sábado, 6 de novembro de 2010

POEMAS EM PROSA (V)

MAGIA

I

Antigamente eu era muito nervoso. Agora estou num novo caminho:

Coloco uma maçã em cima da mesa. Depois me coloco dentro da maçã. Que tranquilidade!

Isso parece simples. Entretanto, havia vinte anos que tentava; e não teria conseguido, querendo começar por ali. Por que não? Talvez me sentisse humilhado em virtude de seu tamanho diminuto e de sua vida opaca e lenta. É provável. Os pensamentos da camada inferior raramente são belos.

Então comecei de outra forma e me uni ao Escalda.

Em Anvers, onde eu o encontrava, o Escalda é largo e importante e movimenta um grande fluxo. Ele recebe os navios de alto bordo que se aproximam. É um rio, um verdadeiro rio.

Decidi unir-me a ele. Permanecia no cais o dia inteiro. Mas eu me dispersava em numerosas e inúteis perspectivas.

E depois, à minha revelia, olhava as mulheres de vez em quando, e isso não condiz com um rio, nem com uma maçã, nem com nada na natureza.

Então o Escalda e mil sensações. O que fazer? Subitamente, tendo renunciado a tudo, encontrei-me..., não direi em seu lugar, pois, na verdade, nunca foi exatamente assim. Ele corre incessantemente (eis uma grande dificuldade) e desliza em direção à Holanda onde encontrará o mar e a altitude zero.

Retorno à maçã. Lá, novamente, houve tateios, experiências; é uma longa história. Partir é pouco cômodo, assim como falar sobre isso.

Mas, em uma palavra, posso dizer-lhes. Sofrer é a palavra.

Quando cheguei à maçã, estava congelado.


II


Assim que a vi, desejei-a.

De início, para seduzi-la, disseminei planícies e planícies. Planícies saídas do meu olhar estendiam-se doces, amáveis, reconfortantes.

As idéias de planície foram ao encontro dela e, sem o saber, ela as percorria, sentindo-se satisfeita.

Percebendo-a bem segura, eu a possuí.

Isso feito, depois de um pouco de repouso e quietude, voltando ao meu natural, deixei reaparecerem minhas lanças, meus trapos, meus precipícios.

Ela sentiu um grande frio e que tinha se enganado completamente a meu respeito.

Ela foi embora, a fisionomia desfeita e esvaziada, como se tivesse sido roubada.


III

Acho difícil acreditar que isso seja natural e conhecido por todos. Às vezes eu fico tão profundamente entranhado em mim mesmo numa bolha única e densa que, sentado sobre uma cadeira, a menos de dois metros da lâmpada colocada sobre a mesa de trabalho, é com grande dificuldade e após um longo tempo que, apesar dos olhos bem abertos, consigo lançar um olhar até ela.

Uma emoção estranha toma conta de mim quando dou esse depoimento sobre o círculo que me isola.

Parece-me que um obus ou até mesmo um raio não conseguiriam me atingir de tantas camadas de todas as partes que tenho aplicadas sobre mim.

Simplesmente, seria bom que a raiz da angústia estivesse enterrada por algum tempo.

Nesses momentos eu tenho a imobilidade de uma cova.


IV

Este dente da frente cariado me enfiava as suas agulhas muito acima da raiz, quase sob o nariz. Terrível sensação!

E a magia? Talvez, mas então é preciso alojar-se em bloco quase sob o nariz. Que desequilíbrio! E eu hesitava, ocupado com outras coisas, um estudo sobre a linguagem.

Nesse momento uma velha otite, que dormia há cinco anos, despertou com sua fina perfuração no fundo da orelha.

Portanto, eu precisava me decidir. Molhado, melhor lançar-se à água. Abalado em sua posição de equilíbrio, melhor procurar outra.

Abandono então o estudo e me concentro. Em três ou quatro minutos, elimino a dor da otite (eu conhecia o caminho). Quanto ao dente, precisaria do dobro de tempo. Ela ocupava um lugar tão ridículo, quase sob o nariz. Por fim ela desaparece.

É sempre assim; só a primeira vez é uma surpresa. A dificuldade é encontrar o lugar da dor. Assegurado o lugar, é só dirigir-se naquela direção, às apalpadelas na sua noite, procurando circunscrevê-lo (por não terem concentração, os ansiosos sentem a dor em todos os lugares), depois, à medida que é circundado, deve-se observá-lo mais cuidadosamente, pois ele se torna menor, menor, dez vezes menor que uma ponta de agulha; todavia, você o vigia sem descanso, com atenção crescente, projetando nele sua euforia até que não haja diante de você nenhum núcleo de dor. Você realmente o encontrou.

Agora, é preciso permanecer ali sem esforço. Cinco minutos de concentração devem produzir uma hora e meia ou duas horas de calma e insensibilidade. Falo em relação aos homens que não são especialmente fortes ou dotados; por sinal é o “meu tempo”.

(Por causa da inflamação dos tecidos, subsiste uma sensação de pressão, de pequeno volume isolado, como subsiste após a injeção de um líquido anestésico.)


V

Sou tão fraco (eu o era, sobretudo), que se pudesse coincidir em espírito com o que quer que fosse, eu seria imediatamente subjugado e engolido por ele e estaria inteiramente sob sua dependência; mas eu fico de olho, atento, antes aferrado a ser sempre muito exclusivamente eu. Graças a essa disciplina, agora tenho chances cada vez maiores de nunca coincidir com nenhum espírito e de poder circular livremente nesse mundo.

Melhor assim! Tendo me fortalecido a esse ponto, lançarei um desafio ao mais poderoso dos homens. O que a sua vontade me faria? Eu me tornei tão agudo e circunstanciado que, estando diante dele, ele não conseguiria encontrar-me.
(Poemas de Henri Michaux traduzidos por Izabela Leal. Leia mais no link de Tradução da Zunái.)

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