PALAVRAS SUJAS DE REALIDADE
Donizete Galvão desenvolve em sua poesia um catálogo de
motes obsessivos em que se destacam o tempo, a memória, a cidade, insetos,
animais, pequenos acontecimentos da jornada ordinária e a busca da epifania
possível numa era de “homens inacabados”. Mircea Eliade, no Tratado de história das religiões, define epifania (do grego epi, sobre, phaino, brilhar) como a manifestação inesperada do divino ou o
acesso súbito à sabedoria, tal como as revelações obtidas em sonhos, transes
xamânicos ou experiências rituais com alucinógenos. O conceito de epifania passou
a ser usado na modernidade por autores como James Joyce, num contexto laico e
profano, para designar percepções estéticas que causam uma reação emocional intensa
de horror ou deslumbramento. A escrita de Donizete Galvão apresenta diferentes
momentos epifânicos, em geral relacionados à contemplação da natureza (“Caminho
de vacas, / cascos / cavando / trilhas / na grama”), à escuta das canções de
Nina Simone (“Voz de soda cáustica / roendo a carne / até cavar um fosso”), ao
convívio com as obras de artistas plásticos como Paulo Pasta ou Renina Katz (“Paisagem
irreal, / onde se respira / um ar rarefeito: / o mundo suspenso / por um fio /
no limiar da dissolução”), mas especialmente à observação de cenas que são retiradas
de sua condição imediata e reconfiguradas em alegorias, como acontece em O grito: “O porco guincha / e sob a pata
dianteira / sai a golfada de sangue / que enche a bacia. // Horas depois, /
pronto o chouriço, / comemos o sangue preto, / as tripas, o grito” (do livro Ruminações). Este poema, de fortes cores
expressionistas, não é apenas a descrição minuciosa de um acontecimento que o
autor pode ter presenciado (ou não) em sua cidade natal, Borda da Mata, situada
no interior mineiro; é também a construção do pensamento por meio de imagens e
impressões sensoriais que envolvem a imaginação do leitor, fazendo com que ele compartilhe
a degustação das tripas misturadas ao grito, metáfora do desconforto da condição
humana.
Consciência de linguagem
Em Azul navalha, livro de estreia de
Donizete Galvão, publicado em 1988, o tema principal é a cidade – o espaço
perdido da infância, agora transformado em cenário mental (“Ele fundou uma cidade na memória, / território de sonhos
que a tudo acolhe. / Ruas que são matas / que são rios / que são abismos / em
ilógica geografia”). Em As faces
do rio, publicado em 1990, o autor amadurece a consciência de linguagem em
peças de maior elaboração formal, como a notável composição Prisioneiro na pedra, de versos breves,
enigmáticos e construção elíptica: “Na pedra, / ele espreita: / peixe, pássaro,
lua. / Seu olho-flecha / nunca fere a presa. / Pois que tudo se move; / rio,
céu, satélite / e até mesmo a pedra. / Não se move o homem, / cego à teia / que
à sua volta cresce”. A pedra é um elemento que comparece em diversos poemas de
Donizete Galvão (especialmente em seu terceiro livro publicado, Do silêncio da pedra, de 1996),
geralmente associada à “esterilidade do deserto e, em última instância, a
morte”, mas também a aspectos positivos, como “anteparo e abrigo”, segundo
Paulo Vizioli. A pedra se contrapõe à água, outro símbolo frequente na poesia
de Donizete Galvão: se a pedra é silêncio e imobilidade, a água é ruído,
movimento, devir temporal, rio heraclítico em que entramos e não entramos,
somos e não somos: “Tudo que nos é dado a maré leva / e devolve como restolho”.
Em A carne e o tempo, livro publicado
em 1997, com a reprodução de uma aquarela de Paul Klee, o tema central é o caráter
efêmero dos viventes e do mundo (“Somos homens de frágil arquitetura /
tessitura de finos fios de vidro, / renda tramada por aranhas”), embora o
sagrado também compareça – não como promessa de redenção futura, mas como
possibilidade de encantamento na vida presente com as pequenas coisas que nos
iluminam, seja a lembrança de figos maduros, a contemplação da chuva de
primavera, ouvir a música de Villa-Lobos, assistir à dança de Madhavi Mudgal ou
observar as litografias de Renina Katz. Para Donizete Galvão, há “um deus de
pedra / (...) deus que não pune / deus que não salva”.
Perguntas sem respostas
Ruminações, publicado em 1999, é o livro
mais telúrico do autor, formado por pequenas narrativas que incorporam
paisagens do interior mineiro, sem cair em fácil retórica nativista: o poeta
transforma o regional em universal em composições como Reboco (“Para quem não tem muito, / tudo tem serventia: / a argila,
a bosta da vaca, / o perfume da grama”), Escoiceados
(“Levamos / bons coices. / Meu pai e eu. / Os dois / nunca subimos / na vida”)
e Autorretrato como boi (“No curral
da insônia / rumino palavras pastadas / na ribanceira dos dias”). Um poema notável deste livro, pela técnica de
construção da narrativa, é Sexta-feira da
paixão: “A mulher que ganhou os peixes / não traz os olhos cabisbaixos /
nem os ombros arqueados. / Treze peixes finos e prateados / deslizaram para
dentro da sacola. / (...) Usará a frigideira preta / que fica no armário da
pia? / Vai passar os peixes na farinha, / fritá-los e servi-los bem sequinhos”.
O poema é arquitetado na forma de perguntas sem respostas, em que a descrição
minuciosa do cenário se mistura a um engenho imaginativo que completa as
lacunas com hipóteses ficcionais (“Quem dividirá os peixes com ela? / O marido
aposentado? Os filhos?”). A aparente simplicidade do poema oculta o seu caráter
alegórico, no sentido próprio da palavra: construção do pensamento por meio de
metáforas ou imagens, recurso frequente na poesia e na pintura barrocas. O lirismo de Donizete Galvão, centrado na
carnadura das palavras e das coisas, chega a um grau de ebulição em Mundo mudo (2003) e sobretudo em O homem inacabado (2010), de onde
extraímos essas linhas: “Num átimo, / a picada da serpente. / Abre-se a ferida
/ que nunca sara / Que não supura. / Coleção de escaras / que saem à unha / e
renascem / novas crostas. (...) A dor: / veneno. / Ninguém quer / sua companhia”.
(Artigo publicado na edição de novembro da revista CULT, na coluna RETRATO DO ARTISTA)
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