A pesquisa de
linguagem de Antônio Moura move-se em várias direções, incorporando materiais e
procedimentos construtivos que dinamizam a escrita e a leitura. Podemos
recordar, aqui, dos conceitos da poeta e ensaísta portuguesa Ana Hatherly sobre
a “reinvenção da escrita” e a “reinvenção da leitura”, pois é exatamente isto o
que o poeta brasileiro nos propõe desde o seu título de estreia, Dez, publicado em 1996, em que o leitor
é convidado a percorrer vários caminhos possíveis para a leitura, fruição e
interpretação dos textos poéticos. Neste livro, cujo projeto gráfico foi
elaborado por Antônio Moura em parceria com o poeta e artista plástico
Francisco dos Santos, os poemas são trabalhados em sua dimensão visual, o que
verificamos na escolha de diferentes fontes e corpos de letras, na distribuição
das palavras e linhas em cada página, na inserção de figuras geométricas, no
uso do espaço em branco da página – que evidenciam ecos da vanguarda
construtivista – mas também na inclusão de desenhos figurativos caricaturais,
como o “cachorrinho da Barbie maconheira” e a página amarela, desdobrável, com
um tipo de monstro mitológico ou folclórico que recorda as xilogravuras da arte
popular do Nordeste brasileiro.
A imagem é forte
sobretudo nos versos – ou linhas – dos poemas, onde a pesquisa vocabular do
poeta faz um amálgama de palavras coloquiais e eruditas em construções
insólitas, como nesta composição sem título: “A urina perde-se no mar, esquecida
/ O mar e o céu, o mar e o seu / eterno rancor contra a carne / sem escudos /
-- crivada de setas -- “, composição que avança num crescendo monstruoso (no
sentido da teratologia) até culminar nessa figura fantástica, digna do Inferno de Wall Street, de Sousândrade:
“o monstruoso rosnado / (multilhões de aqua- / leões verdejubados)”. Répteis,
ofídios e outras criaturas menosprezadas na lírica clássica aparecem aqui como
atores principais, desafiando esclerosados conceitos de “bom gosto” com a brutalidade
de passagens como esta: “O sangue / da serpente lambuzando a terra, fundindo /
o medo” e “Um A em carne viva / na garganta da noite víbora”, até a
“hora-trombeta / a febre do ouro cobrando / a ruína da obra, cobra / que nos
destroça e se des / dobra em / nada”.
Em seu livro
seguinte, Hong Kong & Outros Poemas
(1999), conforme diz Carlos Ávila na “orelha” do livro, Antônio Moura, “entre versos e não-versos, através de
imagens cortantes e violentas (rosas
& carnificina), assonâncias e dissonâncias (...) vai montando peças
verbais fragmentárias, com um design
peculiar que se espalha sobre o branco da página”. A ênfase na geometria, na
fala concisa, áspera, recortada, não exclui, porém, um interessante trabalho de
ritmo, cheio de nuances e sutilezas sonoras, cujo ponto máximo, talvez seja Outra manhã: “Por detrás do verde monte
/ (não-verde-oliva / não-verde-musgo / verde-não-verde / não-verde-mar) / por
detrás do verde monte / (não-verde-mata / ver de perto: entulho) / por detrás
do verde-azinhavrado monte / de sucata, surge sujo / grafitado / -- cicatrizes, placas, logomarcas”. Os
detritos da civilização industrial, os ícones do mercado, da cultura do
consumo, aparecem aqui como signos de uma era que já anunciou o “fim da
história” e que hoje mergulha num turbulento abismo de incertezas. A poesia de
Antônio Moura está inserida no olho do furacão, e registra, em linhas afiadas e
precisas, fotogramas do Império da Grande Insanidade. O eu lírico está
presente, como na peça Abril, 22, 1999,
rememoração lírica do falecimento de sua mãe, ou ainda em O Jardim do Palácio, com suas metáforas eróticas, mas a voz do
poeta não se impõe, antes se retira, na maioria das peças, para focar a atenção
na materialidade do mundo e da linguagem. Benedito Nunes, no prefácio que
escreveu a este livro, aponta uma operação de despersonalização do autor, traço
característico da lírica moderna: “Em Hong
Kong & Outros Poemas, a despersonalização chega ao auge; o poeta
enquanto pessoa se mantém como espectador de um drama cósmico que ele mesmo
monta, e de que o dia e a noite, o sol e as estrelas, a floresta e a cidade, o
sexo e o amor, inconciliáveis contendores, são as ‘personadramatis’ principais.
Vendem-se estrelas no mercado, especula-se com o ouro do sol.”
