domingo, 14 de abril de 2013

A RECEPÇÃO DA POESIA CLÁSSICA JAPONESA EM PORTUGAL (XI)


O diálogo entre Albano Martins e a poesia clássica japonesa atingirá maturidade criativa no volume Com as flores do salgueiro, publicado em 1993, em homenagem ao tricentenário da morte de Bashô, que comparece já na epígrafe: “As cigarras cantam / sem saberem que é a morte / que as escuta”. O livro, uma reunião de 48 poemas escritos na forma do terceto, sem métrica ou rimas (salvo exceções) e incluindo a referência sazonal – “Quando o verão / morre, as amoras / vestem-se de luto”, por exemplo (MARTINS, 2000: 257) – apresenta motivos tradicionais da poesia japonesa, como a gaivota, o rouxinol, a rã, a libélula, a abelha e a montanha, e por vezes conversa com haicais do cânone clássico japonês, como acontece no poema de abertura – “Um mar azul / pintou de branco / o voo das gaivotas” (idem, 251), que responde ao haicai de Bashô o mar escurece / a voz das gaivotas / quase branca” (in LEMINSKI, 1983: 36), numa inversão de luz e sombra. Em outro poema, Albano Martins refabula a saga da rã: “Despida, à tona / da água, a rã / vê-se ao espelho” (idem, 254), desafio também aceito por Eugênio de Andrade e Casimiro de Brito, em suas incursões na micropoesia. A rima – inexistente na lírica japonesa – aparece poucas vezes nesse conjunto de poemas, e nunca de maneira ornamental ou puramente retórica; quando ela é empregada, reforça a intenção temática ou emotiva, como neste poema que recorda a delicadeza e o imaginário lúdico das crianças que caracterizam a poesia de Kobayashi Issa: “Castanha é a cor / do sorriso / do ouriço” (idem, 252). O olhar infantil acompanha diversas outras peças do livro, que nos fazem lembrar, por vezes, da simplicidade e da comunicação direta de um Mário Quintana, ele próprio um poeta de haicai: “A andorinha faz / a sua casa / no vento” (idem). As imagens raras, elemento destacado na poesia de Bashô e Buson, são abundantes no livro de Albano Martins: “Com as flores / do salgueiro / fez a água uma grinalda”, composição que faz referência à árvore mítica da poesia japonesa, o salgueiro. Uma outra imagem inusitada, agora construída num feitio quase teratológico: “Uma concha bivalve: / borboleta do mar, / de asas fechadas” (idem, 257). A desmesura, elemento citado por Paulo Leminski como uma das características peculiares da poesia de Bashô, encontra, no livro de Albano Martins, exemplos como este: “Eclipse: a lua / joga às escondidas / com o sol” (idem, 258). A construção artificial e rebuscada de Teitoku, contraparte da simplicidade e objetividade de Soin, também comparece no volume, que não se prende a um único recurso ou estilo: “O insecto / pede à lâmpada / que lhe empreste os seus olhos” (idem, 260). Albano Martins experimenta várias possibilidades criativas na estrutura do terceto, sem temer o uso do paradoxo, do non sense e mesmo da imagem poética de feitio surrealista, como nesta composição, uma das mais belas do volume: “O rouxinol não sabe / que o seu canto / é verde” (idem, 253). A atribuição de características humanas a animais, a ideias ou objetos inanimados, recurso conhecido como prosopopeia, é cultivada em diversos haicais de Albano Martins, com uma fluência e aparente facilidade típicas da poesia de um outro brasileiro que, ao lado de Paulo Leminski, muito contribuiu para a divulgação do haicai em nosso idioma: Millôr Fernandes.  Poemas como este: “Mais cedo ou mais tarde / o silêncio virá / perguntar por ti”[1], com o seu humor refinado e a incorporação crítica de expressões tiradas da linguagem cotidiana, encontram-se na mesma sintonia que composições como “E o medo que mete / Esse espelho / Que não reflete” (Millôr Fernandes) ou “nem vem que não tem / nenhum navio ou trem / me leva a outrem” (Paulo Leminski). A linguagem coloquial, longe de ser uma dissonância no repertório da poesia clássica japonesa, retoma a liberdade formal e o despojamento da poesia de Bashô, que renunciou ao tom elevado e ao preciosismo da escola de Teitoku para incorporar a fala das ruas e a observação direta das coisas. Albano Martins, como observou José Fernando Castro Branco, não se limitou a seguir a divisão estrófica e métrica do haicai tradicional, mas buscou “o instante poético, a anotação rápida de um momento privilegiado, a fixação do efêmero pela palavra justa em que, como afirma Paz, ‘o instante é incomensurável’ ” (idem).
  



[1] MARTINS, 2000: 262.

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