segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

UM POEMA DE OCTAVIO PAZ

EXAME NOTURNO

Toda noite lutou com a noite,
nem vivo nem morto,
aos poucos penetrando em sua substância,
enchendo-se até o limite de si mesmo.

Primeiro foi estender-se no obscuro,
fazer-se imenso no imenso,
repousar no centro insondável do repouso.
Fluía o tempo, fluía seu ser,
fluíam numa só corrente indivisível.
Com pancadas sonolentas a água caía e se levantava,
precipitavam-se alma e corpo, pensamento e ossos:
a redenção suplicava ao tempo,
suplicava erguer-se, suplicava ver-se,
volta transparente monumento de sua queda?
Rio acima, onde o informe começa,
a água se desmoronava com os olhos fechados.
Retornava o tempo à sua origem, brotando-se de si mesmo.

Além, do outro lado, um fulgor fez sinais.
Abriu os olhos, encontrou-se à margem:
Nem vivo nem morto
Ao lado de seu corpo abandonado.
Começou o assédio dos signos,
a escritura de sangue da estrela no céu,
as ondas concêntricas que uma frase levanta,
ao cair e cair na consciência.
Ardeu sua fronte coberta de inscrições,
santos e sinais súbitos abrirão labirintos e espessuras,
mudarão reflexos tácitos nos quatro pontos cardeais.
Seu próprio pensamento, entre os obeliscos derrubado,
foi pedra negra tatuada pelo raio.
Mas o sonho não veio.
Cega batalha de ilusões,
Obscuro corpo a corpo com o tempo sem corpo!
Caiu de rosto em rosto,
de ano em ano,
até o primeiro vagido:
húmus de vida,
terra que se desterra,
corpo que se desnace,
vivo para a morte,
morto para a vida.

(Nesta hora há mediadores em todas as partes,
há pontes invisíveis entre o dormir e o velar.
Os adormecidos mordem o ramo de sua própria fadiga,
o ramo solar da ressurreição cotidiana;
os desvelados talham o diamante que há de vencer a noite;
mesmo os que estão sozinhos levam em si sua parelha encarniçada,
em cada espelho jaz um duplo,
um adversário que nos reflete e nos abisma;
o fogo precioso oculto sob a capa de seda negra,
o vampiro ladrão dobra a esquina e desaparece, rápido,
roubado por sua própria rapidez;
com o peso de seu ato nas costas
se precipita em seu dormir sem sonho o assassino,
já para sempre, sem o outro;
abandonados à corrente todo-poderosa,
flor dupla que brota de um talo único,
os enamorados fecham os olhos no alto de um beijo:
a noite se abre para eles e devolve-lhes o perdido,
o vinho negro na copa feita de uma única gota de sol,
a visão dupla, a mariposa mira por um instante no centro do céu,
na asa direita um grão de luz e à esquerda um de sombra.
Repousa a cidade nos ombros do obreiro adormecido,
a semente do canto se abre na fronte do poeta.)

O escorpião ermitão na sombra se aguça.
Noite no interdito,
instante que balbucia e não acaba de dizer o que quer!
Amanhã sairá o sol,
o astro se inunda na sua luz,
se afoga em sua cólera rija?
Como dizer bons dias à vida?
Não perguntes mais,
não há nada que dizer, tampouco nada que calar.
O pensamento brilha, se apaga, retorna,
idêntico a si mesmo se devora e engendra, repete-se
nem vivo nem morto,
sempre em torno ao olho fixo que o pensa.

Voltou a seu corpo, meteu-se me si mesmo.
E o sol tocou a fronte do insone,
Brusca vitória de um espelho que já não reflete nenhuma imagem.

Tradução: Winner Chiu

Leia mais poemas de Octavio Paz na próxima edição da Zunái.

3 comentários:

  1. “...um florvalhar de lótus
    no céu sucumbido cintila
    escarpas de guelras...”

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  2. “...filigranas pétalas de mármore
    vertem em pedras filiformes
    meandros de metal...”

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  3. na folhagem do céu




    “ un lenguaje que corte el resuello “ –

    octávi(d)o de paz em seu “ blanco “
    - transblanco de haroldo -
    conduz à meditação:

    uma lâmina desventra
    - úmida de aço -
    a crença

    de que relâmpagos


    d
    e
    s
    c
    e
    m


    seguidos de tambores -

    o trovão
    murmúrio de fonte
    desarranja os céus ?!

    por ali um odisseu
    suscitaria o silêncio:

    “ a invenção do corpo “

    o olhar invertebrado
    sob um céu
    cercado de arcanos

    uma chuva de crisântemos
    por todos os lados
    reticulam a pálpebra
    de um fundo amarelo
    de topázio pálido

    a vida é perversa -

    indecifrável
    a vida
    in(di)visível

    uma linguagem
    que corte o fôlego

    - o orvalho do desfolhado olho -

    secá-las - as folhas -
    e pisá-las sob os pés
    e ouvir o ruído de uma fogueira

    ( arder as palavras solitárias )

    " la hora es transparente ":

    a vida é invisível
    desnuda constelação
    de temporais de vidro...

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