quarta-feira, 3 de abril de 2013

RETRATO DO ARTISTA




A pesquisa de linguagem de Antônio Moura move-se em várias direções, incorporando materiais e procedimentos construtivos que dinamizam a escrita e a leitura. Podemos recordar, aqui, dos conceitos da poeta e ensaísta portuguesa Ana Hatherly sobre a “reinvenção da escrita” e a “reinvenção da leitura”, pois é exatamente isto o que o poeta brasileiro nos propõe desde o seu título de estreia, Dez, publicado em 1996, em que o leitor é convidado a percorrer vários caminhos possíveis para a leitura, fruição e interpretação dos textos poéticos. Neste livro, cujo projeto gráfico foi elaborado por Antônio Moura em parceria com o poeta e artista plástico Francisco dos Santos, os poemas são trabalhados em sua dimensão visual, o que verificamos na escolha de diferentes fontes e corpos de letras, na distribuição das palavras e linhas em cada página, na inserção de figuras geométricas, no uso do espaço em branco da página – que evidenciam ecos da vanguarda construtivista – mas também na inclusão de desenhos figurativos caricaturais, como o “cachorrinho da Barbie maconheira” e a página amarela, desdobrável, com um tipo de monstro mitológico ou folclórico que recorda as xilogravuras da arte popular do Nordeste brasileiro.

A imagem é forte sobretudo nos versos – ou linhas – dos poemas, onde a pesquisa vocabular do poeta faz um amálgama de palavras coloquiais e eruditas em construções insólitas, como nesta composição sem título: “A urina perde-se no mar, esquecida / O mar e o céu, o mar e o seu / eterno rancor contra a carne / sem escudos / -- crivada de setas -- “, composição que avança num crescendo monstruoso (no sentido da teratologia) até culminar nessa figura fantástica, digna do Inferno de Wall Street, de Sousândrade: “o monstruoso rosnado / (multilhões de aqua- / leões verdejubados)”. Répteis, ofídios e outras criaturas menosprezadas na lírica clássica aparecem aqui como atores principais, desafiando esclerosados conceitos de “bom gosto” com a brutalidade de passagens como esta: “O sangue / da serpente lambuzando a terra, fundindo / o medo” e “Um A em carne viva / na garganta da noite víbora”, até a “hora-trombeta / a febre do ouro cobrando / a ruína da obra, cobra / que nos destroça e se des / dobra em / nada”.

Em seu livro seguinte, Hong Kong & Outros Poemas (1999), conforme diz Carlos Ávila na “orelha” do livro, Antônio Moura,  “entre versos e não-versos, através de imagens cortantes e violentas (rosas & carnificina), assonâncias e dissonâncias (...) vai montando peças verbais fragmentárias, com um design peculiar que se espalha sobre o branco da página”. A ênfase na geometria, na fala concisa, áspera, recortada, não exclui, porém, um interessante trabalho de ritmo, cheio de nuances e sutilezas sonoras, cujo ponto máximo, talvez seja Outra manhã: “Por detrás do verde monte / (não-verde-oliva / não-verde-musgo / verde-não-verde / não-verde-mar) / por detrás do verde monte / (não-verde-mata / ver de perto: entulho) / por detrás do verde-azinhavrado monte / de sucata, surge sujo / grafitado /  -- cicatrizes, placas, logomarcas”. Os detritos da civilização industrial, os ícones do mercado, da cultura do consumo, aparecem aqui como signos de uma era que já anunciou o “fim da história” e que hoje mergulha num turbulento abismo de incertezas. A poesia de Antônio Moura está inserida no olho do furacão, e registra, em linhas afiadas e precisas, fotogramas do Império da Grande Insanidade. O eu lírico está presente, como na peça Abril, 22, 1999, rememoração lírica do falecimento de sua mãe, ou ainda em O Jardim do Palácio, com suas metáforas eróticas, mas a voz do poeta não se impõe, antes se retira, na maioria das peças, para focar a atenção na materialidade do mundo e da linguagem. Benedito Nunes, no prefácio que escreveu a este livro, aponta uma operação de despersonalização do autor, traço característico da lírica moderna: “Em Hong Kong & Outros Poemas, a despersonalização chega ao auge; o poeta enquanto pessoa se mantém como espectador de um drama cósmico que ele mesmo monta, e de que o dia e a noite, o sol e as estrelas, a floresta e a cidade, o sexo e o amor, inconciliáveis contendores, são as ‘personadramatis’ principais. Vendem-se estrelas no mercado, especula-se com o ouro do sol.”

