domingo, 23 de outubro de 2022

PARA DESAFINAR O SILÊNCIO DOS CONTENTES

 










A literatura brasileira morreu? Não, ela está viva, muito viva, só não encontra recepção adequada da crítica literária que, esta sim, morreu, ao menos nos espaços tradicionais onde antes ela se manifestava. Os grandes jornais diários extinguiram seus suplementos de cultura, como o antigo Folhetim ou o caderno Mais!, do jornal Folha de S. Paulo,  o Suplemento de Cultura do Estado de S. Paulo e o Suplemento Literário de Minas Gerais, substituídos por editorias de variedades que preferem abordar filmes de sucesso comercial, best-sellers de grandes editoras ou programas de televisão. 

A devastação do jornalismo cultural é antiga, vem desde a reforma editorial dos jornais diários que sucedeu à queda do regime militar, em 1984, quando a imprensa tirou a sua máscara de “pluralista e democrática” e se assumiu enquanto segmento empresarial que visa o lucro, similar à agropecuária e aos açougues, deixando sua ideologia cada vez mais explícita, desde os editoriais até os enfoques dos artigos (supostamente) de informação. 

No campo do neoliberalismo, a cultura vale apenas os anúncios publicitários pagos por grandes editoras, pela indústria fonográfica ou distribuidoras de cinema. As poucas revistas mensais que dedicam algum espaço (cada vez menos) à literatura, por sua vez, têm a “curadoria” de grupos estreitos, que só publicam resenhas de autores que fazem parte de suas “panelinhas” de ferrabrazes. E assim a crítica literária minguou, ao menos na mídia impressa, embora sobreviva nas universidades públicas, nas pesquisas de mestrado e doutorado, que apresentam trabalhos de alta qualidade, mas, no entanto, ficam restritas aos muros acadêmicos. 

Há revistas eletrônicas de qualidade na internet, como Germina, Musa Rara, Mallarmargens, Zunái e muitas outras, porém, não são publicações especializadas na crítica literária; são revistas de cultura, que mantêm viva no Brasil a circulação de nossa melhor poesia e prosa, e também obras de artistas plásticos, entrevistas, artigos de polêmica, entre outras pautas. 

Por todas essas razões, os editores do Banquete – que pedem essa palavra de empréstimo ao ideário antropofágico de Oswald de Andrade, no ano do centenário da Semana de Arte Moderna – resolveram criar a presente publicação, que procura conciliar o pluralismo com a exigência da qualidade, sem endeusarmos úteros angelicais de supostos cânones fabricados pelo marketing rumoroso. 

Banquete não se curva aos poderosos das grandes editoras; nosso princípio é oferecer aos leitores leituras críticas de obras em prosa e poesia que se destacam pela inventividade formal, pela originalidade temática, pela consistência, enfim. Em nosso festim antropofágico, só queremos as carnes mais suculentas, não as peles e os ossos oferecidos nos açougues pelos sobrinhos do Capitão. 

Enfim, é isso. Viemos para desafinar o silêncio dos contentes, parodiando outro antropófago visionário, Joaquim de Sousândrade, em seu épico O guesa. Agora, arregacem os caninos e boa leitura!

(Editorial-manifesto do Banquete -- Jornal de Resenhas e Crítica Literária. Endereço: https://www.banquetejornal.com/blog)

quarta-feira, 12 de outubro de 2022

ESPELHOS D’ÁGUA EM NOITES SEM LUA

 






