sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

CADERNOS BESTIAIS (IV)

  

ANTIMÍDIA (I)

Tunisiano de cabeça nervurada assenhora-se
da unha mínima
da história
enfurece letras que são bichos
de um minucioso horror
quando a morte engole manápulas
e adensa paisagens-vértebras
daqueles que não têm nome daqueles que
não têm nome nenhum nada além
de ninguém
tudo é um jogo desjogado de lacraus
letras que são bichos no escuro letras que
são lepras de lorpas no escuro
tateando entre os tufos da fome tateando
entre os húmus da usura tateando entre
assemelhar-se anfíbio
assemelhar-se reptante no asco
da rachadura no asco do desvão
em que se obliteram as anfetaminas
da desmemória
linhas incisivas num crescendo menos o focinho
menos a mandíbula menos as
tíbias esmagadas no
fosso monocromático do não –
há uma caixa torácica que canta
sozinha no deserto de Mojave
onde marines enrabam desvestidas traqueias
antes de matarem qualquer coisa viva – 
dentes-de-leão ressonam numa tarde esfumada de setembro
em que um poeta (tunisiano?) soletra a sub-reptícia
sombra da vivissecção.

2014 

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

1964 NUNCA MAIS!




O Centro Cultural São Paulo realizará em 2014 diversas atividades para recordar os 50 anos do golpe civil-militar de 01 de abril de 1964, que mergulhou o Brasil num dos períodos mais sombrios de toda a sua história, e também os 30 anos da campanha popular pelas Diretas-Já, que levou ao fim do ciclo autoritário e ao começo de uma nova jornada em direção à democracia. Nos meses de fevereiro e março, a Curadoria de Literatura e Poesia do CCSP realizará palestras, debates e recitais alusivos ao tema, além de promover a distribuição de panfletos poéticos, com textos de autores que denunciaram o clima de violência e opressão de nossos “negros verdes anos”. Convidamos a todos vocês para que prestigiem a nossa programação! 


DEMOCRACIA E MÍDIA

Debate com o blogueiro Altamiro Borges, o jornalista José Carlos Ruy e o escritor Jeosafá Fernandes sobre as relações entre os veículos de comunicação tradicionais e a democracia, ontem e hoje.

Sexta-feira, dia 14/02/14, das 20h30 às 22h 

Sala Adoniran Barbosa 


CANTOS DA LEITURA: VOZES DA RESISTÊNCIA

Recital poético organizado por Patrícia Romiti com textos de autores que tematizam os anos do período da ditadura militar no Brasil, como Carlos Drummond de Andrade, Vinícius de Morais, Ferreira Gullar, Haroldo de Campos e Paulo Leminski.

Terça-feira, dia 18/03/14, das 20h30 às 22h 

Sala Adoniran Barbosa



UMA CONVERSA COM EMIR SADER

O sociólogo Emir Sader fará um depoimento sobre o golpe de estado de 1964 e o significado das mudanças democráticas que aconteceram no país nas últimas décadas. Em seguida, responderá a perguntas do público, num bate-papo informal. 

Sábado, 29 de março, das 15h às 17h

Sala Paulo Emílio Salles Gomes 


PANFLETOS POÉTICOS


Serão distribuídos em diferentes pontos da cidade “panfletos poéticos” editados pela Curadoria de Literatura e Poesia do Centro Cultural São Paulo, com textos de autores como Glauco Mattoso, Haroldo de Campos e Paulo Leminski

domingo, 26 de janeiro de 2014

CONFISSÕES INCONFESSÁVEIS



A burguesia brasileira já nasceu associada ao latifúndio e ao grande capital internacional. Ela soube conviver com a monarquia, a escravidão, as oligarquias rurais e por fim com a ditadura militar, que financiou e apoiou desde o início. Sua incompetência é histórica: foi incapaz de realizar uma revolução democrática nos moldes das grandes revoluções européias, preferindo sempre firmar pactos com outros setores hegemônicos para transições conservadoras que mantiveram intactos o latifúndio e os privilégios das minorias. A república burguesa no Brasil privou as mulheres, os negros, os pobres e analfabetos de seus de direitos políticos (incluindo o direito de voto) até o curto período democrático de 1945 e 1964, e manteve a mulher em posição de segunda classe no Código Civil até a redemocratização do país, na década de 1980 (antes, a mulher era considerada, na legislação em vigor, “relativamente incapaz”, ao lado dos índios, das crianças e dos doentes mentais). Hoje, essa mesma burguesia, que sempre se acovardou frente ao capital internacional, resgata os mais toscos preconceitos possíveis – contra negros, pobres, nordestinos, homossexuais – e usa os meios de comunicação e o poder judiciário numa cruzada reacionária, para tentar frear as mudanças sociais ocorridas nos últimos dez anos, com Lula e Dilma. Ela não tem nenhum projeto de país – nunca teve --, não tem propostas, nem mesmo uma ideologia clara, além da enfática defesa do lucro desmedido e da exclusão social. Uma classe tão medíocre, tão mesquinha, tão covarde, merecerá o destino que a história lhe reserva.

