Gabriela: Haroldo de Campos inicia suas reflexões sobre um possível barroco
moderno em 1955, no ensaio “Obra de arte aberta”, produzido ainda no contexto
das reflexões do grupo Noigandres sobre a
vanguarda concreta. A partir dessa data, cada vez mais a influência dos
traços barrocos na produção literária na América Latina (e, sobretudo, no
Brasil) passa a ser objeto de reflexão do autor em seu pensamento teórico e
também em sua poesia, culminando, neste caso com a publicação da obra Galáxias
em 1984. Néstor Perlongher imigra para o Brasil em 1981 e só aos poucos
conquista espaço tanto na mídia como no meio acadêmico, tendo alguma
visibilidade no Brasil mais como teórico do que como poeta. Ao longo da década
de 80 colabora com alguns de seus ensaios na imprensa, como o jornal paulistano
Folha de São Paulo. Em 1991 organiza o livro Caribe transplatino tem seu em seu
prefácio o seu mais completo ensaio sobre o neobarroco. Desta publicação até
Jardim de Camaleões, em 2004 há pouco mais de uma década. Dentro desse
contexto que abarca a segunda metade do século XX e o início do XXI, como se
pode dimensionar a presença e os desdobramentos de um neobarroco no Brasil?
Claudio: O neobarroco, em minha opinião,
nunca foi uma escola, nem um movimento literário com procedimentos estéticos
normativos, mas uma maneira de ver o mundo, especialmente a realidade
latino-americana, em sua dimensão plural, de miscigenação de culturas –
europeia, negra e indígena, sagrada e profana, erudita e popular, arcaica e
moderna, ocidental e oriental. Talvez por isso mesmo tenha entre suas
referências o barroco colonial, “mestiço” de Aleijadinho, Gregório de Matos, Kondori,
Sóror Juana Inés de La Cruz,
por toda a sua multiplicidade de vias interpretativas, dada pelo excesso – um
excesso contraditório, conflituoso, não mero acúmulo de tons. No Brasil, essa visada já está presente nos
manifestos de Oswald de Andrade, da década de 1920 – o Manifesto Pau-Brasil e o Manifesto
Antropófago --, no Macunaíma de
Mário de Andrade, no Cobra Norato de
Raul Bopp, na pintura de Tarsila do Amaral. Na década de 1960, a Tropicália
incorporou essa mesma visão de mundo, pelo diálogo com a Antropofagia e o
Concretismo, mas apenas a partir da década de 1990, justamente a partir da
publicação, no Brasil, da antologia Caribe
transplatino, que o neobarroco começa a ser discutido no Brasil como
conceito, e a influenciar, de modo consciente, a produção de alguns poetas:
Josely Vianna Baptista, Horácio Costa, Wilson Bueno, para citar poucos nomes –
sem esquecer do barroquismo já presente no Grande
sertão: veredas, de Guimarães
Rosa, no Auto do possesso e nas Galáxias, de Haroldo de Campos, e
no Catatau de Leminski. Entre os
poetas mais jovens, que começaram a publicar de 2000 para cá, eu citaria Simone
Homem de Mello, Eduardo Jorge e Adriana Zapparoli, que desenvolvem obras
pessoais com dicção e imaginário próprios, mas que compartilham a miscigenação,
o espírito lúdico, a pluralidade de referências e rotas interpretativas do
neobarroco.
Gabriela: Sabemos que o neobarroco não consiste em um movimento, assumindo as
formas mais diversas em época e locais diferentes. Mesmo assim, teríamos como
apontar um marco pelo menos mais significativo para o neobarroco no Brasil (um
texto teórico, uma obra, por exemplo?)