Poesia é um lugar que não se revela, do poeta Sidnei Olívio, publicado pela editora Penalux, é um livro singular, em que o autor revela raro manejo das artes do verso, sensibilidade musical acurada, criação sutil de cenas e atmosferas e um certo abstracionismo verbal, notável sobretudo nesta composição sem título, uma das mais densas e bem elaboradas do volume: “os olhos atrás do espelho: / pálpebras / que não se abrem por inteiro / (alguma coisa de encanto um canto / que atravessa o silêncio / e não se diz”, peça de extrema delicadeza que convida o leitor para uma viagem interpretativa, sem planos prévios ou roteiros. Na segunda parte do poema, o autor prossegue: “pele nua escassa melanina / que recusa o sol / a luz que reflete / o nome apenas / invólucro tênue / como a pena modulando / a palavra / é voo”. Temos aqui um jogo engenhoso entre o visível e o invisível, o audível e o inaudível, o pensável e o impensável, enfim, um jogo nas fronteiras, nos interstícios do pensamento e da percepção sensorial. Neste sentido, é um poema logopaico, palavra que se refere à “dança do intelecto entre as palavras”, segundo o poeta e crítico norte-americano Ezra Pound. Se é possível relacionarmos esta poesia com a discussão sobre o conhecimento e a reflexão existencial, ela é, antes de tudo, metalinguística: antes de dizer algo sobre o mundo e as coisas, e até mesmo sobre o íntimo, ela diz algo sobre si mesma, como lemos em outra peça: “toda imagem multiplicada / reluz a nudez/  :/  pele / tinta / pincel / o papel ainda que longevo / é palco de desejos / e gestos”, poema de extrema concisão que recorda a arquitetura poética japonesa, inclusive pela disposição geométrica das linhas na página, quase à maneira da caligrafia oriental. O debate sobre o estar no mundo está presente, porém de um modo tão sutil e misterioso que ultrapassa qualquer viés confessional, como lemos nestas linhas: “tudo o que contorce dentro do corpo / suspensos como nuvens / voltam sempre a desaguar / invento pois dois longos olhos / à frente do abismo”. Estamos diante de um livro de enigmas, um livro-oráculo, voltado ao leitor capaz de decifrar “o reflexo impossível dos espelhos d´água em noite sem lua”. Seria tarefa muito difícil descobrir a vertente poética em que se situa o autor, pela extrema singularidade de seus versos, mas poderíamos incluí-lo entre poetas portugueses como Fiama Hasse Pais Brandão, Antônio Ramos Rosa, Luiza Neto Jorge, um certo Herberto Helder, ou talvez junto a poetas brasileiros insólitos, como Roberto Piva ou Hilda Hilst. É uma poesia inclassificável, que nos surpreende a todo momento por sua beleza e alto lirismo.   

Sidnei Olívio é um poeta raro entre os raros.

 

Claudio Daniel 

UMA MENSAGEM DENTRO DA GARRAFA

 



 





A presença do índio na literatura brasileira é registrada desde a Carta de Pero Vaz de Caminha (“homees pardos todos nus sem nhuua cousa que lhes cobrisse suas vergonhas”, “moças asy nuas que nom pareçiam mal”), primeiro documento literário produzido nesta Terra de Santa Cruz. No século XVI, está inclusa no vocabulário do poeta baiano Gregório de Matos, em sua inventiva miscigenação de termos indígenas (caramuru, paiaiá, cobepá, aricobé), africanos, latinos e lusitanos, e também na temática de cartas e sermões do padre Antônio Vieira, como o Sermão da Sexagésima ou o Sermão da Epifania, mas é a partir do Romantismo que o índio será protagonista dos poemas de Gonçalves Dias, como I Juca Pirama, e dos romances de José de Alencar, como Iracema e O guarani, ainda que numa feição europeizada, que Oswald de Andrade chamaria, no Manifesto Pau-Brasil, de “índio de lata de biscoito”. 

Apesar da retórica pomposa e idealizante, esses autores incorporaram no léxico português palavras como maracá, cauim, piaga muçurana, bem como as referências a armas, adereços, instrumentos musicais e outros objetos utilizados no cotidiano pelos índios. O primeiro poeta a tratar do tema indígena com enfoque crítico foi o maranhense Joaquim de Sousândrade, autor do poema épico O guesa errante, que denuncia os males do colonialismo português, da exploração da mão-de-obra escrava e da catequização jesuíta, responsáveis por um processo de genocídio humano e cultural que persiste até os dias atuais. Sousândrade, o mais moderno de nossos românticos, na seção do Guesa intitulada O inferno de Wall Street, no Canto X, irá ainda além, observando a hegemonia do capitalismo financeiro e suas consequências para os povos de países sob o jugo do grande capital internacional (“Desde Christie, a Grande Bretanha / Se mede co’o Império que herdei... / Rainha-Imperatriz...! / = Os Brasis / Vos farão Imperador-Rei...”). 

