Albano Martins – assim como
Eugênio de Andrade – praticou a poesia breve desde os seus primeiros títulos
publicados, como Secura verde (1950)
e Outros poemas (1951-1952), sob o
influxo da poesia grega (o autor licenciou-se em Filologia Clássica
pela Universidade de Lisboa e traduziu poemas de Safo e Alceu), dos epigramas[1] e
dísticos latinos, da quadrinha portuguesa e outras formas tradicionais,
inclusive o terceto, como nesta composição incluída no livro Coração de bússola (1967): “A vida –
essa invenção magnífica / da morte” (MARTINS,
2000: 44), revelando uma tendência “para a condensação, para a ascese vocabular
rumo a um dizer essencial”, nas palavras do ensaísta português José Fernando
Castro Branco, em seu livro Poética do
sensível em Albano
Martins (BRANCO,
2004: 51). A busca da essência, ou antes
dos “cernes e medulas” na expressão poética (para citarmos a conhecida frase de
Ezra Pound), que no caso de Albano Martins deriva inicialmente de sua formação humanista, de sua predileção pela
poesia greco-latina, se aproxima da arte verbal japonesa pela “concisão
vocabular e estrutural inerente às duas situações” (idem), ao mesmo tempo que se avizinha dos procedimentos da
vanguarda. A partir de Em tempo e memória,
publicado em 1974, Albano Martins pratica uma escrita ainda mais concentrada, em
consonância com as experiências construtivistas da época, desenvolvidas por poetas
como Carlos de Oliveira em Micropaisagem
(1969) e Haroldo de Campos em Lacunae (1969-1974)
e Signância: quase céu (1979). Uma boa
amostra da poética minimalista de Albano Martins encontra-se nestes fragmentos da
terceira parte do poema Modulações:
3.
De
inomináveis
obscuros,
refluentes
sinais
se
tece
a
polpa,
a
medula
do
espaço que habitamos.
*
O
ritmo
do
universo
cabe,
inteiro,
na
pupila
dum
verso.
*
Árvores
que
me doem
na
garganta
Quem
as arranca?
Quem
as planta?
*
Branco,
solúvel
veneno
ao
rés
das
pálpebras
arde
lento.
*
De
lágrimas se molha
o
tempo e a memória.
(MARTINS,
2000: 69-70).
Nesta composição, é notável o
desenho sintático das palavras e frases, dispostas na página numa representação
visual do movimento rítmico: “O ritmo / do universo / cabe, / inteiro, / na
pupila / dum verso” (idem). Não há uma relação de continuidade referencial ou semântica
entre as estrofes, que se combinam de acordo com o princípio da montagem ou superposição,
como acontece na poesia japonesa. O elevado grau de abstração e subjetividade no
poema de Albano Martins, no entanto, contrasta com a representação quase
fotográfica do haicai, que busca o registro de paisagens e situações de contornos
mais precisos – e recordemos aqui Haroldo de Campos, que no ensaio Visualidade e concisão na poesia japonesa
afirma: “No pensamento por imagens do poeta japonês, o haicai funciona como uma
espécie de objetiva portátil, apta a captar a realidade circundante e o mundo
interior, e a convertê-los em matéria visível” (CAMPOS,
1977: 65). Albano Martins irá se aproximar desse princípio imagético/sensorial
em outras seções da composição, como nesta pequena passagem:
Há
folhas
no
tempo
ainda
verdes
ainda
à
espera
dum
fictício
verão.
(BRANCO,
2004: 72).
Neste micropoema construído com
apenas onze palavras, a simplicidade das “folhas / no tempo / ainda verdes” e a
ação inusitada da “espera” de um “fictício verão” recordam algumas peças de
Bashô, como esta composição traduzida por Paulo Leminski: “templo de suma /
ouvi a flauta não soprada / debaixo das árvores” (in LEMINSKI, 1983: 56). A
representação da ausência, tão valorizada nas artes tradicionais japonesas,
assim como os traços imprecisos, assimétricos ou inacabados na pintura, na
poesia e na caligrafia serão elementos constantes na poesia de Albano Martins,
que valoriza o espaço em branco da página, os cortes elípticos e o discurso
paratático, em poemas cada vez mais condensados. A própria distribuição das
palavras e linhas na página sugere a visualidade da escrita caligráfica, como
acontece no poema Aproximações ao real:
Andaimes
para
o vento:
nuvens.
