segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

ENTREVISTA DE CLAUDIO DANIEL PARA GABRIELA FERRO



 















  
Gabriela: Haroldo de Campos inicia suas reflexões sobre um possível barroco moderno em 1955, no ensaio “Obra de arte aberta”, produzido ainda no contexto das reflexões do grupo Noigandres sobre a  vanguarda concreta. A partir dessa data, cada vez mais a influência dos traços barrocos na produção literária na América Latina (e, sobretudo, no Brasil) passa a ser objeto de reflexão do autor em seu pensamento teórico e também em sua poesia, culminando, neste caso com a publicação da obra Galáxias em 1984. Néstor Perlongher imigra para o Brasil em 1981 e só aos poucos conquista espaço tanto na mídia como no meio acadêmico, tendo alguma visibilidade no Brasil mais como teórico do que como poeta. Ao longo da década de 80 colabora com alguns de seus ensaios na imprensa, como o jornal paulistano Folha de São Paulo. Em 1991 organiza o livro Caribe transplatino tem seu em seu prefácio o seu mais completo ensaio sobre o neobarroco. Desta publicação até Jardim de Camaleões, em 2004 há pouco mais de uma década. Dentro desse contexto que abarca a segunda metade do século XX e o início do XXI, como se pode dimensionar a presença e os desdobramentos de um neobarroco no Brasil?

Claudio: O neobarroco, em minha opinião, nunca foi uma escola, nem um movimento literário com procedimentos estéticos normativos, mas uma maneira de ver o mundo, especialmente a realidade latino-americana, em sua dimensão plural, de miscigenação de culturas – europeia, negra e indígena, sagrada e profana, erudita e popular, arcaica e moderna, ocidental e oriental. Talvez por isso mesmo tenha entre suas referências o barroco colonial, “mestiço” de Aleijadinho, Gregório de Matos, Kondori, Sóror Juana Inés de La Cruz, por toda a sua multiplicidade de vias interpretativas, dada pelo excesso – um excesso contraditório, conflituoso, não mero acúmulo de tons.  No Brasil, essa visada já está presente nos manifestos de Oswald de Andrade, da década de 1920 – o Manifesto Pau-Brasil e o Manifesto Antropófago --, no Macunaíma de Mário de Andrade, no Cobra Norato de Raul Bopp, na pintura de Tarsila do Amaral. Na década de 1960, a Tropicália incorporou essa mesma visão de mundo, pelo diálogo com a Antropofagia e o Concretismo, mas apenas a partir da década de 1990, justamente a partir da publicação, no Brasil, da antologia Caribe transplatino, que o neobarroco começa a ser discutido no Brasil como conceito, e a influenciar, de modo consciente, a produção de alguns poetas: Josely Vianna Baptista, Horácio Costa, Wilson Bueno, para citar poucos nomes – sem esquecer do barroquismo já presente no Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, no Auto do possesso e nas Galáxias, de Haroldo de Campos, e no Catatau de Leminski. Entre os poetas mais jovens, que começaram a publicar de 2000 para cá, eu citaria Simone Homem de Mello, Eduardo Jorge e Adriana Zapparoli, que desenvolvem obras pessoais com dicção e imaginário próprios, mas que compartilham a miscigenação, o espírito lúdico, a pluralidade de referências e rotas interpretativas do neobarroco.

Gabriela: Sabemos que o neobarroco não consiste em um movimento, assumindo as formas mais diversas em época e locais diferentes. Mesmo assim, teríamos como apontar um marco pelo menos mais significativo para o neobarroco no Brasil (um texto teórico, uma obra, por exemplo?)