No episódio do Canto II intitulado Tatuturema, palavra que designa um festim oferecido a Jurupari, na região do Alto Solimões, na Amazônia, Sousândrade escreve: “Missionário barbado / que vens lá da missão / Tu não vais à taberna / que interna / tens em teu coração”. A denúncia da hipocrisia religiosa e a exaltação da sensualidade indígena estará presente, sobretudo, em outro poeta de nosso Romantismo, Bernardo Guimarães, autor de peças de irreverente erotismo como O elixir do pajé, onde lemos: “E ao som das inúbias, / ao som do boré /, na taba ou na brenha, / deitado ou de pé, / no macho ou na fêmea / de noite ou de dia, fodendo se via / o velho pajé!”. No poema de Guimarães, o índio é retratado não como um Siegfried amazonense, ao estilo d’Os Timbiras, mas como o puro pagão, sensual e feiticeiro, tão estranhamente outro, em contraste com o pundonor lusitano.  Este poema, assim como A origem do mênstruo, também de Guimarães, foi recuperado na segunda metade do século XX pelo poeta mineiro Sebastião Nunes, que resgatou do esquecimento essa lírica erótico-satírica, que ele editou em álbum primoroso pelo selo Edições Dubolso.

Será a partir do Modernismo, porém, em especial com Mário e Oswald de Andrade e Raul Bopp, que nossa literatura irá não apenas resgatar o vocabulário, costumes, religião, mitologia, folclore e manifestações artísticas dos povos indígenas, mas também interagir com eles, de maneira criativa, em diálogo com as vanguardas europeias, no Movimento Antropofágico, responsável por obras como Macunaíma, de Mário de Andrade, Cobra Norato, de Raul Bopp, e, nas artes visuais, por quadros como A cuca e o Abaporu, de Tarsila do Amaral. Os modernistas buscaram nas culturas indígenas um antídoto libertário à sociedade patriarcal, católica e aristocratizante de nossas elites provincianas. O recurso utilizado pelos modernistas para dessacralizar os valores e práticas discriminatórias daquela sociedade, nascida da monocultura, da catequese e do escravismo foi o escracho, o deboche, o sarcasmo. 

Assim, Oswald de Andrade escreve em seu poema Erro de português: “Quando o português chegou / debaixo de uma bruta chuva / vestiu o índio / que pena! fosse uma manhã de sol / o índio tinha despido / o português”. Mário de Andrade, por sua vez, irá recuperar os mitos indígenas, reinterpretados sob viés paródico – como o Curupira, Ceiuci, Ci, a Mãe do Mato, as icamiabas –, em seu romance-rapsódia Macunaíma, onde a demanda do Santo Graal é substituída pela busca ao muiraquitã, amuleto amazônico roubado por Piaimã, rico fazendeiro de São Paulo que gostava de comer carne humana.

Todo esse breve histórico da presença indígena na literatura brasileira foi necessário para situarmos o novo livro de Edir Pina de Barros, Lâminas da barbárie (Kotter Editorial), poeta e antropóloga que desenvolve o tema de maneira original e consistente. A obra é dividida em três partes, Conquista, Barbárie Bakairi, em que a autora desenvolve, em seu percurso criativo, temas como a tomada das terras indígenas, o genocídio, a perda da identidade cultural, a transformação do meio ambiente pelos interesses econômicos, o ocultamento da história das nações indígenas, usando para isso as mais diversa estruturas formais, como o soneto camoniano, o poema em prosa e o pantum –composição poética oriunda da Malásia, com os versos divididos em quartetos e as rimas cruzadas. Nesse gênero pouco praticado em nossa literatura, Edir Pina Barros escreve:

 

MUTAÇÕES
(Pantum)

Um mar de soja é tudo o que se vê
agora ali, nos campos do cerrado,
não resta mais sequer um pé de ipê
nem olhos d’água, tudo foi arado;
 
agora ali, nos campos do cerrado,
não correm mais riachos transparentes,
nem olhos d’água, tudo foi arado 
de soja e sorgo, viçam as sementes;
 
não correm mais riachos transparentes,
nem lambaris pequenos, mas ladinos,
de sorgo e soja, viçam as sementes;
por conta da ganância, desatinos;
 
nem lambaris pequenos, mas ladinos,
porque foram as matas derrubadas,
por conta da ganância, desatinos, 
secaram os riachos, as aguadas;
 
porque foram as matas derrubadas,
não mais  existem bichos pequeninos, 
secaram os riachos, as aguadas
onde pescavam homens e meninos;
 
não mais existem bichos pequeninos, 
nem peixes não existem mais nos rios
onde pescavam homens e meninos,
(os leitos estão secos, tão sombrios);
 
