

VERDE

Na lâmina azinhavrada
desta água estagnada,
entre painéis de musgo
e cortinas de avenca,
bolhas espumejam
como opalas ocas
num veio de turmalina:
é uma rã bailarina,
que ao se ver feia, toda ruguenta,
pulou, raivosa, quebrando o espelho,
e foi direta ao fundo,
reenfeitare, com mimo,
suas roupas de limo...

(Do livro Magma, de Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997)


domingo, 12 de maio de 2013

UM POEMA DE MURILO MENDES



JANDIRA

O mundo começava nos seios de Jandira.

Depois surgiram outras peças da criação:
Surgiram os cabelos para cobrir o corpo,
(Às vezes o braço esquerdo desaparecia no caos.)
E surgiram os olhos para vigiar o resto do corpo.
E surgiram sereias da garganta de Jandira:
O ar inteirinho ficou rodeado de sons
Mais palpáveis do que pássaros.
E as antenas das mãos de Jandira
Captavam objetos animados, inanimados.
Dominavam a rosa, o peixe, a máquina.
E os mortos acordavam nos caminhos visíveis 
                                               [ do ar
Quando Jandira penteava a cabeleira...

Depois o mundo desvendou-se completamente,
Foi-se levantando, armado de anúncios luminosos.
E Jandira apareceu inteiriça,
Da cabeça aos pés,
Todas as partes do mecanismo tinham
                                              [ importância.
E a moça apareceu com o cortejo do seu pai,
De sua mãe, de seus irmãos.
Eles é que obedeciam aos sinais de Jandira
Crescendo na vida em graça, beleza, violência. 
Os namorados passavam, cheiravam os seios de
                                              [ Jandira
E eram precipitados nas delícias do inferno.
Eles jogavam por causa de Jandira,
Deixavam noivas, esposas, mães, irmãs
Por causa de Jandira.
E Jandira não tinha pedido coisa alguma.
E vieram retratos no jornal
E apareceram cadáveres boiando por causa de
                                             [ Jandira.
Certos namorados viviam e morriam
Por causa de um detalhe de Jandira.
Um deles suicidou-se por causa da boca de Jandira
Outro, por causa de uma pinta na face esquerda
                                            [ de Jandira.

E seus cabelos cresciam furiosamente com a força
                                            [ das máquinas;
Não caía nem um fio,
Nem ela os aparava.
E sua boca era um disco vermelho
Tal qual um sol mirim.
Em roda do cheiro de Jandira
A família andava tonta.
As visitas tropeçavam nas conversações
Por causa de Jandira.
E um padre na missa
Esqueceu de fazer o sinal-da-cruz por causa de
                                           [ Jandira.

E Jandira se casou
E seu corpo inaugurou uma vida nova.
Apareceram ritmos que estavam de reserva.
Combinações de movimento entre as ancas e os
                                          [ seios.
À sombra do seu corpo nasceram quatro meninas
                                          [ que repetem 
As formas e os sestros de Jandira desde o
                                  [ princípio do tempo.

E o marido de Jandira
Morreu na epidemia de gripe espanhola.
E Jandira cobriu a sepultura com os cabelos dela.
Desde o terceiro dia o marido
Fez um grande esforço para ressuscitar:
Não se conforma, no quarto escuro onde está,
Que Jandira viva sozinha,
Que os seios, a cabeleira dela transtornem a
                                        [ cidade
E que ele fique ali à toa.

E as filhas de Jandira
Inda parecem mais velhas do que ela.
E Jandira não morre,    
Espera que os clarins do juízo final
Venham chamar seu corpo, 
Mas eles não vêm.
E mesmo que venham, o corpo de Jandira
Ressuscitará inda mais belo, mais ágil e
                                       [ transparente.

terça-feira, 7 de maio de 2013

ESQUELETOS DO NUNCA



“Este livro é construído por suas obsessões”
— Henri Meschonnic, a propósito do Eclesiastes


CONFISSÃO

No apodrecer de mim, caranguejos copulam em minhas órbitas.

(Mademoiselle Mélancolie)


LAFORGUE


"Praia de ossos", mamilo que traduz a lua; minúsculo esqueleto branco, Schopenhauer, música essa flor que saboreia minha língua.

(Quando?)


PROUST


Cabeleira leonina, multiplicação de prismas, tanto deserto, Renée, música nenhuma, contornos que se desfazem, gravuras de bonecas espanholas, Renée, o movimento das falanges, palavras secas na fotografia, desmembrando.

(Atibaia, após 1985)


AEROPORTO


Roubava revistas de jardinagem e culinária japonesa com a tranquilidade de um colecionador de térmitas.

(Congonhas, s/d)


JEUNESSE


Renée gostava de revólveres, conhaque, música de Bach, jogos de memória, lenços de seda indiana, livros de Jung.

