“Este livro é
construído por suas obsessões”
— Henri Meschonnic,
a propósito do Eclesiastes
CONFISSÃO
No apodrecer de mim, caranguejos copulam em minhas órbitas.
(Mademoiselle Mélancolie)
LAFORGUE
"Praia de ossos", mamilo que traduz a lua; minúsculo esqueleto
branco, Schopenhauer, música essa flor que saboreia minha língua.
(Quando?)
PROUST
Cabeleira leonina, multiplicação de prismas, tanto deserto, Renée, música
nenhuma, contornos que se desfazem, gravuras de bonecas espanholas, Renée, o
movimento das falanges, palavras secas na fotografia, desmembrando.
(Atibaia,
após 1985)
AEROPORTO
Roubava revistas de jardinagem e culinária japonesa com a tranquilidade de um
colecionador de térmitas.
(Congonhas,
s/d)
JEUNESSE
Renée gostava de revólveres, conhaque, música de Bach, jogos de memória, lenços
de seda indiana, livros de Jung.
(Sabiá,
1985)
INFÂNCIA
Caveira de macaco
com rubis nas órbitas. Reprodução de mapa do século XVI. Estátuas dos sete sábios
da China. Espátula de bronze na forma de demônio. Brinquedos de infância.
(Moema,
s/d)
OBSCURO
O sempre fascínio por essa gargalhada, essa fome, essa lâmina,
música que destroi a floresta dos peixes.
(Universidade,
2011)
MALLARMÉ
Ce Conte s’adresse à
l’Intelligence du lecteur, qui met lês choses em scène, elle-même.
(Igitur, en se tombeau)
ÓBVIO
O desprezo ao óbvio de anúncios, epitáfios, crônicas, bilhetes, memorandos,
maus poemas, sociologias, cartões-postais.
(Universidade, 2011)
DOMINGO
Vitrais; estátua africana; cúpula-cogumelo; o cheiro do
cachimbo; voz monótona; fatias de alcatra; um pão sem gosto de nada; relógio de
pulso; imobilidade; súbito, enormes tetas brancas, sob o decote verde.
(Casa
do Quem?, 1972)
MÃE
Concerto para cordas, flores sintéticas, rosário nas mãos magras, caixão desce
pelo fosso, no centro da plateia mal iluminada, até virar cinzas.
(Vila
Alpina, 2005)
PAI
Pele fina como
folha de papel. Grossas veias. Dedos amputados, barba por fazer. Um sorriso
implorando pela desmemória.
(Hospital, 2005)
BILHETE
Madame La
Mort passou por aqui.
(Allemonde, s/d.)
?
Esfiapasse até a ruptura, quando
os dragões vivos.
(Destempo,
desespaço)
FIBRA
Drenavam seus
fluidos, não sua fúria.
(Terra do Não,
s/d)
POE
A mulher que matou os gatos da vizinha nunca leu Edgar Allan Poe.
(Curitiba. Hoje,
ontem?)
PESSANHA (I)
Releio Clepsidra. “Oh
cores virtuais que jazeis subterrâneas”. Sem ópio ou cápsula para abolir a
percepção do tempo. “Fulgurações azuis, vermelhas, de hemoptise”. Numa
autópsia de mim, mapas aloprados que não conduzem a parte alguma.
(Aqui, 2011)
PESSANHA (II)
“Abortos que pendeis as frontes de
cidra”. Formigas saem de meu olho esquerdo. Penso num verso com esquifes e sequóias. A página em branco rasura minha completa falta de
imaginação.
(Ali, 2011)
AUTORRETRATO
Funambuslesco,
funâmbulo, volantim, burlantim, volteador, aramista, equilibrista, fazedor de
bicos.
(Toujours,
all the time)
VISION OF PARADISE
Botas de cano
longo. Meias de seda preta. Saia curta xadrez. Trança marrom jogada para um
lado. A passante de Baudelaire, que nem olha para mim.
(MASP, s/d.)
VISION
OF HELL
Botas de cano
longo. Suspensórios. Cabeça raspada. Cruz de ferro tatuada no braço. Longo
mergulho até espaço prisional.
(MASP, s/d.)
ARIADNE (I)
Papila, vermelhidão, nunca de corvos, qual é a palavra? (lontra ou
testículos), vontade cíclica de beber um chá com a Morte.
(Início da
página, 1994)
ARIADNE (II)
Desfolhá-la até os maxilares, ao
me transformar em Labirinto.
(Fim da página,
1984)
ARIADNE (III)
Quem é a Fera?
(Fora da página,
1987)
PALAVRA (I)
Mercurial, palavra para um poema
que nunca escrevi.
(Agora)
PALAVRA (II)
Já
que não desprezo nenhuma palavra, encanta-me pergaminho onde estranhos cães da
fala.
(Antes)
PALAVRA (III)
Homem atravessa a rua, veias escuras no antebraço,
como letras confusas. Nenhuma palavra é possível, nem mesmo em sânscrito. Não há o
que dizer: este é o tempo do corvo e da gargalhada.
(Durante)
DIFAMAÇÃO
Bombas de fósforo
branco sobre Gaza – e a difamação dos mortos.
(Palestina, até
agora)
JERUSALÉM
Al-Quds. Pequenos restaurantes, lojas de roupas, chá, tabaco. Não é
permitido fotografar o espancamento.