nem peixes não existem mais nos rios
- piquiras, lambaris ou matrinxãs –
os leitos estão secos, tão sombrios,
nas beiras não se têm panapanãs;
 
piquiras, lambaris ou matrinxãs,
não buscam, rio acima, seus berçários,
nas beiras não se têm panapanãs
nem cantam juritis, japus, canários;
 
não buscam, rio acima, seus berçários,
os peixes que passavam reluzentes,
nem cantam juritis, japus, canários.
que, outrora, ali viviam tão contentes;
 
os peixes que passavam reluzentes,
nos rios desses povos milenares,
que, outrora, ali viviam tão contentes,
no seu sagrado chão, antigos lares;
 
nos rios desses povos milenares,
(quem olha não entende ou mesmo crê)
no seu sagrado chão, antigos lares,
um mar de soja é tudo o que se vê!

 

 

Em versos impecáveis, com métrica de dez sílabas e ritmo binário, a poeta registra, com clareza cabralina, a mutação geográfica imposta na região do cerrado pelos reis da soja, onde “ não resta mais sequer um pé de ipê / nem olhos d’água, tudo foi arado”. Mutação geográfica que traz consequências para todo o ecossistema, pois agora não há  “nem lambaris pequenos, mas ladinos, / porque foram as matas derrubadas, / por conta da ganância, desatinos, / secaram os riachos, as aguadas; / porque foram as matas derrubadas, / não mais existem bichos pequeninos, / secaram os riachos, as aguadas / onde pescavam homens e meninos”. 

O impacto humano e cultural dessa cruel metamorfose é sintetizada com sutileza na última estrofe: “nos rios desses povos milenares, / (quem olha não entende ou mesmo crê) / no seu sagrado chão, antigos lares, / um mar de soja é tudo o que se vê!”. A vocação colonial e semicolonial do Brasil para a monocultura destinada à exportação, tema abordado por Gilberto Freyre em seu clássico Casa grande & senzala, é aqui sintetizado de modo lapidar pela poeta, que na segunda seção do livro, Barbárie, faz o relato do assassínio das comunidades indígenas, iniciado em 1500 e continuado até os dias atuais. Um morticínio humano e cultural, como a autora registra no primeiro poema da série (sem título):

 

I

 

Quantas balas

em cinco séculos

para exterminar

mais de mil povos?

 

Bugreiros, capangas,

batedores de mato,

correrias e chacinas,

“guerras justas”, álcool.

 

 

II

 

Quantas balas

no tekoha sagrado

dos Guarani-Kaiowá?

Nem Ñanderu sabe.

 

Milícias encapuzadas

fecham o cerco,

acuam, matam

como se matam bichos.

 

Nesta composição, como em outras do volume, Edir Pina de Barros utiliza de forma expressiva, quase mântrica, palavras como tekoha ou tekoa, termo que significa o “lugar onde os Kaiowa realizam o seu modo de ser, espaço geográfico em que se realiza a vida econômica, social, política e religiosa”, conforme nota da própria autora. Em outra composição, agora escrita em prosa, a autora nos remete à quase invisibilidade do massacre dos Akroá-Gamella, em timbre seco de crônica jornalística, como em algumas peças de Manuel Bandeira:

Luta desumana, desigual.  Duas centenas de homens com armas de fogo, facões, pedaços de pau, contra trinta homens, mulheres, crianças, correndo e caindo no pasto: vinte e dois feridos. Um foi baleado no tórax, na perna, golpeado na testa e viu serem decepadas as suas duas mãos. Outro, ferido à bala, depois de muitas pauladas teve sua mão direta arrancada por golpe certeiro de facão. Seus joelhos foram cortados nas articulações para que não pudessem correr, como se faz com búfalos e bois que invadem roça dos outros na baixada maranhense.  O agressor relatou que precisou “pisar em suas pernas para retirar o facão que ficou cravado no osso, como quem retira um machado cravado no tronco de uma árvore”. Ribamar não dança mais, a sua mão reimplantada não lhe pertence mais: não bate tambores rituais, não caça-pesca-planta, não tem forças para nada, nada suporta, apenas dói.  

 

 Na terceira seção do livro, por fim, Edir Pina de Barros poetiza a saga dos bakairi, grupo indígena que habita o centro de Mato Grosso, em particular as terras indígenas de Santana (Iemârire) e Bakairi. Numa sequência de poemas numerados, sem título, a poeta nos apresenta a uma insólita paisagem onde “Nenhuma fruta é a mesma / que mãos estranhas colhem. / Nenhuma pedra é a mesma / que outros olhos veem. / Tudo, tudo é diverso. / Vê-se a Serra Azul outro mundo, outro universo. Não só se vê o diverso / escuta-se o diverso / porque as falas são outras.

