terça-feira, 5 de novembro de 2013

CÂNONE E ANTICÂNONE (IV): FERREIRA GULLAR



Ferreira Gullar é considerado pela crítica especializada um dos melhores poetas brasileiros contemporâneos. Sua obra é marcada por diferentes fases de pesquisa estética, desde o lirismo e o experimentalismo até a poesia de cordel e a dicção coloquial de sua produção mais recente. No livro A luta corporal, de 1954, por exemplo, encontramos composições intimistas de forte musicalidade, na série Sete poemas portugueses, e ainda poemas em prosa, como a Carta ao inventor da roda, peças concisas e substantivas que se aproximam de João Cabral de Melo Neto, como Galo galo e ainda textos experimentais que antecipam a Poesia Concreta, pela espacialização das linhas na página, fragmentação da palavra e criação de neologismos. A respeito dessa obra, que se afasta da tendência neoclássica da Geração de 45 e se insere no campo das experiências de vanguarda da década seguinte, escreveu João Cabral de Melo Neto: “O livro A luta corporal, com que estréia o jovem poeta Ferreira Gullar, mostra uma justa compreensão do que é a arte da tipografia. Impresso em papel absolutamente pobre, sem nenhum desses adornos provincianos ainda tão usados entre nós (...), o livro é um dos trabalhos gráficos mais simpáticos publicados ultimamente”. O poeta pernambucano aponta as “pesquisas com a palavra e com o verso” e a visualidade da “disposição de pretos e brancos (que) desempenha papel essencial” como elementos de destaque na poética de Gullar, bem como a economia dos aspectos gráficos, que coloca em primeiro plano a força semântica do texto: “O livro, principalmente o livro de poesia, mesmo quando o autor não procure impor leis especiais à leitura do verso, tem de estar subordinado ao texto: deve, quando nada, não pesar sobre o texto, com todos os adornos e ilustrações que, em geral, vemos associados à idéia de edição de luxo[1]”. Um bom exemplo da arquitetura poética do livro A luta corporal é o poema O anjo: “O anjo, contido / em pedra / e silêncio, / me esperava. // Olho-o, identifico-o / tal se em profundo sigilo / de mim o procurasse desde o início. // Me ilumino! todo / o existido / fora apenas a preparação / deste encontro. // O anjo é grave / agora. / Começo a esperar a morte”[2]. Este poema revela várias características da poesia inicial de Gullar, como a síntese verbal, a geometria, a mescla de termos concretos e abstratos (como a pedra e o silêncio) e a expressão subjetiva. No último poema do volume, sem título, Gullar radicaliza a disposição espacial das linhas na página, buscando dar uma dimensão plástica ao texto, ao mesmo tempo em que pulveriza as palavras em sílabas e cria termos abstratos escritos em letras maiúsculas como “URR VERÕENS / ÔR / TUFUNS / LERR DESVÉSLEZ VÁRZENS”[3].

O vil metal, que reúne poemas escritos entre 1954 e 1960, parece prosseguir esse caminho de experimentação no poema que abre o volume, intitulado Fogos da flora, mas, nas páginas seguintes, verificamos uma profunda mudança na dicção do autor, que apresenta textos discursivos, bem-humorados e em linguagem coloquial, como Ocorrência: “Aí o homem sério entrou e disse: bom dia. / Aí o outro homem sério respondeu: bom dia / Aí a mulher séria respondeu: bom dia / Aí a menininha no chão respondeu: bom dia / Aí todos riram de uma vez”[4]. Esta peça, assim como outras incluídas no livro, afastam-se do concretismo, praticado pelo autor entre 1957 e 1958 (com resultados notáveis, como o Formigueiro e o Poema enterrado) e revelam a influência da linguagem conversacional e irônica do Modernismo, e em especial de Oswald de Andrade (a quem dedicou o poema Oswald morto) e Carlos Drummond de Andrade. A marca do experimentalismo, porém, ainda é visível na peça Definições, composta de palavras escritas em letras minúsculas, aglutinadas fora de uma ordem sequencial lógico-sintática, com o uso frequente de recursos aliterativos e sem sinais de pontuação: “fala fósseis sol / facho / farpa fogo / arco-sombra / faca jardim archote /folha ou boca / flama / gasto em vão”[5]. José Guilherme Merquior aponta, nesse livro, uma “poesia de conquista crítica do cotidiano[6]”. Podemos notar a abordagem referida por Merquior no léxico dos poemas (lavatório, gaveta, paletó, cadeira, sapatos), no olhar fotográfico, voltado às pequenas ações ordinárias, e certo tom caricatural, que não se reduz ao mero naturalismo, como no poema Um homem ri: “O homem lançava o riso como o polvo lança a sua tinta e foge”[7].  
Com as mudanças políticas ocorridas no Brasil a partir do golpe militar de 1964, que derrubou o governo democrático de João Goulart, o poeta escolhe um novo caminho para a sua criação, privilegiando os temas sociais, o conteúdo ideológico e o diálogo com a cultura popular, como a poesia de cordel, gênero que praticou entre 1962 e 1967 (Quem matou Aparecida, Peleja de Zé Molesta com Tio Sam, História de um valente, entre outros títulos). Segundo Fábio Lucas, nos Romances de Cordel, Gullar “passa ao ritmo mais fluente e popular da língua portuguesa, as estrofes narrativas em redondilhas, nos moldes dos cantadores de feiras. Falam alto no poeta a nordestinidade, a visão urbana e o compromisso social”[8]. A leitura desses poemas hoje, porém, fora do contexto histórico em que foram escritos, pode revelar certo anacronismo estético pelo proselitismo típico de uma arte que se confunde com as tarefas de agitação e propaganda, como ocorre em versos como esses: “o homem vem caminhando / para a plena liberdade; / tem que se livrar da fome / para atingir a igualdade; / o comunismo é o futuro / risonho da humanidade”[9]. O abandono das formas de experimentação estética em favor do compromisso político inspira ainda um ensaio de Gullar publicado em 1969, chamado Vanguarda e subdesenvimento. O engajamento político permanece no livro seguinte, Dentro da noite veloz (1975), onde encontramos poemas dedicados a Che Guevara e de denúncia da guerra do Vietnã, temas recorrentes no auge da Guerra Fria, que dividiu o mundo entre as esferas de influência americana e soviética. Este talvez seja o livro de menor impacto estético na obra de Gullar, pela ênfase na abordagem ideológica dos fatos históricos do período, mas ainda encontramos aqui peças líricas e bem-humoradas como Cantada: “Você é mais bonita que uma bola prateada / de papel de cigarro / Você é mais bonita que uma poça d’água / límpida / num lugar escondido / Você é mais bonita que uma zebra / que um filhote de onça / que um Boeing 707 em pleno ar / (...) Olha, / você é tão bonita quanto o Rio de Janeiro / em maio / e quase tão bonita / quanto a Revolução Cubana”[10].  