A despersonalização
do poeta e o diálogo estreito com a filosofia são ainda mais presentes no
terceiro livro do autor, Rio silêncio
(2004), que é um divisor de águas na obra de Antônio Moura. Se em Dez
e Hong Kong o autor privilegiou uma
estética concisa, fragmentária, dissonante e imagética, que incorpora
procedimentos das vanguardas recentes, em Rio
silêncio temos uma poesia mais discursiva, linear, reflexiva, com o recuo
da fanopeia, que cede lugar para a “dança do intelecto entre as palavras”. De acordo com Benedito Nunes, neste livro
singular há uma “pluralidade de vozes concorrentes”, que “já não são apenas
mitológicas e literárias, mas também filosóficas” (...) Aqui o invisível tem
seu lugar certo, seja como riacho ou rio –
‘o invisível riacho ao encontro de outro’ a lembrar o
‘basruisseaucalonié, lamort’ de Mallarmé – seja como a sombra da sombra que o
homem é”. Para ilustrar esta consideração, Benedito Nunes cita um dos mais
belos poemas do livro: “considerando isso e lembrando que o dia / é um punhado de pó de estrelas / que a noite,
com sua pá, atira / sobre as pálpebras de sono, / que o céu tem som violeta
sobre os / cabelos deste homem que trafega no poente / com cheiro de pólvora
nas mãos”. Poesia filosófica, sim, mas que não abandona a alquimia verbal de
Rimbaud, no uso de metáforas, sinestesias, paradoxos e outros jogos de
linguagem, ela própria um espelho do mundo. Outro poema que se destaca no
volume é Quando, construído numa estrutura de oito dísticos em
discurso contínuo, sem ponto final, como se todos os 16 versos fossem um único
verso, “em ritmo imprevisível”, a anunciar que “nada ao mundo faltará e nada se
/ abalará a este pequeno movimento / de asa, que, ao decolar, vibra, /
imperceptivelmente, a folhagem”. Este poema recorda não apenas a óbvia herança
da filosofia grega (já apontada por Benedito Nunes), mas ainda a linguagem
enigmática dos koans, pequenas histórias sapienciais e enigmáticas da tradição
zen-budista. Antônio Moura é um poeta que dialoga com a cultura, do Ocidente e
do Oriente, de modo inventivo, sem cair no pastiche da erudição ou numa lírica
filosofante em que a referencialidade se sobrepõe ao engenho poético.
A sombra da ausência (2009), título mais recente do poeta publicado
no Brasil, é um cadinho de síntese, em que Antônio Moura revisita temas e
estilemas de seus três livros publicados, aprofundando a densidade do
pensamento e da construção semântica, que fazem do autor um dos nomes mais
consistentes da poesia produzida hoje no Brasil. Segundo Júlia Studart, que
assina o posfácio da obra, aqui “há uma armadilha com a imagem que a aproxima
da vertigem, uma imagem discreta, serena, que parece recuperar uma
ancestralidade perdida, uma certa cena mitológica ancestral, mas que é ao mesmo
tempo a sua constituição dialética do poema, que só lhe parece servir como uma
série de contrários”. Nem sempre, porém, a imagem é discreta nesse livro,
talvez o mais pessoal do autor, em que a ausência anunciada no título é depois
explicitada numa série de composições cujos títulos são nomes e datas, como Armanda, 1920-2001 e Heloísa, 1963-1977. No poema em prosa que abre esta série, temos
construções quase surrealistas, como no parágrafo inicial: “A morte desmonta
relógios. A cada dia, a cada hora, mundo afora, por onde passa.
Relógios-pássaros atravessados por dardos – ponteiros -- certeiros – em pleno
vôo. Relógios-leões com vastos minutos de juba, nuvens-relógios que brisam um
só segundo”.
A composição mais
ambiciosa do livro, porém, talvez seja o Monumento
a Pascal, escrito em Paris e dedicado a Nilson Oliveira. O poema, dividido
em sete partes, começa com estes versos notáveis: “Nunca buscamos as coisas /
mas sim a busca das coisas. / O rei está rodeado de gente / que não pensa senão
em divertir o rei / e impedi-lo de pensar em si mesmo. / Com o coração oco / e
cheio de imundície / corremos despreocupados / para o abismo / -- o último ato,
/ sempre sangrento, por mais belo / que tenha sido o resto da comédia”, em que
o autor vanguardista parodia o conceptismo barroco para expor o seu desencanto
com o “desconcerto do mundo”. Antônio Moura é um palimpsesto onde, em cada
camada de leitura, encontramos novas e imprevistas referências, que fazem da
leitura – e releitura – de sua obra uma operação lúdica, de fruição
intelectual.
(Artigo publicado
na edição de abril da revista CULT, com fotos e poemas inéditos do autor)
Nenhum comentário:
Postar um comentário