Os mapas são outros, / outras são as águas / outra língua e pensar. / As correlações são outras, / as traduções são outras, / e o tempo é circular”. Nessa terra de radical estranheza, devastada pela sanha do saque, a magia e o mito insistem em existir, apesar da cruz e da espada, como lemos nesse belíssimo poema em prosa de Edir Pina de Barros:

 

HOMEM-JAGUAR

 

Em nada lembrava o homem da noite anterior. Era outro quando evocou seu poder xamânico na kâti pouco iluminada. Com assovio agudo invocava seus piajes. Dialogava com senhores de vários domínios e de poderes diversos. Entre nuvens de fumaça se debruçava sobre a rede de algodão. Lutava para curar a criança em febre. Atravessara os reinos sombrios dos rios subterrâneos. Cortara os ventos e campos à procura de uma de suas almas perdidas. Em transe, falara a língua das onças e dos mortos para salvar sua vida. Amanhecera. Agora estava ali, sentado no banco zoomorfo. O olhar perdia-se no chão do taséra. Daquele homem-jaguar, poderoso e altivo, nada restara.  O dia trouxe consigo a realidade do jugo colonial.

  

Numa leitura intertextual, comparativa, poderíamos comparar este poema, por sua perfeição formal e riqueza de imaginário, a certas composições de Josely Vianna Baptista – outra estudiosa de mitos brasileiros e ameríndios – em livros como Roça barroca, e ainda aos orikis iorubás traduzidos por Antônio Risério, em seu livro essencial Oriki Orixá, dois marcos da etnopoesia no Brasil, porém, há aqui um elemento diferenciador: ao lado da recuperação da fala do outro, em toda a sua beleza e singularidade, da recuperação de sua língua, de seus deuses, cantos e danças, temos o olhar contemporâneo de quem registra, para a posteridade, o brutal assassinato de centenas de povos da floresta, os motivos econômicos por trás do morticínio e o silêncio ruidoso daqueles que têm olhos para ver, e não veem. O livro de Edir Pina de Barros não é apenas uma bela reunião de poemas, mas uma mensagem dentro de uma garrafa jogada ao oceano, para ser descoberta, quem sabe, em algum futuro mais feliz para a nossa nação.

 

Claudio Daniel 

terça-feira, 11 de outubro de 2022

O ESPANTO EM FORMA DE POESIA

 