(Sabiá, 1985)


INFÂNCIA


Caveira de macaco com rubis nas órbitas. Reprodução de mapa do século XVI. Estátuas dos sete sábios da China. Espátula de bronze na forma de demônio. Brinquedos de infância.

(Moema, s/d)
  

OBSCURO

O sempre fascínio por essa gargalhada, essa fome, essa lâmina, música que destroi a floresta dos peixes.

(Universidade, 2011)

MALLARMÉ
Ce Conte s’adresse à l’Intelligence du lecteur, qui met lês choses em scène, elle-même.
(Igitur, en se tombeau)

ÓBVIO


O desprezo ao óbvio de anúncios, epitáfios, crônicas, bilhetes, memorandos, maus poemas, sociologias, cartões-postais.
(Universidade, 2011)

DOMINGO
Vitrais; estátua africana; cúpula-cogumelo; o cheiro do cachimbo; voz monótona; fatias de alcatra; um pão sem gosto de nada; relógio de pulso; imobilidade; súbito, enormes tetas brancas, sob o decote verde.

(Casa do Quem?, 1972)

  
MÃE


Concerto para cordas, flores sintéticas, rosário nas mãos magras, caixão desce pelo fosso, no centro da plateia mal iluminada, até virar cinzas.

(Vila Alpina, 2005)
  

PAI

Pele fina como folha de papel. Grossas veias. Dedos amputados, barba por fazer. Um sorriso implorando pela desmemória.
(Hospital, 2005)


BILHETE

Madame La Mort passou por aqui.

(Allemonde, s/d.)


?

 Esfiapasse até a ruptura, quando os dragões vivos.

(Destempo, desespaço)


FIBRA

Drenavam seus fluidos, não sua fúria.
(Terra do Não, s/d)

  

POE

A mulher que matou os gatos da vizinha nunca leu Edgar Allan Poe.
(Curitiba. Hoje, ontem?)


PESSANHA (I)

Releio Clepsidra. “Oh cores virtuais que jazeis subterrâneas”. Sem ópio ou cápsula para abolir a percepção do tempo. “Fulgurações azuis, vermelhas, de hemoptise”. Numa autópsia de mim, mapas aloprados que não conduzem a parte alguma.

(Aqui, 2011)


PESSANHA (II)

 “Abortos que pendeis as frontes de cidra”. Formigas saem de meu olho esquerdo. Penso num verso com esquifes e sequóias. A página em branco rasura minha completa falta de imaginação.  

(Ali, 2011)


AUTORRETRATO

Funambuslesco, funâmbulo, volantim, burlantim, volteador, aramista, equilibrista, fazedor de bicos.

(Toujours, all the time)



VISION OF PARADISE
Botas de cano longo. Meias de seda preta. Saia curta xadrez. Trança marrom jogada para um lado. A passante de Baudelaire, que nem olha para mim.
(MASP, s/d.)


VISION OF HELL

Botas de cano longo. Suspensórios. Cabeça raspada. Cruz de ferro tatuada no braço. Longo mergulho até espaço prisional.
(MASP, s/d.)
  

ARIADNE (I)

 Papila, vermelhidão, nunca de corvos, qual é a palavra? (lontra ou testículos), vontade cíclica de beber um chá com a Morte.

(Início da página, 1994)


ARIADNE (II)

Desfolhá-la até os maxilares, ao me transformar em Labirinto.


(Fim da página, 1984)

ARIADNE (III)

 Quem é a Fera?

(Fora da página, 1987)


PALAVRA (I)

Mercurial, palavra para um poema que nunca escrevi.

(Agora)

PALAVRA (II)

Já que não desprezo nenhuma palavra, encanta-me pergaminho onde estranhos cães da fala.

(Antes)


PALAVRA (III)

Homem atravessa a rua, veias escuras no antebraço, como letras confusas. Nenhuma palavra é possível, nem mesmo em sânscrito. Não há o que dizer: este é o tempo do corvo e da gargalhada.

(Durante)

DIFAMAÇÃO
Bombas de fósforo branco sobre Gaza – e a difamação dos mortos.
(Palestina, até agora)


JERUSALÉM
Al-Quds. Pequenos restaurantes, lojas de roupas, chá, tabaco. Não é permitido fotografar o espancamento.
(Ethos, 2007)


AL-NAKBA
Feras aladas relincham, relincham (oh filhas de Jerusalém!), enquanto se espalham cabeças.
(Ethos, 2007)


PAISAGEM

Flores amarelas. Sentado no banco do jardim, vejo a dança das três meninas e não escrevo nenhum poema.
(Num setembro qualquer)

METAFÍSICA

Ombro tatuado. Sapatos baixos, escuros. Pele muito clara. Leque madrilenho. Dança de passos breves, curtos, infinitos.
(Idem)


RUÍDOS

Flores primitivas, tetas são ruídos na brancura.
(Buenos Aires, s/d. )


ONDE

Onde o verde da palavra, onde o asco da palavra, caranguejo devora o espaço em branco da página.
(?)


