Ferreira Gullar é considerado pela crítica especializada um
dos melhores poetas brasileiros contemporâneos. Sua obra é marcada por
diferentes fases de pesquisa estética, desde o lirismo e o experimentalismo até
a poesia de cordel e a dicção coloquial de sua produção mais recente. No livro A luta corporal, de 1954, por exemplo,
encontramos composições intimistas de forte musicalidade, na série Sete poemas portugueses, e ainda poemas
em prosa, como a Carta ao inventor da
roda, peças concisas e substantivas que se aproximam de João Cabral de Melo
Neto, como Galo galo e ainda textos
experimentais que antecipam a Poesia Concreta, pela espacialização das linhas
na página, fragmentação da palavra e criação de neologismos. A respeito dessa
obra, que se afasta da tendência neoclássica da Geração de 45 e se insere no
campo das experiências de vanguarda da década seguinte, escreveu João Cabral de
Melo Neto: “O livro A luta corporal,
com que estréia o jovem poeta Ferreira Gullar, mostra uma justa compreensão do
que é a arte da tipografia. Impresso em papel absolutamente pobre, sem nenhum
desses adornos provincianos ainda tão usados entre nós (...), o livro é um dos
trabalhos gráficos mais simpáticos publicados ultimamente”. O poeta
pernambucano aponta as “pesquisas com a palavra e com o verso” e a visualidade
da “disposição de pretos e brancos (que) desempenha papel essencial” como
elementos de destaque na poética de Gullar, bem como a economia dos aspectos
gráficos, que coloca em primeiro plano a força semântica do texto: “O livro,
principalmente o livro de poesia, mesmo quando o autor não procure impor leis
especiais à leitura do verso, tem de estar subordinado ao texto: deve, quando
nada, não pesar sobre o texto, com todos os adornos e ilustrações que, em
geral, vemos associados à idéia de edição de luxo[1]”.
Um bom exemplo da arquitetura poética do livro A luta corporal é o poema O
anjo: “O anjo, contido / em pedra / e silêncio, / me esperava. // Olho-o,
identifico-o / tal se em profundo sigilo / de mim o procurasse desde o início.
// Me ilumino! todo / o existido / fora apenas a preparação / deste encontro.
// O anjo é grave / agora. / Começo a esperar a morte”[2].
Este poema revela várias características da poesia inicial de Gullar, como a
síntese verbal, a geometria, a mescla de termos concretos e abstratos (como a pedra e o silêncio) e a expressão subjetiva. No último poema do volume, sem
título, Gullar radicaliza a disposição espacial das linhas na página, buscando
dar uma dimensão plástica ao texto, ao mesmo tempo em que pulveriza as palavras
em sílabas e cria termos abstratos escritos em letras maiúsculas como “URR
VERÕENS / ÔR / TUFUNS / LERR DESVÉSLEZ VÁRZENS”[3].
O vil metal, que reúne poemas escritos entre 1954 e 1960, parece
prosseguir esse caminho de experimentação no poema que abre o volume,
intitulado Fogos da flora, mas, nas
páginas seguintes, verificamos uma profunda mudança na dicção do autor, que
apresenta textos discursivos, bem-humorados e em linguagem coloquial, como Ocorrência: “Aí o homem sério entrou e
disse: bom dia. / Aí o outro homem sério respondeu: bom dia / Aí a mulher séria
respondeu: bom dia / Aí a menininha no chão respondeu: bom dia / Aí todos riram
de uma vez”[4].
Esta peça, assim como outras incluídas no livro, afastam-se do concretismo,
praticado pelo autor entre 1957 e 1958 (com resultados notáveis, como o Formigueiro e o Poema enterrado) e revelam a influência da linguagem
conversacional e irônica do Modernismo, e em especial de Oswald de Andrade (a
quem dedicou o poema Oswald morto) e
Carlos Drummond de Andrade. A marca do experimentalismo, porém, ainda é visível
na peça Definições, composta de palavras
escritas em letras minúsculas, aglutinadas fora de uma ordem sequencial
lógico-sintática, com o uso frequente de recursos aliterativos e sem sinais de
pontuação: “fala fósseis sol / facho / farpa fogo / arco-sombra / faca jardim
archote /folha ou boca / flama / gasto em vão”[5].