À beira da palavra, livro de estreia de Paola Schroeder, reúne uma série de composições líricas em que se destacam a temática erótica, o mergulho existencial, a reflexão sobre o tempo, o amor, a beleza, a poesia, a morte e as relações interpessoais, por vezes com tinturas de melancolia: “Tudo na alma é assombro, tudo desencontro”, escreve a autora paranaense, nascida na cidade de Toledo.  Esta é uma escrita ácida, que nos faz lembrar da concisão cortante de um Paul Celan – “Forca virada para o inferno. / À boca uma fenda, um abismo”. A sintaxe é reduzida ao mínimo necessário para a expressão poética e no campo semântico vigora o princípio da economia construtiva, para que não haja desperdício – nesse sentido, ela se afasta do barroquismo de um Herberto Helder, com o qual tem outras afinidades, como a celebração do corpo. Há também uma abstração metafórica que solicita a participação imaginativa do leitor, que pode traçar diferentes rotas interpretativas, e sobretudo imagens de alto impacto, em que não estão ausentes a ironia, o sarcasmo e o humor negro. Paola Schroeder apresenta uma escrita poética densa, enigmática, de alguém que costuma “habitar labirintos”. O seu cadinho utópico –  não no sentido coletivo, talvez presente de modo indireto em certos poemas que tratam da exclusão social urbana – “A ideia de pátria se dissolve / na carne cortada pelo frio” –, mas no sentido de uma utopia individual, sensorial e estética, é a busca da beleza como antípoda da mesquinharia, da miséria material e de espírito, enfim, da barbárie contemporânea, que no lugar da divindade ou da arte presta serviço devocional ao lucro capitalista, à violência, à ignorância e à completa ausência do espírito de compaixão e solidariedade. Ao eleger a experiência sensorial e o cultivo do belo, a autora não se isola numa torre de marfim ou de ametista, mas exibe para nós, em um espelho imaginário, a feiura do mundo em que vivemos. Encontramos, nessa poesia inquieta, a influência das artes visuais, sobretudo do desenho anatômico, com descrições imagéticas minuciosas – “Pescoço traçado por finas ondas. / Colo brilhante de linhas e sombras. / Pele fluída revela veias, ossos e movimentos”, e ainda figuras de linguagem como o paradoxo e o oxímoro – “Minha infância envelhecida”, “Amarelo que te quero azul”; “Me alimento do tempo que em mim não há” – e imagens poéticas quase surrealistas: “Meus olhos nas tuas mãos / Tuas mãos dentadas / Meus olhos sem asas”. O universo feminino, noturno, aquático, lunar, regido por Lilith, dá o tom em diversas composições do volume, numa releitura menos romântica do que sensual, quase mística e órfica, em paralelo possível com Herberto Helder e Hilda Hilst: “Antes da fala, / a mulher. / Antes da palavra, / a imagem. / No início do verbo, / Seu corpo. / No fim da boca, / sua boca. / Mulheres de água / em dissolução”. O diálogo consigo mesma, com o seu “duplo” (Doppelgänger), seguindo uma tradição alemã medieval que teve ilustres desdobramentos em autores como Gerard de Nerval e Jorge Luis Borges, também está presente na poesia de Paola Schroeder, como nesta peça notável, da qual citamos alguns versos: “Estou indo / de forma brutal / ao meu encontro. (...) Quem sou eu nessa imagem invertida, / brincando de mimetismo / em busca de dor. / Me farei existência / quando um dia flor”. Estes são apenas alguns dos múltiplos aspectos que poderíamos abordar na imersão nessa poesia de águas profundas, mas talvez sejam pistas suficientes para despertar o interesse do leitor, que em sua jornada nessa insólita e fascinante escrita descobrirá outras camadas de sentido. Paola Schroeder é, sem favor, uma das poetas que mais se destacam no panorama da nova poesia brasileira, aquela que circula na contramão do lobby conformista hegemônico, e sua estrela tende a brilhar cada vez mais, com a bênção de todas as deusas. 

 

Claudio Daniel, 2022, ano regido por Iemanjá

A POESIA EM ESTADO DE MUTAÇÃO

 








Neste momento, livro de André Dick (Kotter Editorial), é uma surpreendente coleção de poemas que chamam a atenção do leitor pela imersão no imaginário animal – ou zoografia, como diz o poeta --, pelo humor sutil, inteligente, pelo uso recorrente do paradoxo e sobretudo pela construção vocabular precisa, que deriva da tradição cabralina, mas já aponta para outras direções. Em seus livros anteriores, como Grafias, Papeis de parede e Calendário, o autor gaúcho já se revelou um hábil construtor de arquiteturas minimalistas, que valorizam a  materialidade da palavra, a sonoridade, os efeitos plásticos e por vezes se aproximam da fotografia ou da pintura hiperrealista de um Hopper. Nesta nova seleção poética, André Dick mantém as conquistas anteriores, mas procura uma renovação de águas, pela amplitude temática e adoção de novas técnicas, sem se render ao discurso fácil do prosaísmo cotidiano, de humor duvidoso, que (ainda) faz tanto sucesso midiático em nossas letras. O poeta gaúcho prefere buscar o inusitado em imagens como o “esqueleto de pterodáctilo”, “o lobo é o carneiro”, “as estrelas aos poucos se afastando de Saturno” e “um sol de falas múltiplas dentro de uma só voz”. O aspecto lúdico é mais evidente nesse volume do que em sua obra anterior publicada, como se o poeta apresentasse ao leitor uma caixa de jogos e enigmas que não se afastam da realidade imediata, mas a apresentam de maneira inóbvia: uma realidade composta de instantes fugidios, ruídos, silêncios, imagens apressadas, fragmentadas ou mescladas, regidas pela grande ampulheta do tempo. Em seu passeio lúdico por palavras e situações, o olhar-câmera de André Dick registra “flores carnívoras”, “dentes-de-leão”, “o louva-a-deus e os colibris chegando dos jacarandás”, “um pardal bebendo água no nascedouro”. O eu lírico, quando aparece, em geral é de modo logopaico e irônico, à maneira de Laforgue e Corbière: “Sou a favor de ser contrário”, “Sou inimigo de ser inimigo”, “Hoje estive morto  / Hoje senti que fui outro / Hoje vi o oco”, em que notamos a presença da outridade de Sá de Miranda e Sá-Carneiro: o eu é (sempre) um outro, diria Rimbaud. Um eu em metamorfose, uma poesia em metamorfose. A imagem da casa aparece na poesia de André Dick com todo o viés polissêmico possível: é a casa onde morou, a casa que abandonou, a casa dentro de outra pessoa, mas sempre lugar, seja de memória do passado, de vivência no presente ou de encontro amoroso – a casa é o outro.  A mutação das coisas, de sua representação e significados, é talvez uma das chaves de leitura dessa obra, “espelho de cores vivas” que nos oferece toda a possibilidade de combinações cromáticas.

