Fernando Pessoa, nos Apontamentos para uma estética não-aristotélica, diz: “Toda arte parte da sensibilidade, e nela realmente se baseia” (PESSOA, 1976: 92). Porém, enquanto o artista aristotélico “subordina a sua sensibilidade à sua inteligência, para poder tornar essa sensibilidade humana e universal, ou seja, para a poder tornar sensível e agradável, e assim poder captar os outros”, o artista não-aristotélico (e podemos pensar aqui em Camilo Pessanha, no próprio Pessoa, em Sá-Carneiro e, claro, em Helder) “subordina tudo à sua sensibilidade”, tornando-a “abstrata como a inteligência (sem deixar de ser sensibilidade)” (idem). O texto, datado de 1907 e assinado por Álvaro de Campos, aponta ainda outra importante ruptura com a estética aristotélica: enquanto nesta há uma exigência de que “o indivíduo generalize ou humanize a sua sensibilidade, necessariamente particular e pessoal”, na teoria proposta por Pessoa / Álvaro de Campos “o percurso indicado é inverso: é o geral que deve ser particularizado, o humano que se deve pessoalizar, o ‘exterior’ que se deve tornar ‘interior’ ” (idem, 90). A invenção dos heterônimos por Pessoa é uma leitura pessoal do mundo e da tradição literária, ao mesmo tempo que constitui uma intervenção crítica, mas o autor de Mensagem ainda se viu comprometido com a ideia aristotélica da verossimilhança, e assim cria, para as suas muitas vozes, nomes, biografias, datas e dicções particulares; Ricardo Reis, Álvaro de Campos, Alberto Caeiro, são personagens dramáticos, querem nos convencer de sua existência. Herberto Helder, ao contrário, embora escreva em primeira pessoa, em tom conversacional, não nomeia a si mesmo, não apresenta uma cronologia, não descreve ações reconhecíveis, não conta uma história, de si ou do mundo; ele expressa a sua subjetividade na construção da linguagem, ela própria um corpo feito de palavras. “Se o poema emerge do corpo e é o próprio corpo, seremos levados a considerar que a criação é algo da ordem de uma experiência sensível, que se produz a partir da transformação daquilo ou daquele que lhe dá origem” (LEAL, 2009). Herberto Helder é um poeta fingidor, mas o seu teatro é interno, abstrato, e ele não deseja convencer o leitor da existência de uma realidade linear da qual ele próprio duvida. O eu lírico que aparece em seus poemas é um narrador cético, que faz do próprio poema a sua biografia, artesanato e lugar imaginativo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
DAL FARRA, Maria Lúcia. A alquimia da linguagem: leitura da cosmogonia poética de Herberto Helder. Lisboa: Imprensa Nacional, 1986.
GUEDES, Maria Estela. A obra em rubro. São Paulo: Escrituras, 2011.
HELDER, Herberto. O Corpo O Luxo A Obra. São Paulo: Ed. Iluminuras, 2000.
HELDER, Herberto. Ou o poema contínuo. São Paulo: Perspectiva, 2006.
HELDER, Herberto. Os passos em volta. Rio de Janeiro: Azougue Edirorial, 2004.
HOLLANDA, Aurélio Buarque de. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
JACOTO, Lilian, e MAFFEI, Luís. Soldado aos laços das constelações: Herberto Helder. Bauru: Lumme Editor, 2011.
JÚDICE, Nuno. As máscaras do poema. Lisboa: Arion, 1998.
LAUTRÉAMONT. Obras Completas (trad. Claudio Willer). São Paulo: Ed. Iluminuras, 2ª. ed., 2005.
MARINHO, Maria de Fátima: Herberto Helder, a obra e o homem. Lisboa: Arcádia, 1982.
PERLOFF, Marjorie. O momento futurista. São Paulo: Edusp, 1993.
PIVA, Roberto. Um estrangeiro na legião. São Paulo: Globo, 2005.
Na internet:
BORGES, Contador. Herberto Helder: a razão da loucura. http://www.revistazunai.com/ensaios/contador_borges_herberto_helder.htm
DANIEL, Claudio. Apontamentos de leitura: Helder e Celan, artigo publicado na revista eletrônica Zunái, http://www.revistazunai.com/ensaios/claudio_daniel_apontamentos.htm
LEAL, Izabela. Corpo, sangue e violência na poesia de Herberto Helder. http://www.revistazunai.com/ensaios/izabela_leal_herberto_helder.htm
TRAVASSOS, Jacineide. A máquina de emaranhar paisagens: João Cabral, Herberto Helder e Mondrian, artigo publicado na revista eletrônica Zunái, na página http://www.revistazunai.com/ensaios/jacineide_travassos_maquina_de_emaranhar_paisagens.htm
WILLER, Claudio. Herberto Helder e a grande poesia portuguesa contemporânea, artigo publicado na revista eletrônica Agulha em 2000, http://www.jornaldepoesia.jor.br/ag9helder.htm
WILLER, Claudio. Conversa sobre Herberto Helder, depoimento publicado no site Triplo V em 2009, http://www.triplov.com/willer/2009/HH.html.
WILLER, Claudio. A obra em aberto: Herberto Helder por Maria Estela Guedes, artigo publicado no site Cronópios em 18/02/2011, http://www.cronopios.com.br/site/ensaios.asp?id=4907
Prezado prof. Claudio Daniel]
ResponderExcluirSeus alunos irão vibar com esse texto. Passe-nos na íntegra assim que lhe for permitido.
Abçs
Celso, tudo bem? Grato pela leitura! Vou revisar o texto e depois enviarei a vocês, ok?
ResponderExcluirHá braços,
Claudio
Incrível, um poeta que a primeira vista não dei muita atenção, equivocadamente, agora parece realmente interessante de ser (re)lido.
ResponderExcluirPrezado Claudio, qual dos livros é mais apropriado para começar a ler H.H.: O Corpo o luxo a obra ou OU o Poema Contínuo ?
O último aparentemente inclui o primeiro, certo?
Abc's
Gabriel, "O Corpo O Luxo A Obra" é uma antologia poética de Helder, a primeira que saiu no Brasil, tem menos de 200 páginas. Já Ou o Poema Contínuo é uma reunião mais extensa, com mais de 500 páginas, e inclui o poema O Lugar na íntegra. Se puder, adquira a obra poética completa do autor português que saiu em Lisboa, Ofício Cantante. Abraço, Cld.
ResponderExcluirValeu Claudio!
ResponderExcluiro cessar da dialética dos opostos
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