A voz do ventríloquo (São
Paulo: Edith, 2012, que recebeu o Prêmio Jabuti no ano passado), é o quarto
volume de poemas de Ademir Assunção, que também publicou LSD nô (1994), Zona branca (2000) e A musa chapada (2008, em parceria com Antônio Vicente
Seraphim Pietroforte e o artista visual Carlos Carah), além dos volumes de
prosa experimental A máquina peluda (1997), Cinemitologias (1998), Adorável criatura Frankenstein (2003) e dos CDs de música e poesia Rebelião na zona fantasma (2005) e Vira-latas de Córdoba (2013). Os títulos de seus livros já deixam
explícito o diálogo do autor com o universo das histórias em quadrinhos, do
cinema, da música pop, da contracultura, das mitologias pré-colombianas e do
Oriente — diálogo já bem comentado na fortuna crítica do autor.
Estas referências são comuns a
outros poetas de sua geração, como Maurício Arruda Mendonça, Marcos Losnak e
Rodrigo Garcia Lopes, que compartilham ainda o interesse pela poesia e
concepção de vida dos poetas beats norte-americanos, como Gregory Corso,
Lawrence Ferlinghetti e Allen Ginsberg. A poesia de Ademir Assunção, no
entanto, não se esgota em tais referências: sua temática é mais ampla,
incluindo o retrato alegórico da cidade, com ênfase nos que estão situados à
margem, como as prostitutas, traficantes, menores abandonados e moradores de
rua, a reinvenção de mitos indígenas, gregos e bíblicos (Ulisses na
tormenta, Na cova dos leões), a sensação de deslocamento e
incomunicabilidade num mundo cada vez mais dominado pelo mercado e pela mídia,
a loucura belicista, a busca do amor como a utopia possível, para citar alguns
temas recorrentes.
Sua técnica literária pouco tem a
ver com a prosódia beat: basta compararmos um poema de Allen Ginsberg, como o Uivo, com seu jorro discursivo
que se aproxima da prosa, com O
pântano, um dos mais belos poemas de A
voz do ventríloquo: “Há uma serpente enrodilhada nas ramagens / do poema: /
cauda verde-turquesa, escamas / mitológicas, cabeça / de névoa”. Este poema se
aproxima da estética neobarroca, não apenas pela riqueza imagética e
metafórica, mas sobretudo pela colagem de referências de diferentes repertórios
culturais, como “um cemitério de aviões de caça da Segunda Guerra” e “uma
rainha que trepa / com o próprio filho” (Jocasta?), “prostitutas chinesas” e
“um monstro de folhagens / e couro cru de crocodilo”. Claro: a montagem ou
justaposição de cenas é uma técnica narrativa do cinema, que está presente em
quase toda a obra de Ademir Assunção, em especial nos livros Cinemitologias e Zona
branca, mas também aqui, na Voz
do ventríloquo, assim como o diálogo criativo com o jazz (Billie Holiday
na porta dos fundos), a pintura (O grito) e a televisão (A vida
em tecnicolor). Não se trata de mera exibição de citações cultas,
fetichismo que muito afetou a poesia da década de 1990, mas de releituras que o
poeta faz das coisas que fazem sentido para a sua sensibilidade e compreensão
de si mesmo e do mundo, de seus medos, vivências e obsessões.
Podemos dizer que a poesia de
Ademir Assunção tem um alto grau de sinceridade, mas que não é confessional,
como boa parte da literatura beat – os poemas amorosos de Allen Ginsberg e os
romances de Jack Kerouac, por exemplo, onde são nítidos os traços
autobiográficos. A sinceridade na escrita, é bom ressaltar, não significa o
registro imediato de sensações, o lirismo espontâneo, herdeiro da escrita
automática dos surrealistas (a frase zen-budista “Primeira ideia, melhor ideia”
era uma das favoritas de Ginsberg). Ademir Assunção visa justamente o
contrário, desautomatizar a escrita e o pensamento, para tornar mais afiadas as
palavras da tribo: “eu sou poeta e sigo em frente / em linhas tortas / eu não
lido com palavras mortas”, diz ele no poema Orfeu
nos quintos dos infernos.
A imaginação poética – melhor
dizendo, a máquina de fabricar mitologias – de Ademir Assunção caminha de mãos
dadas com a informalidade de Paulo Leminski, Roberto Piva e Torquato Neto, três
de seus ícones culturais – por isso mesmo já chamei essa poesia, em outro
artigo, valendo-me de um oxímoro, de “formalismo informal”, característica que
acompanha o autor desde o seu primeiro título publicado, LSD Nô (1994), em que é mais evidente a influência da Poesia
Concreta, na escolha da tipologia de letras, espacialização das palavras e
linhas e outros recursos que realçam a visualidade. Notáveis são os haicais que
Ademir Assunção – estudioso e praticante do zen-budismo – inclui no final desse
livro, entre eles “a chuva / molha / uma lágrima” e “cachorro sem dono / chuva
fria / de outono”.
A paródia é um dos recursos mais
usados pelo poeta, seja a glosa satírica do discurso quinhentista, em Máquina peluda, seja a
reapropriação crítica da linguagem e técnica narrativa das histórias em quadrinhos,
em Zona branca e A voz do ventríloquo, onde
aparecem personagens como o General Mandíbula, O Anjo do Ácido Elétrico e
Mister P., inventados pelo autor, ao lado de Orfeu, Ulisses, Heráclito,
Iemanjá, o Coringa e King Kong. A própria Poesia, e o seu irmão Prosa,
comparecem nas páginas do Diário
do Ventríloquo, inserções de prosa narrativa com fundo preto e as letras em
cor branca que aparecem em várias seções do livro, como se fosse uma narrativa
paralela, um canto dialogado. A organização dos poemas e textos em prosa
obedece a um princípio não-linear, mimetizando, no próprio corpo semântico, o
caos e a fragmentação do mundo a nossa volta. O fio condutor do livro talvez
esteja no próprio título do volume: é a voz invisível do ventríloquo, esse eu
lírico que percorre as ruas de Gotham City “enquanto o Coringa injeta no braço
esquálido / a última gota da ampola”. Convém destacar o trabalho de
Ademir Assunção com a oralidade, presente sobretudo em seus CDs, Rebelião na zona fantasma e Viralatas de Córdoba, em que os poemas
não são cantados, nem recitados com intenção retórica, mas declamados com fina
sensibilidade; o poeta explora a dimensão melódica e emotiva de cada palavra,
com silêncios, ênfases e variações de timbre, dialogando com as intervenções
sonoras da banda Fracasso da Raça, numa unidade estética entre palavra e
música.
(Artigo publicado na edição de fevereiro da revista CULT, na coluna Retrato do Artista.)
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