segunda-feira, 21 de junho de 2010

UMA CONVERSA COM CLAUDIO WILLER (IV)

CD: Em seus “poemas da loucura”, o romântico alemão Hoelderlin antecipou recursos da poesia moderna, como a estética do fragmento e o texto não-linear. O psicanalista Isaías Mehlson, a esse respeito, fez um interessante comentário, afirmando que “o inconsciente é uma consciência não-discursiva”. Essa ruptura com a lógica narrativa e sintática está presente em diversos experimentos de vanguarda, como o Lance de Dados de Mallarmé, o futurismo, o dadaísmo. Já a poesia surrealista foi acusada por certos críticos, ligados à poesia concreta, de ser uma tentativa de restabelecer o verso, ou seja, o discurso e a sintaxe. O que você pensa a respeito?

CW: Eu cito essa visão fenomenológica do inconsciente de Isaías Mehlson em alguns lugares. Hölderlin louco e Gérard de Nerval em surto são modernos justamente por produzirem obra não-discursiva. Agora, veja que interessante, com relação a críticas ao surrealismo: há duas vertentes de crítica, dizendo exatamente o contrário. Uma crítica de um marxismo mais soviético, acusando-o de irracionalismo, e (isso até mesmo em um crítico da envergadura de Antonio Candido, e confesso que não entendo como é que pode, ao mesmo tempo ele apontar a importância de Clarice Lispector e, com relação a Rosário Fusco, fazer esse tipo de afirmação) reduzindo-o a sintoma de uma crise burguesa. E a outra crítica, acusando-o justamente do contrário, de racionalismo, em Haroldo de Campos, que o chamava de filho bastardo da lógica, ou em Leila Perrone Moisés, que chegou a indigitar Breton como sendo racionalista ou cartesiano ou algo assim, tempos atrás em um artigo no Jornal da Tarde que eu precisava recuperar).

Pois bem. Então, vamos distinguir entre pensamento lógico, fundado no princípio da identidade, de que, A sendo A, e B sendo B, então, A não pode ser B, e pensamento analógico, enxergando as correspondências (no sentido de Baudelaire, mesmo) entre A e B. Recentemente, em palestra no congresso internacional “O Surrealismo: Atualidade e Subversão”, realizado no campus da Unesp em Araraquara, entre 14 e 16 de agosto, mostrei como a ensaística de Breton recorre muito mais ao pensamento analógico do que lógico (até no Segundo Manifesto, em pleno furor marxista, ele se permite tecer considerações sobre a mesma conjunção planetária que teria presidido ao nascimento dele, de Eluard e de Aragon — olha, se recorrer à astrologia não é pensamento analógico, então não sei o que é). Permiti-me apontar como exemplo de leitura surrealista o capítulo em Volta, a minha narrativa em prosa, sobre Nadja de Breton, mostrando como essa leitura é aberta, ao contrário daquela que utiliza paradigmas, teorias literárias, forçosamente fechadas, pelo modo como vou atrás de sincronias, correspondências, acasos objetivos por sua vez tomados como reais. Quanto à poesia surrealista, ela é plural, inclui muita coisa tendente ao que faziam e viriam a fazer os construtivistas. Agora, é sempre regida pela analogia. Até perguntei, no meu artigo na Cult, por que, então, quando registramos sonhos, eles se parecem com obras surrealistas, enquanto poesia concreta, na sua manifestação mais típica, nem em pesadelos...

CD: Ainda é possível o surrealismo hoje?

CW: Acho que, em primeiro lugar, as pessoas têm que ler surrealismo, aqui no Brasil — tem muita gente dando opiniões as mais disparatadas, sem saber direito do que se trata. O fundamento, a idéia da contradição entre poeta e sociedade, do prosseguimento da rebelião romântica, continua valendo. Movimentos e ações coletivas inspiradas no surrealismo, acho perfeitamente possíveis, e seria muito bom se acontecessem. Percebo, hoje em dia, um tipo de cultura ou de movimentação underground que tende ao surrealismo, incorporando, é claro, a beat e outras tendências rebeldes e marginais. Isso está acontecendo, neste momento, nos Estados Unidos, com o grupo de Chicago. Algo disso, vejo em um projeto como o da revista Azougue — também em nossa revista eletrônica, do Floriano Martins e minha, Agulha, http://www.elsonfroes.com.br/www.agulha.cjb.net , entre outros lugares, os quais vejo como registros, estações retransmissoras, não exclusivamente surreais, é claro. Neste número da revista Cult, que saiu enquanto respondo a suas perguntas, trato de burocratização do conhecimento. Surrealismo continua um grande antídoto, um instrumento de combate.