LUTA DE CLASSES

“Semeei dragões, colhi pulgas”, salmodiava Marx (antevisão do deserto).

(Num cemitério londrino)

 

LIRISMO (I)

Noite reinventa estrela, estuque, escaravelho: permaneço vivo por uma questão de etiqueta. 
(São Paulo, a Horrível)


LIRISMO (II)


Só acredito na ferocidade do corpo, na música epidérmica, quando você me desnasce.
(Apócrifo de Restiff de la Bretonne)
  

REPLICANTE

 Anfibiamente — ou talvez lupino, retrátil, sombra, lacraia (...). Monstro que devora seus pedaços, como um espelho que comesse o próprio vidro.

(Refabulando Ridley Scott)

 

CRASH

Pernas mecânicas. Saia de couro preta. Um mapa da Lua desenhado nas costas, à maneira de cicatriz.
(Refabulando Cronenberg)


GOTHIC

Dama inglesa desoculta olhos nos mamilos. Toda paisagem é uma ficção?
(Refabulando Ken Russell)


DOGVILLE

A compaixão dispara balas calibre .45
(Refabulando Lars von Trier)


DIFRAÇÃO
Difração é o tempo em que viajamos entre palavras e coisas, memórias e ressentimentos. Nossos focinhos avançam para além dos retratos e nada encontramos além de fungos, fiapos, fêmures.
(Do Dicionário Pessoal de Bolso)


SOMBRA (I)

Mortos habitam meu poema. Defraudam a sombra. Esqueletos do nunca, mastigam cada palavra, depois lambem os ossos.
(Entre as pálpebras, cuándo, mi señora?)


SOMBRA (II)

Paul Celan veio aqui, fumou um cigarro, depois jogou-se no rio Sena.
(Paris, a cidade das luzes)


VOLUME, COR

Navega-me, hidrófoba, acende linhas e planos, com a paleta da língua; coxas expandem-se, laboriosas, quando tudo é pele, volume e cor, quando tudo é estrondo.
(Do Diário Sentimental)


AMIGAS

Mordiam-se nos mamilos, durante o banho; unhavam-se, lambiam-se, como gatas.
(Ao sul do Equador)


DISPERSÃO

Dispersão é o tempo em que répteis assistem a noticiários de TV enquanto garotos primitivos como as flores saqueiam supermercados e os incendeiam.
(Do Dicionário Pessoal de Bolso, II)

PROFECIA

Quando chegar a Mulher Toda Nua, com a sua pose criselefantina, o poeta dirá as coisas mais terríveis; tirará dos bolsos as cartas dos quatro naipes e exigirá um Sentido que não seja o da mera trama do acaso, mas ela rirá de sua face nervurada e o pisará com o mais puro desprezo.
(Do Livro das Profecias )


LA ISLA (I)

Pianos em toda parte. A ilha é tão musical. Lezama Lima contava os fragmentos da noite, enquanto a Minerva definia o mar. Que viva Cuba, hombre!

(Havana Sobrenatural)


LA ISLA (II)

Pianos em toda parte. Fatias de carne vermelha, garrafas de rum sobre a mesa, busto de Lênin contempla morenas colegiais que cavalgam bicicletas como valquírias.
(Havana Sobrenatural)


PALAVRA INCÓGNITA

I

Replicando cacos, desentranhado, com fome de lobo: indecifra-me, desatina-me, desvirtua-me, desacerta-me, escurece-me, ilumina-me.

II

Aracnídea, tantaliza-me.

(Do Pequeno Tratado de Intertextualidade)


NO RESTAURANTE AZUL

Autópsia de uma saudade: máscaras japonesas, delicadas taças de laca, olhos que se afastam, aéreos, até se tornarem palavras.
(03/12/2011)

ENIGMA

“É preciso me amar até os ossos.” Com a intensidade da cremalheira, com o silêncio de um enigma que nunca se completa.


(Delfos, era mítica)


DE UM MANUSCRITO APÓCRIFO DE CÉSAR VALLEJO

Você não acredita sinceramente no silêncio da madeira, na fala dos ocos. Impossível decifrar a violência do amor: teu olho, minha carne, relógios, pêlos púbicos, realidade feita de líquidos e alarme.

(Textos apócrifos de poetas célebres, 1974)


RIMBAUD, MON FRÈRE

Oisive jeunesse / A tout asservie / Par délicatesse / J’ai perdu ma vie. O comércio na Abissínia foi um esplendido disfarce para o retorno ao anonimato.

(Madame Désolation)