Acredito que após o barroco
colonial, em que se destacaram Gregório de Matos – até hoje polêmico, ao menos
na academia – e o padre Antônio Vieira, há cintilações barroquizantes em nosso Romantismo
– especialmente no Guesa Errante, de
Sousândrade, mas também em Iracema,
de José de Alencar --, na dicção enigmática de autores simbolistas de linha
mallarmeana, como Pedro Kilkerry, e do século XX para cá, em obras como Os sertões, de Euclides da Cunha e as
obras mais radicais de nosso modernismo, especialmente Macunaíma, de Mário de Andrade, Serafim
Ponte Grande, de Oswald de Andrade, Cobra
Norato, de Raul Bopp, e já na metade do século passado, na literatura de
Guimarães Rosa. Haroldo de Campos, no Auto do possesso, obra de 1949, já
praticava a mistura de referências de diversas culturas, ocidentais e orientais
– especialmente dos mitos bíblicos, helênicos, egípcios, sumérios, persas,
hindus e outros. O que diferencia o neobarroco brasileiro, talvez – que nunca foi
um grupo literário articulado em torno de uma revista ou manifesto, mas
estrelas solitárias dispersas no espaço-tempo – talvez seja o vínculo com a
nossa realidade histórica, a reflexão crítica sobre nossas origens, nossa
condição até há pouco tempo semicolonial e agrária, a beleza e a crueldade de
nossa saga, onde epifania e anti-epifania são processos simultâneos.
Claudio: Após quase onze anos da
publicação de Jardim de camaleões, seria possível fazer um balanço do
neobarroco dentro da poesia contemporânea brasileira?
É uma linha de criação marginal,
excluída de antologias e reflexões sobre a poesia brasileira contemporânea, com
poucas exceções. Isto acontece devido a um fenômeno (temporário) de hegemonia
política exercida por uma corrente crítico-criativa que privilegia a releitura
redutora do Modernismo, que valoriza seus aspectos mais superficiais –
linguagem coloquial, temática cotidiana, influência do jornal diário --,
excluindo a radicalidade inventiva de Mário, Oswald e Bopp. O neobarroco (assim como as vanguardas de
modo geral) é colocado em segundo plano. Essa hegemonia acontece sobretudo na
universidade e na mídia, com os inevitáveis corolários em bolsas, viagens e
premiações literárias, mas entre os poetas e leitores sérios de poesia a situação
muda. Quem compreende a poesia como elaboração radical da linguagem, para além
da mera referencialidade óbvia, tem em
alta consideração as obras mais difíceis, densas e enigmáticas de Haroldo de
Campos, Paulo Leminski, Wilson Bueno, Horácio Costa, Josely Vianna Baptista. O
tempo, como diz o Frederico Barbosa, é o melhor dos críticos literários e ele
saberá filtrar aquilo que tem qualidade e aquilo que é apenas marketing.
Gabriela: Pensando mais
especificamente nos dois autores em estudo, qual seria a importância de Haroldo
de Campos para o neobarroco brasileiro? E a de Néstor Perlongher?
Claudio: Haroldo de Campos não apenas
formulou os conceitos de “obra aberta” e de “barroco moderno” antes de Umberto
Eco e Severo Sarduy como também realizou uma escrita barroquizante desde o seu
primeiro livro publicado, O auto do
possesso, em que mescla referências culturais e mitológicas de diferentes
culturas, do Ocidente e do Oriente, sagradas e profanas, cultas e populares. É
quase um manifesto do neobarroco. Essa visada está presente, inclusive, no
conjunto da obra do poeta, e não apenas em Galáxias,
que é talvez a sua obra mais radical, por superar as fronteiras entre prosa e
poesia e o próprio conceito tradicional de “livro”. É uma obra só comparável ao
Finnegans Wake de Joyce, com a qual
há evidentes afinidades, embora sejam realizações distintas – no livro de Joyce
há uma fábula central recheada de minifábulas, enquanto Haroldo prescinde da
trama ficcional, cada página do livro é autônoma e não existe uma sequência
linear de leitura, as páginas podem ser lidas ao acaso. O pensamento barroco é central na atividade
crítica e ensaística do poeta, desde a antologia sincrônica que acompanha o
artigo Uma arquitextura do barroco
até os ensaios teóricos sobre a tradução (em particular no livro Deus e o Diabo no Fausto de Goethe) e a
defesa vigorosa de Gregório de Matos contra certa miopia universitária. Nestor
Perlongher é menos lido hoje do que há vinte anos, o que é uma lástima. Acho
que seria muito importante a reedição de seu livro Lamê – antologia organizada e traduzida por Josely Vianna Baptista
e publicada há bastante tempo pela Iluminuras.