A despersonalização do poeta e o diálogo estreito com a filosofia são ainda mais presentes no terceiro livro do autor, Rio silêncio (2004), que é um divisor de águas na obra de Antônio Moura.  Se em Dez e Hong Kong o autor privilegiou uma estética concisa, fragmentária, dissonante e imagética, que incorpora procedimentos das vanguardas recentes, em Rio silêncio temos uma poesia mais discursiva, linear, reflexiva, com o recuo da fanopeia, que cede lugar para a “dança do intelecto entre as palavras”.  De acordo com Benedito Nunes, neste livro singular há uma “pluralidade de vozes concorrentes”, que “já não são apenas mitológicas e literárias, mas também filosóficas” (...) Aqui o invisível tem seu lugar certo, seja como riacho ou rio –  ‘o invisível riacho ao encontro de outro’ a lembrar o ‘basruisseaucalonié, lamort’ de Mallarmé – seja como a sombra da sombra que o homem é”. Para ilustrar esta consideração, Benedito Nunes cita um dos mais belos poemas do livro: “considerando isso e lembrando que o dia /  é um punhado de pó de estrelas / que a noite, com sua pá, atira / sobre as pálpebras de sono, / que o céu tem som violeta sobre os / cabelos deste homem que trafega no poente / com cheiro de pólvora nas mãos”. Poesia filosófica, sim, mas que não abandona a alquimia verbal de Rimbaud, no uso de metáforas, sinestesias, paradoxos e outros jogos de linguagem, ela própria um espelho do mundo. Outro poema que se destaca no volume é Quando,  construído numa estrutura de oito dísticos em discurso contínuo, sem ponto final, como se todos os 16 versos fossem um único verso, “em ritmo imprevisível”, a anunciar que “nada ao mundo faltará e nada se / abalará a este pequeno movimento / de asa, que, ao decolar, vibra, / imperceptivelmente, a folhagem”. Este poema recorda não apenas a óbvia herança da filosofia grega (já apontada por Benedito Nunes), mas ainda a linguagem enigmática dos koans, pequenas histórias sapienciais e enigmáticas da tradição zen-budista. Antônio Moura é um poeta que dialoga com a cultura, do Ocidente e do Oriente, de modo inventivo, sem cair no pastiche da erudição ou numa lírica filosofante em que a referencialidade se sobrepõe ao engenho poético.   

A sombra da ausência (2009), título mais recente do poeta publicado no Brasil, é um cadinho de síntese, em que Antônio Moura revisita temas e estilemas de seus três livros publicados, aprofundando a densidade do pensamento e da construção semântica, que fazem do autor um dos nomes mais consistentes da poesia produzida hoje no Brasil. Segundo Júlia Studart, que assina o posfácio da obra, aqui “há uma armadilha com a imagem que a aproxima da vertigem, uma imagem discreta, serena, que parece recuperar uma ancestralidade perdida, uma certa cena mitológica ancestral, mas que é ao mesmo tempo a sua constituição dialética do poema, que só lhe parece servir como uma série de contrários”. Nem sempre, porém, a imagem é discreta nesse livro, talvez o mais pessoal do autor, em que a ausência anunciada no título é depois explicitada numa série de composições cujos títulos são nomes e datas, como Armanda, 1920-2001 e Heloísa, 1963-1977.  No poema em prosa que abre esta série, temos construções quase surrealistas, como no parágrafo inicial: “A morte desmonta relógios. A cada dia, a cada hora, mundo afora, por onde passa. Relógios-pássaros atravessados por dardos – ponteiros -- certeiros – em pleno vôo. Relógios-leões com vastos minutos de juba, nuvens-relógios que brisam um só segundo”.

A composição mais ambiciosa do livro, porém, talvez seja o Monumento a Pascal, escrito em Paris e dedicado a Nilson Oliveira. O poema, dividido em sete partes, começa com estes versos notáveis: “Nunca buscamos as coisas / mas sim a busca das coisas. / O rei está rodeado de gente / que não pensa senão em divertir o rei / e impedi-lo de pensar em si mesmo. / Com o coração oco / e cheio de imundície / corremos despreocupados / para o abismo / -- o último ato, / sempre sangrento, por mais belo / que tenha sido o resto da comédia”, em que o autor vanguardista parodia o conceptismo barroco para expor o seu desencanto com o “desconcerto do mundo”. Antônio Moura é um palimpsesto onde, em cada camada de leitura, encontramos novas e imprevistas referências, que fazem da leitura – e releitura – de sua obra uma operação lúdica, de fruição intelectual.

(Artigo publicado na edição de abril da revista CULT, com fotos e poemas inéditos do autor)

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