O livro de André Dick, com certeza, é uma das melhores realizações da poesia brasileira dos últimos anos.       

Claudio Daniel

Outubro de 2022


A POESIA NO CAMINHO DO VENTO

 












Alma corsária, novo livro de poemas de Claudia Roquette-Pinto (Editora 34), reúne composições líricas de expressiva musicalidade, aliada ao que Ezra Pound chamava de logopeia, ou “dança do intelecto entre as palavras”. A autora, com rigor na escolha das palavras e no corte preciso dos versos, obtém resultados de notável feitura em sua lírica do pensamento, como “É tudo um risco: / sentar-me aqui, / com o hibisco / roxo e ríspido a perfurar o céu”. Quem já frequentou os livros anteriores da poeta carioca, e em particular Saxífraga e Os dias gagos, conhece sua habilidade em criar estranhas partituras e aquarelas, próprias de um inusitado barroquismo tropical.

Em Alma corsária, encontraremos outras joias, como “a anêmona do vento nas folhas” (que poderia ser um verso do haicaísta japonês Matsuo Bashô), “Minha casa fica no caminho do vento”, “Sempre que o mar, esse bicho / de ventre e visgo de prata”, “Lá embaixo, a terra exibe cicatrizes, / sulcos, / velhas tatuagens”, mas não temos aqui apenas a função poética elevada ao máximo grau, para citarmos o conceito de Roman Jakobson; a função referencial também está aqui. Alma corsária é um livro publicado num dos momentos mais trágicos da história do Brasil, iniciado com as “jornadas de junho” em 2013, que levariam mais tarde ao golpe de estado de 2016 e às eleições de 2018, quando teve início o novo ciclo autoritário no país. Claudia Roquette-Pinto compreende o que acontece à nossa volta e traz para a sua poesia imagens contundentes da farsa trágica, e em especial do período da pandemia, que vitimou 700 mil brasileiros, pelo cruel descuidado com a saúde pública no país. Há um caderno em Alma corsária dedicado a esse tema, em que encontramos linhas como essas, do poema A noite dos 500 mil corpos: “Toda a delicadeza / que semelhava ser nossa / jaz agora, eviscerada / ao rés do chão – ao lado da moça grávida, das crianças e das cápsulas / das balas erráticas  que só encontram a direção do corpo indígena / ou negro”. A poesia participante da autora concilia o fino artesanato de linguagem com o brado vigoroso de protesto, a postura ética de repúdio à barbárie, que encontramos hoje em raros livros de poetas brasileiros, desacostumados ao contato com as impurezas do “real porquanto vil”, para citarmos o verso de Mallarmé. O mergulho subjetivo está aqui, a crítica política também e ainda, de modo discreto, as referências ao budismo tibetano, ou Vajrayana (“Caminho do diamante”), não só pela referência explícita ao lama Chagdud Rimpoche, mas sobretudo pela ideia de compaixão, que podemos entender também como uma ética de solidariedade.

A poesia de Claudia Roquette-Pinto solicita uma leitura inteligente e sensível, capaz de deslizar por suas imagens poéticas que traduzem não apenas flashes de seu mundo interior e sua relação com a linguagem – toda escrita poética é sempre um diálogo com outros textos e autores – mas também uma visão de mundo que afirma a urgência do resgate do humanismo, da civilidade e da própria pólis. Este é, sem dúvidas, um documento de época, um testemunho, que se situa nos escaninhos da melhor poesia produzida em língua portuguesa hoje. 

Claudio Daniel

Outubro / 2022