quarta-feira, 28 de julho de 2010

FANTASMAS NÃO BEBEM COCA-COLA (VI)

(Segunda Ária de Lúcia)

Tia Vânia cuidou de mim. Ela me ensinou a tocar piano e a preparar tortas de palmito, com vago aroma de desolação.

Não tive o gato siamês que pedi de aniversário, pois ela era alérgica a felinos, homens e outros animais.

Estudei biologia, química, geografia e fiz aulas de dança indiana. Gostava de fumar escondido com os meninos.

— Isso não é coisa de menina, falou-me certa vez a professora Maria da Graça.

Eu adorava fumar escondido. Um maço inteiro de Malrboro por dia, uau, cigarro após cigarro. Tossia que nem uma condenada.

Pouco depois, li o Ulisses de Joyce e beijei na boca pela primeira vez. Que nojo! Levei anos para me recuperar, no divã da dra. Elizabeth.

Os anos se passaram e não fui atriz em nenhum filme de Peter Greenaway. Também não fui cantora, videomaker ou webdesigner.

Tia Vânia insistiu para eu conseguir o diploma de secretária. “Isto é para o seu futuro”, ela dizia, com o olhar grave de um arquipélago.

Hoje, sou a boneca mecânica que ela sempre quis. Apodrecendo entre caramujos de plástico e escaravelhos de isopor.


* * *

(Terceira Ária de Lúcia)

Wolf, você sabe qual é o caminho do inferno?

Passar batom maison désespoir a cada manhã, calçar as botas de putinha yuppie e ir ao escritório, mascando o chiclete de menta.

Separar envelopes e holerites como quem disseca vértebras. Arquivar as tripas em pastas.

Atender o telefone com a vez melódica, cardíaca, de um manequim de loja de casacos.

Escrever relatórios como as fezes de uma lagartixa grávida. Engolir a saliva, em vez de dar uma cusparada.

Esconder os seios dos olhares magriços de fúmeos office-boys jamaicanos com corações e crânios tatuados nos antebraços.

Depois, almoçar na sonâmbula cripta nipônica peixes temperados e cenas lacrimais de videokê.

Cortar pedaços de salmão com o asco encurvado do coveiro. Beber com asco o vinho de arroz entre biombos de paisagem descorada.

Ouvir com asco gravatas cardíacas cacarejarem nádegas disformes, em ecos sombrios de grunhidos.

Baby, esses caras são retratos calvos de paletó e marcapasso, suores telúricos nas costas e voz de grampeador coagulado.

I’am lonely in London, London, is far away.

Somos uns fantasmas, e fantasmas não bebem coca-cola.

Baby, este é o meu pequeno círculo da insanidade. Este é o meu fado e minha saga, jornada de febre e muco.


* * *

Sinfonia pulmonar.

Fréderic sonha novamente em verdes partituras de escarro com a estranha irmã que ele chamava de Menina da Fronteira.

Recorda sua voz profunda de contralto. Seu amor pelos pássaros e clavicímbalos, seu temor aos lobos e trompetes.

Houve uma vez, em Varsóvia, uma feira circense de italianos. Depois vieram baionetas e a longa viagem no vagão de trem até Viena.

Por que soldados sempre degolam poetas, estátuas e pianistas?, ele pensou.

Houve a pensão onde ele conheceu o amor de uma cortesã. O mercador judeu que comprou seu relógio de ouro. A catedral neoclássica que inspirou certo prelúdio.

E houve Paris.

Com seus deuses de mármore e pálidas princesas que aplaudiam adocicadas melodias, sonhando com aventuras sob a lua muçulmana.

Com suas vielas escuras de operários maltrapilhos e procissões solenes de velas e de cruzes, panos vermelhos e incensórios.

Com suas fábricas de lágrimas e seus periódicos pontuais, onde colunistas de cavanhaque discorriam sobre o Palais Royal.

Algum dia, haverá ali uma matança, pensa o polonês, deitado na areia junto à sua dama, que apenas o contempla, com olhar doce, terrível, indefinido.

George chupa o pau de Fréderic.


* * *

(Quarta Ária de Lúcia)

Wolf, você já deve imaginar o final da história. Sim, já pensei em brincar de Sylvia Plath, mas não escrevi nenhum poema.

Cortar os cabelos e virar monja budista? Seria uma saída, se eu não fosse tão ninfomaníaca. Além disso, nunca fui muito boa em sânscrito.

Pelo amor de Deus, nem me fale em posar para a Playboy. Eu não teria como pagar os caras, e ainda não fiz lipoaspiração.

Fugir para a Austrália seria lindo, se não tivesse medo de viajar de avião. Wolf, desculpe, nunca fui boa humorista. Talvez só saiba chorar.

Não, não é verdade. Eu sei escrever. Talvez apenas isso tenha me ajudado a suportar essa rotina absurda, epilética, essa vida vazia.

Eu posso sonhar, criar histórias. Foi a Menina da Fronteira que me ensinou. Você também a conhece, não é?

Se não posso mudar a vida, posso escrevê-la do jeito que eu quiser. Tudo é escritura. Nada é mais real que a página de um livro.

Escrevendo-me, posso virar top model, receber a Palma de Ouro em Cannes ou ser a rainha da Inglaterra.

Ou ainda, ser a Dona Virgo das cantigas lusitanas e ter o meu próprio Romanceiro.

Nada disso, porém, seria convincente; estou presa, talvez, a certos princípios de fabulação.

Confesso, não sou muito moderna. Tá legal, sou meio século XIX. Afinal, ninguém é perfeito, não é?

Preferi escrever algo mais simples: retratar minha rotina de animal triste e vencido, mas com uma diferença: você.

Sim, Wolf, você é meu personagem.

Desculpe-me por não dizer isso antes, mas não fique triste. Vamos ficar juntos para sempre, eu prometo.

Sou uma moça romântica.

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