(Ethos, 2007)
AL-NAKBA
Feras aladas
relincham, relincham (oh filhas de Jerusalém!), enquanto se espalham cabeças.
(Ethos, 2007)
PAISAGEM
Flores amarelas. Sentado no banco do jardim, vejo a dança das três
meninas e não escrevo nenhum poema.
(Num setembro
qualquer)
METAFÍSICA
Ombro tatuado. Sapatos baixos,
escuros. Pele muito clara. Leque madrilenho. Dança de passos breves, curtos,
infinitos.
(Idem)
RUÍDOS
Flores primitivas, tetas são
ruídos na brancura.
(Buenos Aires,
s/d. )
ONDE
Onde o verde da palavra, onde o
asco da palavra, caranguejo devora o espaço em branco da página.
(?)
LUTA
DE CLASSES
“Semeei dragões, colhi pulgas”, salmodiava Marx (antevisão do
deserto).
(Num cemitério londrino)
LIRISMO (I)
Noite reinventa estrela, estuque, escaravelho: permaneço vivo por uma
questão de etiqueta.
(São Paulo, a
Horrível)
LIRISMO (II)
Só acredito na ferocidade do corpo, na
música epidérmica, quando você me desnasce.
(Apócrifo de
Restiff de la Bretonne)
REPLICANTE
Anfibiamente — ou talvez lupino,
retrátil, sombra, lacraia (...). Monstro que devora seus pedaços, como um
espelho que comesse o próprio vidro.
(Refabulando Ridley Scott)
CRASH
Pernas mecânicas. Saia de couro
preta. Um mapa da Lua desenhado nas costas, à maneira de cicatriz.
(Refabulando
Cronenberg)
GOTHIC
Dama inglesa desoculta olhos nos mamilos. Toda paisagem é uma ficção?
(Refabulando Ken Russell)
DOGVILLE
A compaixão dispara balas calibre .45
(Refabulando
Lars von Trier)
DIFRAÇÃO
Difração é o tempo em que viajamos entre palavras e coisas, memórias e
ressentimentos. Nossos focinhos avançam para além dos retratos e nada
encontramos além de fungos, fiapos, fêmures.
(Do Dicionário Pessoal de Bolso)
SOMBRA (I)
Mortos habitam meu poema. Defraudam a sombra. Esqueletos do nunca,
mastigam cada palavra, depois lambem os ossos.
(Entre as pálpebras, cuándo, mi señora?)
SOMBRA (II)
Paul Celan veio aqui, fumou um cigarro, depois jogou-se no rio Sena.
(Paris, a cidade
das luzes)
VOLUME, COR
Navega-me, hidrófoba, acende linhas e planos, com a paleta da língua;
coxas expandem-se, laboriosas, quando tudo é pele, volume e cor, quando tudo é
estrondo.
(Do Diário Sentimental)
AMIGAS
Mordiam-se nos mamilos, durante o banho; unhavam-se, lambiam-se, como
gatas.
(Ao sul do
Equador)
DISPERSÃO
Dispersão é o tempo em que répteis assistem a noticiários de TV
enquanto garotos primitivos como as flores saqueiam supermercados e os
incendeiam.
(Do Dicionário Pessoal de Bolso, II)
PROFECIA
Quando chegar a Mulher Toda Nua, com a sua pose criselefantina, o poeta
dirá as coisas mais terríveis; tirará dos bolsos as cartas dos quatro naipes e
exigirá um Sentido que não seja o da mera trama do acaso, mas ela rirá de sua
face nervurada e o pisará com o mais puro desprezo.
(Do Livro das Profecias )
LA ISLA (I)
Pianos em toda parte. A ilha é tão musical. Lezama Lima contava os
fragmentos da noite, enquanto a Minerva definia o mar. Que viva Cuba, hombre!
(Havana Sobrenatural)
LA
ISLA (II)
Pianos em toda parte. Fatias de carne vermelha, garrafas de rum sobre a
mesa, busto de Lênin contempla morenas colegiais que cavalgam bicicletas como
valquírias.
(Havana
Sobrenatural)
PALAVRA INCÓGNITA
I
Replicando cacos, desentranhado, com fome de lobo: indecifra-me,
desatina-me, desvirtua-me, desacerta-me, escurece-me, ilumina-me.
II
Aracnídea, tantaliza-me.
(Do Pequeno
Tratado de Intertextualidade)
NO RESTAURANTE AZUL
Autópsia de uma saudade: máscaras
japonesas, delicadas taças de laca, olhos que se afastam, aéreos, até se
tornarem palavras.
(03/12/2011)
ENIGMA
“É preciso me
amar até os ossos.” Com a intensidade da cremalheira, com o silêncio de um
enigma que nunca se completa.
(Delfos, era
mítica)
DE UM MANUSCRITO APÓCRIFO DE CÉSAR VALLEJO
Você não
acredita sinceramente no silêncio da madeira, na fala dos ocos. Impossível
decifrar a violência do amor: teu olho, minha carne, relógios, pêlos púbicos,
realidade feita de líquidos e alarme.
(Textos
apócrifos de poetas célebres, 1974)
RIMBAUD,
MON FRÈRE
Oisive jeunesse / A tout
asservie / Par délicatesse / J’ai perdu ma vie. O comércio na Abissínia foi
um esplendido disfarce para o retorno ao anonimato.
(Madame Désolation)