UM POEMA DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE



NUDEZ


Não cantarei amores que não tenho,
e, quando tive, nunca celebrei.
Não cantarei o riso que não rira
e que, se risse, ofertaria a pobres.
Minha matéria é o nada.
Jamais ousei cantar algo de vida:
se o canto sai da boca ensimesmada,
é porque a brisa o trouxe, e o leva a brisa,
nem sabe a planta o vento que a visita.

Ou sabe? Algo de nós acaso se transmite,
mas tão disperso, e vago, tão estranho,
que, se regressa a mim que o apascentava,
o ouro suposto é nele cobre e estanho,
estanho e cobre,
e o que não é maleável deixa de ser nobre,
nem era amor aquilo que se amava.

Nem era dor aquilo que doía:
ou dói, agora, quando já se foi?
Que dor se sabe dor, e não se extingue?
(Não cantarei o mar: que ele se vingue
de meu silêncio, nesta concha.)

Que sentimento vive, e já prospera
cavando em nós a terra necessária
para se sepultar à moda austera
de quem vive sua morte?
Não cantarei o morto: é o próprio canto.
E já não sei do espanto,
da úmida assombração que vem do norte
e vai do sul, e, quatro, aos quatro ventos,
ajusta em mim seu terno de lamentos.
Não canto, pois não sei, e toda sílaba
acaso reunida
a sua irmã, em serpes irritadas vejo as duas.

Amador de serpentes, minha vida
passarei, sobre a relva debruçado,
a ver a linha curva que se estende,
ou se contrai e atrai, além da pobre
área de luz de nossa geometria.
Estanho, estanho e cobre,
tais meus pecados, quanto mais fugi
do que enfim capturei, não mais visando
aos alvos imortais.

Ó descobrimento retardado
pela força de ver.
Ó encontro de mim, no meu silêncio,
configurado, repleto, numa casta
expressão de temor que se despede.
O golfo mais dourado me circunda
com apenas cerrar-se uma janela.
E já não brinco a luz. E dou notícia
estrita do que dorme,
sob placa de estanho, sonho informe,
um lembrar de raízes, ainda menos
um calar de serenos
desidratados, sublimes ossuários
sem ossos;
a morte sem os mortos; a perfeita
anulação do tempo em tempos vários,
essa nudez, enfim, além dos corpos,
a modelar campinas no vazio
da alma, que é apenas alma, e se dissolve.


sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

CADERNOS BESTIAIS (III)


CABEÇA DE NÃO

Cabeça de negro – não entra –

cabeça de branco –

entra – cabeça de pobre –

não entra – cabeça de nobre –

entra – cabeça de pardo –

não entra – cabeça de podre –

entra – cabeça de cobre –

não entra, nem cabeça,

nem pés, nem mãos,

nem joelhos, nem nada –

não entra, neste passeio;

não entra, neste passado;

se é preto ou pardo;

por isso, o poeta contesta,

por isso o poeta protesta,

por isso o poeta desafia,

por isso o poeta desafina,

se alinha junto a esses e a essas,

por isso, por aquilo, por tudo, por nada.

2014

domingo, 12 de janeiro de 2014

CADERNOS BESTIAIS (II)



BREVE HISTÓRIA DO FABRICANTE DE CERVEJA

Cabeça com tentáculos de harpia,
obeso como grávido
escaravelho,
despreza (deliberadamente)
as leis
que o desagradam.
Contrata paraguaios, chilenos, peruanos,
hondurenhos, guatemaltecos,
haitianos
para trabalharem
em sua fábrica,
sem identidade, passaporte
ou carteira de trabalho.
Tudo é número
no anguloso inferno fabril.
Multiplica as horas
para a moagem do malte,
a maceração,
a fervura do mosto,
a adição dos lúpulos de aroma,
a decantação.
Com olhar imóvel de um porco morto,
contabiliza os ganhos
de sua rapinagem
clandestina,
como quem conta cordeiros
ou estrelas.
Um dia, cinco musculosos haitianos
pegaram o pilantra
pelas orelhas,
surraram-no
e jogaram-no
no meio da fervura.
Após o expediente,
reuniram todo o pessoal
no quintal da fábrica
e beberam muita, muita cerveja.


PAISAGEM

Árvores saqueiam o arco-íris.

Três banqueiros atiram-se
ao rio e morrem afogados.

Nuvens piscam o olho para o sol,
que enfurece os dentes-de-leão.

Ninguém me oferece uma estrela.

Quando eu morrer, me enterrem
na tua voz.


JUIZ

Cabeça de fungo 
reptilizada
olho-de-corvo
e coluna inclinada
calvo como um imperador
romano, sorriso áspero
e lustrosos sapatos italianos
toga escura como o medo
(enterra-te no escuro,
enterra-te no medo).

