quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

GENERAL MANDÍBULA ATACA GOTHAM CITY: A POESIA DE ADEMIR ASSUNÇÃO


 


A voz do ventríloquo (São Paulo: Edith, 2012, que recebeu o Prêmio Jabuti no ano passado), é o quarto volume de poemas de Ademir Assunção, que também publicou LSD nô (1994), Zona branca (2000) e  A musa chapada (2008, em parceria com Antônio Vicente Seraphim Pietroforte e o artista visual Carlos Carah), além dos volumes de prosa experimental  A máquina peluda (1997), Cinemitologias (1998), Adorável criatura Frankenstein (2003) e dos CDs de música e poesia Rebelião na zona fantasma (2005) e Vira-latas de Córdoba (2013). Os títulos de seus livros já deixam explícito o diálogo do autor com o universo das histórias em quadrinhos, do cinema, da música pop, da contracultura, das mitologias pré-colombianas e do Oriente — diálogo já bem comentado na fortuna crítica do autor.

Estas referências são comuns a outros poetas de sua geração, como Maurício Arruda Mendonça, Marcos Losnak e Rodrigo Garcia Lopes, que compartilham ainda o interesse pela poesia e concepção de vida dos poetas beats norte-americanos, como Gregory Corso, Lawrence Ferlinghetti e Allen Ginsberg. A poesia de Ademir Assunção, no entanto, não se esgota em tais referências: sua temática é mais ampla, incluindo o retrato alegórico da cidade, com ênfase nos que estão situados à margem, como as prostitutas, traficantes, menores abandonados e moradores de rua, a reinvenção de mitos indígenas, gregos e bíblicos (Ulisses na tormenta, Na cova dos leões), a sensação de deslocamento e incomunicabilidade num mundo cada vez mais dominado pelo mercado e pela mídia, a loucura belicista, a busca do amor como a utopia possível, para citar alguns temas recorrentes.

Sua técnica literária pouco tem a ver com a prosódia beat: basta compararmos um poema de Allen Ginsberg, como o Uivo, com seu jorro discursivo que se aproxima da prosa, com O pântano, um dos mais belos poemas de A voz do ventríloquo: “Há uma serpente enrodilhada nas ramagens / do poema: / cauda verde-turquesa, escamas / mitológicas, cabeça / de névoa”. Este poema se aproxima da estética neobarroca, não apenas pela riqueza imagética e metafórica, mas sobretudo pela colagem de referências de diferentes repertórios culturais, como “um cemitério de aviões de caça da Segunda Guerra” e “uma rainha que trepa / com o próprio filho” (Jocasta?), “prostitutas chinesas” e “um monstro de folhagens / e couro cru de crocodilo”. Claro: a montagem ou justaposição de cenas é uma técnica narrativa do cinema, que está presente em quase toda a obra de Ademir Assunção, em especial nos livros Cinemitologias e Zona branca, mas também aqui, na Voz do ventríloquo, assim como o diálogo criativo com o jazz (Billie Holiday na porta dos fundos), a pintura (O grito) e a televisão (A vida em tecnicolor). Não se trata de mera exibição de citações cultas, fetichismo que muito afetou a poesia da década de 1990, mas de releituras que o poeta faz das coisas que fazem sentido para a sua sensibilidade e compreensão de si mesmo e do mundo, de seus medos, vivências e obsessões.

Podemos dizer que a poesia de Ademir Assunção tem um alto grau de sinceridade, mas que não é confessional, como boa parte da literatura beat – os poemas amorosos de Allen Ginsberg e os romances de Jack Kerouac, por exemplo, onde são nítidos os traços autobiográficos. A sinceridade na escrita, é bom ressaltar, não significa o registro imediato de sensações, o lirismo espontâneo, herdeiro da escrita automática dos surrealistas (a frase zen-budista “Primeira ideia, melhor ideia” era uma das favoritas de Ginsberg). Ademir Assunção visa justamente o contrário, desautomatizar a escrita e o pensamento, para tornar mais afiadas as palavras da tribo: “eu sou poeta e sigo em frente / em linhas tortas / eu não lido com palavras mortas”, diz ele no poema Orfeu nos quintos dos infernos.

A imaginação poética – melhor dizendo, a máquina de fabricar mitologias – de Ademir Assunção caminha de mãos dadas com a informalidade de Paulo Leminski, Roberto Piva e Torquato Neto, três de seus ícones culturais – por isso mesmo já chamei essa poesia, em outro artigo, valendo-me de um oxímoro, de “formalismo informal”, característica que acompanha o autor desde o seu primeiro título publicado, LSD Nô (1994), em que é mais evidente a influência da Poesia Concreta, na escolha da tipologia de letras, espacialização das palavras e linhas e outros recursos que realçam a visualidade. Notáveis são os haicais que Ademir Assunção – estudioso e praticante do zen-budismo – inclui no final desse livro, entre eles “a chuva / molha / uma lágrima” e “cachorro sem dono / chuva fria / de outono”.

A paródia é um dos recursos mais usados pelo poeta, seja a glosa satírica do discurso quinhentista, em Máquina peluda, seja a reapropriação crítica da linguagem e técnica narrativa das histórias em quadrinhos, em Zona branca e A voz do ventríloquo, onde aparecem personagens como o General Mandíbula, O Anjo do Ácido Elétrico e Mister P., inventados pelo autor, ao lado de Orfeu, Ulisses, Heráclito, Iemanjá, o Coringa e King Kong.  A própria Poesia, e o seu irmão Prosa, comparecem nas páginas do Diário do Ventríloquo, inserções de prosa narrativa com fundo preto e as letras em cor branca que aparecem em várias seções do livro, como se fosse uma narrativa paralela, um canto dialogado. A organização dos poemas e textos em prosa obedece a um princípio não-linear, mimetizando, no próprio corpo semântico, o caos e a fragmentação do mundo a nossa volta. O fio condutor do livro talvez esteja no próprio título do volume: é a voz invisível do ventríloquo, esse eu lírico que percorre as ruas de Gotham City “enquanto o Coringa injeta no braço esquálido / a última gota da ampola”.  Convém destacar o trabalho de Ademir Assunção com a oralidade, presente sobretudo em seus CDs, Rebelião na zona fantasma e Viralatas de Córdoba, em que os poemas não são cantados, nem recitados com intenção retórica, mas declamados com fina sensibilidade; o poeta explora a dimensão melódica e emotiva de cada palavra, com silêncios, ênfases e variações de timbre, dialogando com as intervenções sonoras da banda Fracasso da Raça, numa unidade estética entre palavra e música. 


(Artigo publicado na edição de fevereiro da revista CULT, na coluna Retrato do Artista.)

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