O Poema sujo, talvez o livro mais conhecido e admirado de Ferreira Gullar, publicado em 1976, é bem recebido pela crítica, que reconhece nesse poema longo escrito no período de exílio do autor em Buenos Aires uma obra densa e consistente. Conforme José Guilherme Merquior, “Uma das originalidades do Poema sujo consiste precisamente na conjugação dessa fixação carnal com a insistência em cantar o corpo da cidade: da bela, pobre e úmida São Luís, berço de Gullar. O realismo caricatural de Gullar, seu apego à dolorosa finitude das pessoas e coisas, emprestam a vários momentos de seu poema um tom único de abrupta humanidade. Ferreira Gullar é um François Villon participante — um César Vallejo brasileiro — e sem dúvida é a pungência da sua rouca melodia, a sua surpreendente capacidade de liricizar, sem nunca ‘estetizar’ o chulo e o banal, que lhe permite evitar a erva daninha da literatura engajada — o clichê ideológico”[11]. É preciso ressaltar, além dos aspectos referenciais — como as lembranças da infância e a descrição de cenas do cotidiano da cidade —, a riqueza rítmica e melódica do poema de Gullar, que aglutina as palavras criando efeitos sonoros que se chocam por vezes com a própria sintaxe, como nas linhas iniciais: “turvo turvo / a turva / mão do sopro / contra o muro / escuro / menos menos / menos que escuro / menos que mole e duro menos que fosso e muro: menos que furo”[12]. Este é um dos livros mais importantes da poesia brasileira da segunda metade do século XX, na opinião quase unânime da crítica.

Na vertigem do dia (1980) retoma o intimismo da fase inicial da poesia de Ferreira Gullar, o mergulho em suas próprias incertezas e inquietações. No poema intitulado Traduzir-se, por exemplo, o poeta diz: ”Uma parte de mim / é todo mundo: / outra parte é ninguém: / fundo sem fundo. // Uma parte de mim / é multidão: / outra parte estranheza / e solidão. / (...) Traduzir uma parte / na outra parte / — que é uma questão / de vida ou morte — / será arte?[13]” O poema Bananas podres, por sua vez, recupera os temas da passagem do tempo e da morte, alegorizados na imagem da fruta que apodrece (metáfora já presente na composição As peras, incluída no livro A luta corporal). O mergulho no mundo das memória e das emoções será aprofundado nos dois livros que o poeta publicou em seguida, Barulhos (1987) e Muitas vozes (1999). Em Barulhos, Ferreira Gullar apresenta poemas discursivos e confessionais em que se refere à cidade do Rio de Janeiro, a amigos mortos, como Glauber Rocha, Clarice Lispector e Mário Pedrosa, sem perder o foco no cenário social e no compromisso político, como no poema Meu povo, meu abismo: “Meu povo é meu abismo. / Nele me perco: / a sua tanta dor me deixa / surdo e cego. // Meu povo é meu castigo / meu flagelo: / seu desamparo, / meu erro. // Meu povo é meu destino / meu futuro: / se ele não vira em mim / veneno ou canto / — apenas morro”[14]. Apesar de alguns bons achados, este é talvez o livro mais irregular do autor e não revela nenhuma surpresa formal ou referencial. Muitas vozes, o livro de poesia publicado a seguir, também não apresenta novidades: ali estão as obsessões registradas nos livros anteriores, como a cidade natal, a infância, a família, o cenário urbano do Rio de Janeiro, a realidade social. Dois poemas que chamam a atenção nesse volume são Nasce o poeta e Evocação de silêncios, que retomam a concisão, a geometria e a literariedade de sua primeira fase criativa.    




[1] MELO NETO, João Cabral de, in Cadernos de Literatura Brasileira. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 1998: 122-123.

[2] GULLAR, Ferreira. Toda poesia. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2008: 9-10.

[3] GULLAR, Ferreira. Idem, 64.

[4] GULLAR, Ferreira. Idem, 72.

[5] GULLAR, Ferreira. Idem, 74.

[6] MERQUIOR, José Guilherme, in Cadernos de Literatura Brasileira. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 1998: 123.

[7] GULLAR, Ferreira. Toda poesia. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2008: 77.

[8] LUCAS, Fábio, in Cadernos de Literatura Brasileira. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 1998, 125.

[9] GULLAR, Ferreira. Toda poesia. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2008: 151.

[10] Idem, 173.

[11] MERQUIOR, José Guilherme, in Cadernos de Literatura Brasileira. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 1998, 123.

[12] GULLAR, Ferreira. Toda poesia. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2008: 233.

[13] Idem, 335.

[14] Idem, 377.

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