José Guilherme Merquior aponta, nesse livro, uma “poesia de conquista crítica
do cotidiano[6]”. Podemos
notar a abordagem referida por Merquior no léxico dos poemas (lavatório,
gaveta, paletó, cadeira, sapatos), no olhar fotográfico, voltado às pequenas
ações ordinárias, e certo tom caricatural, que não se reduz ao mero
naturalismo, como no poema Um homem ri:
“O homem lançava o riso como o polvo lança a sua tinta e foge”[7].
Com as mudanças políticas ocorridas no Brasil a partir do
golpe militar de 1964, que derrubou o governo democrático de João Goulart, o
poeta escolhe um novo caminho para a sua criação, privilegiando os temas
sociais, o conteúdo ideológico e o diálogo com a cultura popular, como a poesia
de cordel, gênero que praticou entre 1962 e 1967 (Quem matou Aparecida, Peleja
de Zé Molesta com Tio Sam, História
de um valente, entre outros títulos). Segundo Fábio Lucas, nos Romances de Cordel, Gullar “passa ao
ritmo mais fluente e popular da língua portuguesa, as estrofes narrativas em
redondilhas, nos moldes dos cantadores de feiras. Falam alto no poeta a
nordestinidade, a visão urbana e o compromisso social”[8].
A leitura desses poemas hoje, porém, fora do contexto histórico em que foram
escritos, pode revelar certo anacronismo estético pelo proselitismo típico de
uma arte que se confunde com as tarefas de agitação e propaganda, como ocorre
em versos como esses: “o homem vem caminhando / para a plena liberdade; / tem
que se livrar da fome / para atingir a igualdade; / o comunismo é o futuro /
risonho da humanidade”[9].
O abandono das formas de experimentação estética em favor do compromisso
político inspira ainda um ensaio de Gullar publicado em 1969, chamado Vanguarda e subdesenvimento. O engajamento político permanece no livro
seguinte, Dentro da noite veloz
(1975), onde encontramos poemas dedicados a Che Guevara e de denúncia da guerra
do Vietnã, temas recorrentes no auge da Guerra Fria, que dividiu o mundo entre
as esferas de influência americana e soviética. Este talvez seja o livro de
menor impacto estético na obra de Gullar, pela ênfase na abordagem ideológica
dos fatos históricos do período, mas ainda encontramos aqui peças líricas e
bem-humoradas como Cantada: “Você é
mais bonita que uma bola prateada / de papel de cigarro / Você é mais bonita
que uma poça d’água / límpida / num lugar escondido / Você é mais bonita que
uma zebra / que um filhote de onça / que um Boeing 707 em pleno ar / (...)
Olha, / você é tão bonita quanto o Rio de Janeiro / em maio / e quase tão
bonita / quanto a Revolução Cubana”[10].
O Poema sujo,
talvez o livro mais conhecido e admirado de Ferreira Gullar, publicado em 1976,
é bem recebido pela crítica, que reconhece nesse poema longo escrito no período
de exílio do autor em
Buenos Aires uma obra densa e consistente. Conforme José
Guilherme Merquior, “Uma das originalidades do Poema sujo consiste precisamente na conjugação dessa fixação carnal
com a insistência em cantar o corpo da cidade: da bela, pobre e úmida São Luís,
berço de Gullar. O realismo caricatural de Gullar, seu apego à dolorosa
finitude das pessoas e coisas, emprestam a vários momentos de seu poema um tom
único de abrupta humanidade. Ferreira Gullar é um François Villon participante
— um César Vallejo brasileiro — e sem dúvida é a pungência da sua rouca
melodia, a sua surpreendente capacidade de liricizar, sem nunca ‘estetizar’ o
chulo e o banal, que lhe permite evitar a erva daninha da literatura engajada —
o clichê ideológico”[11].
