segunda-feira, 1 de abril de 2013

A RECEPÇÃO DA POESIA CLÁSSICA JAPONESA EM PORTUGAL (IX)


Eugênio de Andrade, assim como o poeta-samurai, também recebeu treinamento militar, expressou o sentimento de vínculo com a aldeia natal e manteve sempre a referência à natureza em seus poemas, numa perspectiva espiritual humanista e próxima ao panteísmo. O crítico literário português Arnaldo Saraiva, ao enumerar as leituras que marcaram a formação literária do poeta, considera “quase obrigatório falar nos gregos (os elementos, o paganismo, o heraclitismo, a ‘melancolia estoica’ referida por Jorge de Sena), nos orientais (o haiku, o budismo zen), em Antônio Botto (...), em Rilke (...) e nos espanhóis da geração de 27, em especial Garcia Lorca” (SARAIVA, 2005: 22). Eugênio de Andrade recusou filiação a Presença, ao Surrealismo ou ao Neorrealismo e sua poesia sempre foi eclética e universalista, bebendo nas mais diversas fontes. Desde os seus primeiros textos publicados, entre 1942 e 1945, praticou o poema breve, em especial a quadrinha, mas também composições com cinco, seis ou sete versos, como esta, intitulada Adágio: “O outono é isto – / apodrecer de um fruto / entre folhas esquecido. / Água escorrendo, / quem sabe donde, / ocasional e fria / e sem sentido” (ANDRADE, 2000: 14). Nesta notável composição não faltam a referência à estação do ano, a montagem cinematográfica, o mistério, a indeterminação e o paradoxo. O poema, escrito em meados da década de 1940, é provavelmente anterior à leitura de haicais japoneses por Eugênio de Andrade, o que nos faz pensar, novamente, no caso de Alberto Caeiro, em que houve extraordinária afinidade temática e estética com a poesia japonesa, sem que houvesse uma relação intertextual planejada. Eugênio de Andrade nunca foi um estudioso do haicai, como Wenceslau de Moraes ou Casimiro de Brito, nem um praticante sistemático dessa modalidade poética, mas encontramos poemas breves, inclusive na forma do terceto, em muitos de seus livros, como Ostinato rigore (1964), Obscuro domínio (1971), Véspera de água (1973), Matéria solar (1980), O outro nome da terra (1988) e Rente ao dizer (1992), para citarmos poucos exemplos.  O diálogo consciente que Eugênio de Andrade estabeleceu com o haicai, como nos três tercetos de Rumores de verão, foi acima de tudo estético, e ele não renunciou a sua própria linguagem poética, pouco afeita ao humor e ao coloquialismo, para glosar a irreverência de Bashô (“Pulgas piolhos / um cavalo mija / do lado do meu travesseiro”, na tradução de Paulo Leminski). A afinidade espiritual entre os dois poetas, podemos formular esta hipótese, aconteceu sobretudo na relação com a terra, os animais, as aves e os peixes; a mística do Eugênio de Andrade, assim como a de Bashô, não se situa num plano transcendental, numa zona etérea além das dimensões do espaço e do tempo, mas, ao contrário, ela acontece aqui e agora, em nossa relação com as estações, paisagens, pessoas e objetos. Conforme observou Arnaldo Saraiva, o poeta português “soube ainda revitalizar o veio do chamado lirismo tradicional, inventando um ruralismo e um bucolismo” (SARAIVA, 1995: 22). Sua maneira de olhar para as coisas era quase fotográfica, extraindo o lirismo possível dos objetos tangíveis. Eugênio de Andrade recorre por vezes à alegoria e à metáfora, “mas nem por isso elas deixam de revelar um fulgor concreto e objetivo que só lhes podia conferir a experiência concreta do mundo (empírico), feita em lugares (concretos) que quase nunca são diretamente nomeados” (idem, 37), embora saibamos, pela biografia do poeta e algumas referências históricas e geográficas, a quais cidades ele em geral se refira, como Povoa, Lisboa, Tavira, Porto ou Coimbra – assim como Bashô mapeou o seu percurso como poeta-andarilho em seus diários de viagem, especialmente Sendas de Oku, redigido quatro séculos antes do nascimento do autor português. A rã de Bashô ressoa na lírica de Eugênio de Andrade, viajando no espaço e no tempo, transformada em outros batráquios, como vemos neste Noturno: “Coaxar de rãs é toda a melodia / que a noite tem no seio / – versos dos charcos / e dos juncos podres / casualmente, com luar no meio” (ANDRADE, 2000: xx).


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