*
Altas
e
solitárias voam
as
montanhas e as águias.
*
Pirilampos
– acrí
licas
vozes do sono.
*
Soltos
ou não – quem pode vê-los? –,
de
vento são os cabelos.
*
À
laranja não
se
lhe tira a casca,
mas
o coração.
(BRANCO,
2004: 101).
Linhas breves, recortadas por
sinais de pontuação e asteriscos, em que descobrimos nuvens e montanhas, águias
e pirilampos, cabelos ao vento e laranjas descascadas, descritos com o mínimo
de palavras, como se o poeta fosse um calígrafo japonês, que escreve o seu
verso em rápidas pinceladas de nanquim sobre o papel. A concisão atinge o seu
ponto máximo, talvez, neste poema de Sob
os limos (1982):
*
De
ciprestes
o
templo
o
tempo,
o
cálcio,
a
cinza.
*
Certifico
o silêncio,
a
podridão do vidro.
*
Das
casas
a
ruína
sem
ruído
(idem,
131-132)
A última estrofe – ou micropoema
– da composição sugere uma referência intertextual a um dos mais conhecidos
haicais de Bashô, o primeiro que comparece entremeado à prosa de sua narrativa
de viagem Sendas de Oku: “a cabana de
ervas secas / o mundo tudo muda / vira casa de bonecas” (in LEMINSKI, 1983: 10). A similaridade temática e
de procedimentos com a poesia japonesa, porém, não derivava – neste momento – de um diálogo consciente
com a arte de Bashô e seus amigos, que Albano Martins então desconhecia[2]. Somente
em 1992, quando publica o livro Entre a
cicuta e o mosto (1992), a forma do haicai aparecerá na obra poética de
Albano Martins, como por exemplo nesta série de poemas:
QUATRO QUARTETOS
1.
Se
houve um paraíso, foi
depois,
quando a maçã
foi
mordida.
2.
A
cabeça da lua
entre
as coxas.
O
sexo do luar.
3.
Solitários,
solidários
ambos
– Hermes
e
Afrodite.
4.
A
um passo
da
luz fulguram,
grávidas,
as espadas.
A primeira composição do conjunto
não descreve um movimento ocorrido nas dimensões do tempo e do espaço, mas remete
a uma hipótese de passado, redesenhando o mito do pecado original como metáfora
erótica – tema desenvolvido nas peças seguintes, especialmente a segunda, a
mais concisa e imagética do conjunto: “A cabeça da lua / entre as coxas. / O
sexo do luar”. Na terceira composição,
aparecem personagens da mitologia greco-romana – Hermes e Afrodite[3] –
que não participam de nenhum acontecimento,
apenas expressam, simbolicamente, solidão e solidariedade. O último poema, com sua imagem das espadas
brilhando sob o sol, é a que mais se aproxima da imagética nipônica, apesar da
presença do adjetivo que transforma o objeto visível em metáfora, logo, em pensamento. Os
quatro poemas breves desta série, embora escritos na forma do terceto (sem
divisão métrica), não guardam nenhuma proximidade com o espírito do haicai, forma
poética indissociável da experiência vivida no tempo e no espaço.
[1]
Paulo Leminski faz uma curiosa analogia a este respeito “Pela brevidade, o
haicai guarda certo parentesco com o epigrama,
a mais diminuta forma da poesia greco-latina, praticada no Ocidente durante o
Renascimento e o Barroco” (LEMINSKI, 1983: 47), opinião compartilhada por José
Fernando Castro Branco, para quem “se encontra no epigrama tudo o que de
essencial caracteriza o haicai” (BRANCO, 2004: 51).
[2] Albano Martins declarou em entrevista a Baptista-Bastos:
“... e se a minha poesia faz lembrar haicais japoneses (que todavia, é bom que
se saiba, só tardiamente conheci), deixe-me lembrar-lhe que não são necessárias
muitas palavras para dizer o amor, o deslumbramento, a paixão. Basta, às vezes,
um oh!, um ah...” (BRANCO, 2004: 51-52).
[3] A mescla de referências na poesia de Albano Martins,
como observou José Fernando Castro Branco, é capaz de conciliar “a
ocidentalidade e a orientalidade, o espírito pagão e o espírito Zen” (BRANCO, 2004:
52).
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