quarta-feira, 21 de julho de 2010

GAVITA, GAVITA (IV)

ela é tão bonita como um sarcófago etrusco, espada sarracena, bi-ombo japonês. seus pequenos pés, que bocas febris e apaixonadas / purificam, quentes, inflamadas / com o beijo dos adeuses soluçantes. a boca, viçosa, de perfume a lírio, / da límpida frescura da nevada, / boca de pompa grega, purpureada, / da majestade de um damasco assírio. ela foi a minha máscara. ela é o meu fetiche. serei então o teu lacaio, teu pajem e eunuco. renuncio a minha vaidade, narciso despido de narciso. sou agora teu mendigo; serei teu diabo, teu criado, teu cão.

gavita, gavita; minha fada e apsara; agora repousa, negra e magra, como galho seco; a pele tensa, de cervo degolado; os olhos turvos, de noite proscrita. estirada, como massa amorfa, ou bolo vegetal; os braços líquidos, de nereida; a voz desfeita, em careta torpe. esticada, como um animal ou coisa; atirada, não, colocada no caixão, digo, em seu leito de extintas exéquias. meninos, esta é sua mãe; vamos deixá-la em paz, é hora de dizer bonne nuit. venham fazer as orações, no oratório; em nome do pai, do filho, do espírito santo, amém. é preciso fechar bem as portas e janelas; reler um soneto de camões; beber o copo de leite; abocanhar o naco de pão; esquecer um verso no idioma páli; fazer-me treva; guardar o grito ancestral no livro de retratos.

ela está enfeitiçada, e me apavora. eu sorvo sua treva, e afundo em visões de taumaturgo. insano, febril, como quem fuma visões de navios e cetáceos, desenho portais de estranhos labirintos, dragões de esquecida tapeçaria, sinos de catedrais submersas. vejo a noite decapitada. ouço a chuva que cai, tênue como o som de um cravo metafísico, remota sonata para medo e medula, no patíbulo das horas. recordo seus olhos de cravos e cravinas. seus olhos de uma tarde em setembro, quando havia um céu de seda e o apito do trem na estrada de ferro. eu via suas mãos crescendo como ventosas, os lábios de estilete, o corpo querendo voar. meninos morenos corriam na estação, sombrinhas e sobretudos criavam asas, uniformes e tabaco gritavam em cinza, um topázio virava uma estrela. esta foi a tarde azul da metempsicose.

gavita, gavita. foi minha culpa, meu pecado, que invocou esse fado? terei perdido a luz de sua luz por uma absurda, obscura vaidade? eis o que os versos me deram, a ardente areia desolada, o rito absíntico do medo. abyssus abyssum invocat. soa a meia-noite; agora, devo cuidar dela. velar seu sono, na madrugada inquieta. abrir seus punhos mudos, para o repouso; repelir do leito a cabeça do lagarto; pendurar suas vestes, guardar caixinhas e estojos, enxugar sua face. oh, senhor dos caminhos que se bifurcam. penso, mais de uma vez, em fazer-me nada entre nadas; partir rumo à nebulosa, mas não posso. ela está enfeitiçada, e treme toda, torva e turva; é fera e fúria. sim, cuidarei dela, e sempre a amarei. um amor obsessivo e triste, amargo e amarelo.

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