O CINEMA PARA CICLOPES DE ANDREIA CARVALHO
Andreia
Carvalho pesquisa tradições mitológicas ocidentais e orientais, incorporadas em
sua poesia de maneira bastante criativa, ao lado de referências das artes
visuais, da música e do cinema. A escrita poética da autora curitibana revela
uma sensibilidade e um imaginário que nos fazem pensar em certa poesia
simbolista de Santa Catarina e do Paraná, especialmente em autores ainda não
devidamente incorporados ao cânone, como Ernani Rosas (1886-1955), Dario
Vellozo (1869-1937) e Gilka Machado (1893-1980), mais afeitos à dicção
demoníaca de um Rimbaud e à escrita cifrada de um Mallarmé do que à suavidade
melódica de Verlaine. A ressonância do inquieto signo luciferino permeia a obra
da autora, especialmente em seu livro de estreia, A cortesã do infinito transparente (2011), onde encontramos inusitadas sinestesias, como estas: “Mineralizar
a lágrima / Fazer-se rútilo // Vibrar além da tua sangria / Pelas ervas, pelas
especiarias / Com a estatura do musgo, / dos fermentos, / do sedimento”. Em
outra composição, escrita na forma do poema em prosa (gênero inaugurado por
Baudelaire), lemos uma quase profissão de fé, entre imagens da mais excêntrica
teratologia: “Tenho visões com miríades de seres que pulsam do imaginário.
Vegetais, minerais e animais caminham pelo sangue. Entram pela retina e saem
pelas mãos: letras e imagens. Depois que sangram não se sabe onde está o
mineral, o vegetal e o animal. Carregam no ventre a sagrada comunhão das
ossaturas fantásticas, com plasma de ninfa e sílica e olhos andróginos”. A
alquimia verbal da autora prossegue em seu segundo título publicado, Camafeu escarlate (2012), que apresenta
um título deliberadamente arcaico, como se ela intentasse buscar um timbre que
remetesse à segunda metade do século XIX, aos insólitos logradouros onde
Baudelaire e Jeanne Duval degustavam ópio ou absinto. A voluntária imersão
nesse universo cultural não significa que a poesia de Andréia Carvalho seja
passadista ou paródica, no sentido do pós-moderno, muito ao contrário: ela não
imita formas literárias clássicas, como o soneto, não escreve versos
metrificados ou rimados nem utiliza um vocabulário anacrônico, elementos
visíveis na poesia de outros autores que dialogam como o simbolismo, como o carioca
Alexei Bueno. Andreia Carvalho pratica, nesse conjunto de poemas, uma escrita
concisa, emprega quase sempre letras em caixa baixa e elimina os sinais de
pontuação, recursos frequentes nos poetas jovens mais próximos da arquitetura
minimalista. No poema de abertura de Camafeu
escarlate, por exemplo, lemos estas linhas: “onde estavas / quando eu /
afundava a terra / no lago de nadas //na ejaculação dos signos rútilos / nos
fósseis auto-retratos // não espelhos, vidros / sentenças do convalescente
átrio / não arco-íris, serpente / e vitrais de escamas / a água coagulada”.
Notável, nesta peça, a descrição do ausente por uma sucessão de negações, que
avançam até surgir “um rosto sobre o abismo / de trevas”. A lírica da
negatividade, associada aos temas da solidão, da memória, da angústia, da
infância e do sonho atravessa o livro, construindo as mais inusitadas imagens e
metáforas, como lemos nestas linhas: “há a criança / vermelha / no sótão
coágulo / da memória / (...) / onde não volto mais / escorpiões / vagueiam
pelos dentes do leão”, que nos faz pensar na fúria semântica da melhor poesia
portuguesa da atualidade, a vertente hermética de um Herberto Helder, outra
referência marcante na lírica da autora. Grimório
de Gavita (2014), seu livro mais recente, reúne poemas em prosa escritos
antes das peças que integram seus dois primeiros livros publicados e apresenta,
já no título, a presença do livro de magia (grimório),
associado ao nome da esposa de Cruz e Sousa, vítima da miséria e da loucura. Em
todas as composições dessa obra encantatória, o registro sinestésico e
metafórico e o recurso da compressão semântica (“estrela-trator”,
“sapatos-de-lótus”, “dama-oriax”) criam uma quase nova língua, regida por uma
lógica visual e sonora. Andreia Carvalho realiza, nesse conjunto de invocações
ao lúcifer-da-linguagem, uma das obras mais perturbadoras e belas da novíssima
poesia brasileira.
(Artigo publicado na edição de novembro/2014
da revista CULT.)
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