Acredito que após o barroco colonial, em que se destacaram Gregório de Matos – até hoje polêmico, ao menos na academia – e o padre Antônio Vieira, há cintilações barroquizantes em nosso Romantismo – especialmente no Guesa Errante, de Sousândrade, mas também em Iracema, de José de Alencar --, na dicção enigmática de autores simbolistas de linha mallarmeana, como Pedro Kilkerry, e do século XX para cá, em obras como Os sertões, de Euclides da Cunha e as obras mais radicais de nosso modernismo, especialmente Macunaíma, de Mário de Andrade, Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade, Cobra Norato, de Raul Bopp, e já na metade do século passado, na literatura de Guimarães Rosa. Haroldo de Campos, no Auto do possesso, obra de 1949, já praticava a mistura de referências de diversas culturas, ocidentais e orientais – especialmente dos mitos bíblicos, helênicos, egípcios, sumérios, persas, hindus e outros. O que diferencia o neobarroco brasileiro, talvez – que nunca foi um grupo literário articulado em torno de uma revista ou manifesto, mas estrelas solitárias dispersas no espaço-tempo – talvez seja o vínculo com a nossa realidade histórica, a reflexão crítica sobre nossas origens, nossa condição até há pouco tempo semicolonial e agrária, a beleza e a crueldade de nossa saga, onde epifania e anti-epifania são processos simultâneos.

Claudio: Após quase onze anos da publicação de Jardim de camaleões, seria possível fazer um balanço do neobarroco dentro da poesia contemporânea brasileira?

É uma linha de criação marginal, excluída de antologias e reflexões sobre a poesia brasileira contemporânea, com poucas exceções. Isto acontece devido a um fenômeno (temporário) de hegemonia política exercida por uma corrente crítico-criativa que privilegia a releitura redutora do Modernismo, que valoriza seus aspectos mais superficiais – linguagem coloquial, temática cotidiana, influência do jornal diário --, excluindo a radicalidade inventiva de Mário, Oswald e Bopp.  O neobarroco (assim como as vanguardas de modo geral) é colocado em segundo plano. Essa hegemonia acontece sobretudo na universidade e na mídia, com os inevitáveis corolários em bolsas, viagens e premiações literárias, mas entre os poetas e leitores sérios de poesia a situação muda. Quem compreende a poesia como elaboração radical da linguagem, para além da mera referencialidade óbvia,  tem em alta consideração as obras mais difíceis, densas e enigmáticas de Haroldo de Campos, Paulo Leminski, Wilson Bueno, Horácio Costa, Josely Vianna Baptista. O tempo, como diz o Frederico Barbosa, é o melhor dos críticos literários e ele saberá filtrar aquilo que tem qualidade e aquilo que é apenas marketing.

Gabriela: Pensando mais especificamente nos dois autores em estudo, qual seria a importância de Haroldo de Campos para o neobarroco brasileiro? E a de Néstor Perlongher?

Claudio: Haroldo de Campos não apenas formulou os conceitos de “obra aberta” e de “barroco moderno” antes de Umberto Eco e Severo Sarduy como também realizou uma escrita barroquizante desde o seu primeiro livro publicado, O auto do possesso, em que mescla referências culturais e mitológicas de diferentes culturas, do Ocidente e do Oriente, sagradas e profanas, cultas e populares. É quase um manifesto do neobarroco. Essa visada está presente, inclusive, no conjunto da obra do poeta, e não apenas em Galáxias, que é talvez a sua obra mais radical, por superar as fronteiras entre prosa e poesia e o próprio conceito tradicional de “livro”. É uma obra só comparável ao Finnegans Wake de Joyce, com a qual há evidentes afinidades, embora sejam realizações distintas – no livro de Joyce há uma fábula central recheada de minifábulas, enquanto Haroldo prescinde da trama ficcional, cada página do livro é autônoma e não existe uma sequência linear de leitura, as páginas podem ser lidas ao acaso.  O pensamento barroco é central na atividade crítica e ensaística do poeta, desde a antologia sincrônica que acompanha o artigo Uma arquitextura do barroco até os ensaios teóricos sobre a tradução (em particular no livro Deus e o Diabo no Fausto de Goethe) e a defesa vigorosa de Gregório de Matos contra certa miopia universitária. Nestor Perlongher é menos lido hoje do que há vinte anos, o que é uma lástima. Acho que seria muito importante a reedição de seu livro Lamê – antologia organizada e traduzida por Josely Vianna Baptista e publicada há bastante tempo pela Iluminuras.

Nenhum comentário:

Postar um comentário