sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

CÂNONE E ANTICÂNONE: BERTOLD BRECHT


Haroldo de Campos

“Pode-se dizer que a posição poética de Bertold Brecht (1898-1956) é, até certo ponto, simétrica à de Maiakovski. Daí a singularidade da divulgação de poemas seus – já que ele é principalmente conhecido entre nós como grande renovador do teatro contemporâneo – para que a lição de sua poesia possa ser meditada na atual fase de nossa literatura. Anatol Rosenfeld, no admirável posfácio que escreveu para a edição brasileira do poema Cruzada das Crianças, ilustrada por Gerson Knispel (São Paulo: Brasiliense, 1962), acentuou que, em Brecht, se pode colher um elevado exemplo de lealdade do artista a um duplo compromisso, ético e estético. E acrescenta:

O que Brecht exige é a transformação produtiva das formas, baseada no desenvolvimento do conteúdo social. Mas este desenvolvimento material, por sua vez, exige a transformação dos processos formais. Isto explica a pesquisa incansável de Brecht, no terreno da palavra, do estilo, do verso, do ritmo, da cena, do desempenho do ator, da estrutura de sua arte. Esta pesquisa e experimentação incessante não deixaram de lhe render a censuras e a acusação de ser formalista e esteta, quando na realidade a consciência social e a consciência estética se lhe afiguram inseparáveis. O poeta que trai os valores estéticos, isto é, a sua honra profissional, é, no fundo, um traidor de sua consciência social.

Ora, justamente de Maiakovski é a postulação de que ‘sem forma revolucionária, inexiste arte revolucionária’.

A poesia de Brecht aplica à estrutura poemática processos de montagem que podem ser analisados em termos dialéticos, da mesma maneira que Eisenstein interpretava dialeticamente sua teoria da montagem baseada no ideograma chinês. Aliás, a influência da técnica de composição sino-japonesa em Brecht é evidente, seja no seu teatro, que pode buscar uma linhagem na estrutura das peças nô, seja na sua poesia, especialmente na da última fase, de extremo despojamento e de arquitetura elíptica, à maneira do haicai da tradição nipônica, só que com um nítido cariz crítico (como de resto muitos haicais, inclusive do mestre do gênero, Bashô, pois é apenas um equívoco imaginar-se que o breve poema japonês se preste apenas a efeitos lírico-paisagistas).”

(Do livro O Arco-Íris Branco. Rio de Janeiro: Imago, 1997)

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