CD: O sonho das vanguardas era unir o “mudar a vida” de Rimbaud ao “mudar o mundo” de Marx. Como você vê a atual crise das utopias?

CW: Olha, “crise das utopias”, tem muita gente falando nisso pelo encerramento do ciclo dos regimes fechados, burocráticos, de planejamento central, da esfera do “socialismo real”, enfim, do modelo soviético. Mas essa nunca foi minha utopia, nem esta é minha crise, pois jamais esperei qualquer coisa desse tipo de regime, sempre os achei autoritários. Sou anarquista, e minhas utopias estão no mesmo lugar onde sempre estiveram. A rebelião individual, inspirada em Rimbaud e tantos outros, continua um caminho, talvez o caminho pelo qual seja possível seguir.

CD: Além do naufrágio do stalinismo, que colocou em crise as outras propostas de esquerda também, você não vê uma crise mais ampla, no sentido de ausência de uma proposta ética, espiritual ou humanista? Não houve um retrocesso em relação às rebeldias libertárias da década de 60? A sociedade neoliberal, com suas longas jornadas de trabalho e o ideal yuppie não trocou a contestação pelo conformismo, o peiote pela cocaína, droga de executivos que querem produzir mais?

CW: Sim, houve retrocesso. Mas na mesma proporção em que contracultura teve algo de modismo, de cultivo de uma exterioridade, de estereótipo, padronização, massificação, como se puxar um fumo ou tomar um alucinógeno ou escolher um repertório musical fosse, em si, mudar alguma coisa. O retrocesso já estava dentro, contido naquele período. Agora, neste momento, há crise, talvez esgotamento do projeto neoliberal. Mas quero saber o que irão propor em seu lugar. Não pode servir como defesa ou justificativa dos regimes fechados. Propostas éticas, espirituais, humanistas, existem. A questão é se irão adquirir caráter coletivo, como irão se projetar em forma de movimentos, de algum modo de ação.

CD: A opinião de um escritor tem importância, hoje, no Brasil? O que a UBE tem feito no sentido de resgatar o papel do escritor como consciência crítica da sociedade?

CW: Escritor consagrado é formador de opinião, sem dúvida, além de produzir realidade. Jorge Amado, que morreu há pouco — ele produziu Brasil, constituiu identidade. Era sócio da UBE, participou de um congresso de escritores, em Portugal, 89, do qual eu era um dos organizadores. Bela figura. Olha, diante de certas políticas literárias meio mafiosas, acho exemplar o comportamento dele — levar o Campos de Carvalho para ser publicado na Civilização Brasileira, apadrinhá-lo, quase — ele, Jorge, realista, Campos de Carvalho surrealista, ele militante, o outro nem aí...

A UBE procura defender os direitos do autor, políticas culturais democráticas, enfim, age em um plano institucional, além de promover atividades associativas. É uma entidade plural, com um quadro de sócios grande, que abrange uma diversidade de escritores, correspondendo a níveis e registros distintos do que se poderia chamar de consciência crítica da sociedade. Acho que o escritor desempenha esse papel através de sua obra, independentemente de uma entidade tentar resgatá-lo ou não. UBE pode ser um espaço de convivência, de diálogo, e instrumento ou meio para manifestações e tentativas de intervenção política nessas questões que mencionei acima, a começar pela democracia e liberdade de expressão. Sempre foi. Que interessante isso, Jorge Amado e Zélia se conheceram naquele congresso de escritores de 45, da ABDE, entidade da qual a UBE é sucessora... Você vê o que pode rolar (rolou bastante, no que me diz respeito) em entidades de escritores... Quem pensa que é de uma austeridade imitando cerimonial de Academia está enganado. Ao menos, comigo de presidente... Aliás, nesse aspecto, o informal, o não-oficial, o currículo da UBE é bom. Uma hora lhe conto umas histórias.

CD: A poesia é uma forma de sapiência, de loucura ou de retorno à infância?

CW: Tudo isso e muito mais. A imagem do Octavio Paz — a outra voz — acho perfeita.
(FINAL)

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