quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

CÂNONE E ANTICÂNONE: HELDER

HERBERTO HELDER: A RAZÃO DA LOUCURA
Contador Borges

A poesia de Helder é assombrosa; é desmedida, e chega a ser desconcertante em seu trânsito entre o absurdo e o sublime, pois nos coloca diante do impossível. E a margem mínima se abre ao rio caudaloso do poema, abolindo a fronteira entre a razão e a loucura, para que o essencial do ser venha à tona.

Basta entrar de vez neste volume intitulado Poesia Toda (Herberto Helder. Poesia toda. Lisboa, Assírio & Alvim, 1996) e constatar os seres da linguagem (mistura de coisas e palavras), gerando prodígios em relações surpreendentes. "A manhã começa a bater no meu poema" (...) "As manhãs, os martelos velozes, as grandes flores / líricas". Todas as coisas "Batem nas portas das palavras". "Batem" e entram, acrescente-se. O poema as recebe porque é ao mesmo tempo a casa (o corpo) e a voz da enunciação. Eis "a complicada carne / do poema", o espaço onde o ser se relaciona com a linguagem.

Este estranho comércio entre as palavras, esta economia inflacionaria de sentidos, afetam (iluminam) não apenas o que entendemos por linguagem, mas também o que entendemos por mundo.

Os poemas assim nos ensinam a ver as coisas de outro modo, como se nesse exato momento de claridade e sombra da leitura pudéssemos parar o tempo e isolar o ser no espaço para surpreendê-lo em seu labor secreto, simultaneamente em silêncio e turbulência. Atente-se ao poeta: "Escuta como só agora bate a cor nas maçãs." Sim, porque o poema a surpreende nesse instante inapreensível, nesse plano suspenso, quando a fruta se torna o que é, ao ser atingida pelo movimento espacial da cor, e, por assim dizer, se encarna, deixando o estado bruto, larval, de pré-coisa. O poema apreende a fruta no devir do ser.

A maçã que nos oferece é outra e, ao mesmo tempo, se encontra na essência de todas as frutas. Ele a quer em seu estado adâmico, antes que ela seja mordida pelo verbo, antes que apodreça ou degenere pelo uso do sentido na comunicação, antes que seu ser se perca; ele apanha a maçã com a rede do poema, "sem as mãos", desde a origem, em ato e potência, para restaurar a fruta aos nossos olhos, no instante desse acontecimento em que o ser irrompe das palavras. O poema enriquece nossa relação com as coisas, pois quer a maçã que não pode ser comunicada, o ser perdido da fruta: a nudez essencial.

Devir é movimento. O movimento que se percebe ser.

Não há nada estático na poesia de Helder. Como o rio de Heráclito, tudo nela flui. O devir e o signo coincidem na leitura.

O ser da linguagem, no fundo, é o ser das coisas que se revela ao pensamento, como " o peixe que "vai nadando até se consumar em lento / lírio". O ser é o puro movimento do devir. O peixe que lentamente se consuma em lírio é o acontecimento que nos permite vislumbrar o movimento em cores do ser, ao mesmo tempo em que o pensamento se descobre ele próprio na base desse movimento. Nesse instante, o ser do pensamento é o mesmo que o ser do poema. (Leia o texto integral na Zunái, na página http://www.revistazunai.com/ensaios/contador_borges_herberto_helder.htm)

Nenhum comentário:

Postar um comentário