  
JUIZ (II)

“Tu, pessoa nefasta”
— Gilberto Gil

Fúria,
palavras afiadas 
em fúria, para fustigar 
a esfarrapada justiça
e sua voz estorricada 
que absolve os roubos dos ricos
e condena os insubordinados, 
ladrando trevas.


sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

CADERNOS BESTIAIS



ANÔNIMOS
Há um louco solto na rua.
(Os livros dos uigures foram escritos para serem esquecidos.) 
Um policial pede os seus documentos.

(Há três ou quatro especialistas em língua suméria.) 

O louco entrega-lhe um tijolo.

(Uma tribo na Ásia Central escreve seus livros sagrados nos ventres de mulheres-anãs.)

O policial fica furioso porque queria um sapato.

(Um miniaturista persa escreveu um longo poema épico numa pena de faisão.)
Eles começam a discutir e logo aparece uma mulher gorda que entra na confusão.

(Sobre o que conversam as abelhas?)

O louco declara o seu amor pelos incêndios.

(Nuvens serão letras de um alfabeto cabalístico?)

O policial é apaixonado por boxeadores e telepatas.

 (Os melhores poemas ainda não foram escritos, disse para mim um asceta tuaregue.)

A mulher gorda ataca o louco com a sola de um sapato.

(Quem conhece um grande romancista da Lituânia?)

O cinegrafista do Grande Telejornal filma todo o episódio para exibir no horário nobre. 

(Há indícios de vogais e consoantes em teus pequenos lábios.)

 Logo surgem legiões de publicitários, jornaleiros e vendedores de apólices de seguros e tem início uma pancadaria.

(Poucos são capazes de ler as mensagens ocultas no interior das nozes.)


FIM DO MUNDO

À memória de Jakob van Hoddis

Loba ensandecida rumina vermes de escuro escárnio.
Alguém-ninguém atravessa a rua
e em todos os cantos 
ouvem-se gritos 
feito guinchos
de um porco amarelo.
Cai um aguaceiro
na cidade esquálida
e os bairros alagados atingem as estrelas. 
Banqueiros obesos caem do telhado 
e se despedaçam.
Numa placa de rua, 
lemos: cuidado.
Quase todos têm secreções nasais;
os ônibus correm nas avenidas 
a toda velocidade,
entram nos viadutos
e se chocam contra as paredes.

Todas as palavras não são mais que uma superfície de cacos de vidro à entrada de uma cidade maldita.


JAMAIS

Para Fabrício Slaviero

bichos de verde-muco proliferam
nos entalhes do tapume;
antiaranhas deslizam
nas ramagens,
tramam teias e resíduos
de uma dor vermelha,
recíproca.
há um plasma em cada fenda,
em cada vão
de madeira apodrecida.
há um acre açafrão
em cada veio
do reboco, com seu ácido.
tateiam algo, quem, aqui –
ou apenas arrulhos, crostas, escaras,
ninguém com óculos de aro fino,
breve gravata lilás e uma refinadíssima
sensibilidade no olfato; não, ninguém,
nunca houve, jamais.


ARAMES, RETALHOS

esqueletos do nunca
onde o áspero da palavra,
brutais de dezembro.
porque esta não é a minha língua:
retorcidos de mistério,
caranguejo onagro.
onde se desdobra a pedra, onde se
desdobra o nojo desse nunca,
que se anuncia indesejoso:
são palavras em seu verde, em seu asco;
são vértebras de escárnio,
entulhos-de-orelhas à procura da mulher-dos-gatos.
porque nada faz sentido, eu sei,
neste reverso em que me falas,
primitiva, reverberante,
com a nudez que me calam os arames, os retalhos;
com a nudez de um estuque de plantas,
ruidosa, em expansão — e só me resta confessar
os fumos de aranha, inconcluso,
quando indagas sobre o meu labirinto.


FIM DE CASO

depois da separação
embora eu me dissuadisse
que a memória esfumaçada
era apenas resíduo efêmero,
a pele escandida recusava 
toda tentativa de esquecimento,
amealhava cenas e palavras
descoloridas, mas ainda cruéis,
quadros que gritam na exposição,
quadros vivos que se assenhoram
de cada minuto, de cada silêncio,
de cada pálpebra, sem cautério:
cansado de lutar com a dor,
convidei-a para dormir comigo.


CANTIGA

Penso em você eroticamente.
Até a fabulação
de outra margem,
na estranha habitação onde os números,
pares e ímpares, enlouquecem.

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Um minúsculo leão branco habita a sua fenda.


***

A ferocidade
no limiar da noite,
quando a pele —
desmedida, irremissível,
se projeta em outra pele:
nenhum destino além do nervo tumultuário.


(Poemas inéditos de Claudio Daniel)