É preciso ressaltar, além dos aspectos referenciais — como as lembranças da
infância e a descrição de cenas do cotidiano da cidade —, a riqueza rítmica e
melódica do poema de Gullar, que aglutina as palavras criando efeitos sonoros
que se chocam por vezes com a própria sintaxe, como nas linhas iniciais: “turvo
turvo / a turva / mão do sopro / contra o muro / escuro / menos menos / menos
que escuro / menos que mole e duro menos que fosso e muro: menos que furo”[12].
Este é um dos livros mais importantes da poesia brasileira da segunda metade do
século XX, na opinião quase unânime da crítica.
Na vertigem do dia (1980) retoma o intimismo da fase inicial da poesia de
Ferreira Gullar, o mergulho em suas próprias incertezas e inquietações. No
poema intitulado Traduzir-se, por
exemplo, o poeta diz: ”Uma parte de mim / é todo mundo: / outra parte é
ninguém: / fundo sem fundo. // Uma parte de mim / é multidão: / outra parte
estranheza / e solidão. / (...) Traduzir uma parte / na outra parte / — que é
uma questão / de vida ou morte — / será arte?[13]”
O poema Bananas podres, por sua vez,
recupera os temas da passagem do tempo e da morte, alegorizados na imagem da
fruta que apodrece (metáfora já presente na composição As peras, incluída no livro A
luta corporal). O mergulho no mundo das memória e das emoções será
aprofundado nos dois livros que o poeta publicou em seguida, Barulhos (1987) e Muitas vozes (1999). Em Barulhos,
Ferreira Gullar apresenta poemas discursivos e confessionais em que se refere à
cidade do Rio de Janeiro, a amigos mortos, como Glauber Rocha, Clarice
Lispector e Mário Pedrosa, sem perder o foco no cenário social e no compromisso
político, como no poema Meu povo, meu abismo: “Meu povo é meu
abismo. / Nele me perco: / a sua tanta dor me deixa / surdo e cego. // Meu povo
é meu castigo / meu flagelo: / seu desamparo, / meu erro. // Meu povo é meu
destino / meu futuro: / se ele não vira em mim / veneno ou canto / — apenas
morro”[14].
Apesar de alguns bons achados, este é talvez o livro mais irregular do autor e
não revela nenhuma surpresa formal ou referencial. Muitas vozes, o livro de poesia publicado a seguir, também não
apresenta novidades: ali estão as obsessões registradas nos livros anteriores,
como a cidade natal, a infância, a família, o cenário urbano do Rio de Janeiro,
a realidade social. Dois poemas que chamam a atenção nesse volume são Nasce o poeta e Evocação de silêncios,
que retomam a concisão, a geometria e a literariedade de sua primeira fase
criativa.
[1] MELO
NETO, João Cabral de, in Cadernos de
Literatura Brasileira. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 1998: 122-123.
[2] GULLAR,
Ferreira. Toda poesia. Rio de
Janeiro: José Olympio Editora, 2008: 9-10.
[3] GULLAR,
Ferreira. Idem, 64.
[4] GULLAR,
Ferreira. Idem, 72.
[5] GULLAR,
Ferreira. Idem, 74.
[6]
MERQUIOR, José Guilherme, in Cadernos de
Literatura Brasileira. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 1998: 123.
[7] GULLAR,
Ferreira. Toda poesia. Rio de
Janeiro: José Olympio Editora, 2008: 77.
[8] LUCAS,
Fábio, in Cadernos de Literatura Brasileira.
São Paulo: Instituto Moreira Salles, 1998, 125.
[9] GULLAR,
Ferreira. Toda poesia. Rio de
Janeiro: José Olympio Editora, 2008: 151.
[10] Idem,
173.
[11]
MERQUIOR, José Guilherme, in Cadernos de
Literatura Brasileira. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 1998, 123.
[12] GULLAR,
Ferreira. Toda poesia. Rio de
Janeiro: José Olympio Editora, 2008: 233.
[13] Idem,
335.
[14] Idem,
377.
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